Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 44
Dezembro/23
Entre ruídos, ruínas e um verão invencível.
O ano se encerra com muitos desafios e um cenário climático bastante assustador. A trilha sonora de 2023 nos remete ao álbum dos anos 1980 dos Titãs, “Cabeça Dinossauro”: “Bichos, saiam dos lixos. Baratas me deixem ver suas patas, entrem nos sapatos do cidadão civilizado (…) Bichos escrotos, saiam dos esgotos.” Afinal, como disse Camus: “O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, esperando pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria.” Por bacilo da peste, podemos nomear a desumanidade. Duas guerras ao mesmo tempo, entre Israel e Hamas e entre Ucrânia e Rússia, têm se estendido sem previsão de acabar. A eleição de um presidente de extrema direita na Argentina. Novas polaridades, cisão, clivagem.
Marina Kon Bilenky (SBPSP) traz o terror para nossa terra, no ensaio “Era uma vez em Ipanema” (OP 456/2023). Numa ficção, baseada em fatos absolutamente reais, descreve o ataque à Israel pelo Hamas como se tivesse ocorrido no Rio de Janeiro, e a autora se pergunta: “E se a guerra fosse aqui?” Aqui também vivemos nossas guerras. Como uma de nós falou em nossas conversas no grupo de curadoria: “Estamos vivendo aqui no Brasil, algo absurdo em Maceió, tão absurdo o que está acontecendo com a exploração de sal-gema, buracos se abrindo e sugando tudo, famílias aterrorizadas.”
Catástrofes ambientais são cada vez mais comuns, muitas ruínas, muitos ruídos. O lobo do homem está uivando e rondando faminto e ávido, ninguém está a salvo. “Lupus est homo homini lupus” – a frase atribuída a Plauto, e citada por Freud, refere-se à natureza destrutiva do ser humano. O ensaio “Gazeta do Amanhã” (453/2023) de Adriana Augusta (SPFOR) aborda a questão da destrutividade inata do ser humano. Reflete sobre a desumanidade das declarações de autoridades israelenses em relação aos palestinos e critica a falta de compaixão diante da tragédia em Gaza. Lamenta o impacto do desamparo nas crianças afetadas pela guerra, enfatizando a desumanização provocada pela violência. Além disso, faz uma crítica à falta de limites na condução do conflito e questiona a eficácia das leis internacionais. O texto termina com uma reflexão sobre a perda da humanidade diante do sofrimento das crianças em meio ao conflito, a desumanização causada pela máquina bélica e ineficácia da ONU para encontrar uma saída para a situação. Nos convida a pensar sobre o conceito de humanidade: “Humanidade tem a ver com civilidade e instrução, porém a grande questão atual parece caber na citação: ‘Ser ou não ser’ – humano – eis a questão”.
Para sermos humanos, é preciso romper o silêncio, como nos adverte Fernanda Marinho (SBPRJ) no ensaio “Quebrando o silêncio” (454/2023). A autora registra sua participação em um simpósio sobre o conflito Israel-Palestina, com preocupação e desespero diante da violência e crueldade ocorridas desde o ataque de 7 de outubro, considerando o sofrimento de ambas os povos, ressaltando a perda de vidas especialmente de crianças e mulheres, e o antissemitismo que vem sendo revelado. Finaliza com um apelo pela paz, conclamando por um cessar-fogo imediato, libertação dos reféns, com fronteiras seguras para ambos.
Em “Mundos em Colisão” (OP 455/2023), Valton de Miranda Leitão (SPFOR) reflete sobre o percurso e os resíduos da violência de tantos conflitos. Ao mencionar a frase de Freud “Uma criança é espancada”, destaca que todas as crianças do mundo estão em perigo quando uma criança israelense ou palestina é assassinada. Finaliza com as palavras de Sartre em “Deus e o Diabo”: a dor na violência da guerra não pode ser quantificada. Em resposta, Adriana Augusta (SPFOR) adiciona, no texto “Carthago delenda est” (OP 457/2023), “A guerra é espetáculo, uma atuação em que se sacrificam vidas em prol do lucro. Os senhores da guerra criam narrativas, por vezes espantosas e delirantes, a fim de fabricar uma verdade, a sua verdade, a verdade do capital.” O rastro desse conflito perpetuará por muitas gerações, como uma cicatriz herdada de uma ancestralidade marcada por Thanatos.
As cicatrizes de guerra são relembradas no ensaio de Daniela Boianovsky (SPBsb), “Israel: a construção de um olhar” (OP 51/2018), publicado em 2018 e retomado por nossa equipe este mês. “Guerra e paz. Ponte e abismo. Povo e poder. Efervescência pura. Ilusão? Ingenuidade? Desejo? Esperança?” A autora nos relembra que as complexidades e os conflitos que acontecem no país hoje muito antecedem ao nosso tempo. Suas palavras seguem atuais e nos convidando a pensar sobre o futuro da humanidade.
É preciso cuidar do jardim daqueles que virão. No ensaio “Geração digital: abominável mundo novo?” (OP 455/2023), Cibele Rays (SBPSP) reflete sobre o que vem se passando com os futuros adultos, aqueles que têm os algoritmos como traço mnêmico. A autora rememora suas brincadeiras de faz de conta no quintal de casa e, em paralelo, dialoga com o neurocientista Michel Dermuget que destaca a influência negativa dos dispositivos digitais no desenvolvimento neuronal de crianças e jovens, apontando a diminuição do QI médio da geração atual em relação à anterior, atribuindo parte desse declínio ao tempo excessivo de exposição à tela. Dermuget nos alerta para o risco de se criar uma “fábrica de cretinos”, enquanto a autora, de forma esperançosa, lembra que o inconsciente humano possui força e profundidade, e é capaz de resistir ao aniquilamento das normas sociais e digitais.
Talvez, essa frase possa ser um alento em tempos de guerra, tal como um antídoto para começarmos 2024. Seremos resistentes, ainda que nosso jardim esteja ameaçado. Celebrar a chegada de um novo ano parece não ser justo em meio a tanta dor e desintegração. Contudo, alguém tem que se lembrar das flores, como disseram Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) e Rafaela Degani (SBPdePA) no texto “Para não dizer que não falei das flores” (OP 452/2023), sobre a força da escrita, da arte, e da literatura, para oferecer alívio e ressignificar as vivências. O ensaio sobre a experiência no festival de literatura de Paraty (FLIP) tenta trazer algum olhar esperançoso, destacando a crescente presença e importância das mulheres na vida pública e na literatura, e a escrita sobre si mesmas como um ato político. Nem tudo é retrocesso, em meio a tempos tão sangrentos. As autoras ressaltam: “São as palavras que nos salvam do abismo, e isso tanto a psicanálise quanto a literatura têm em comum, caminham juntas. Palavras são ponte, travessia, costura, elaboração.”
Esse é também o objetivo do Observatório Psicanalítico, a troca, a reflexão e a ventilação de ideias, psicanalistas escrevendo suas experiências e se ouvindo mutuamente. Eliana Mello (SPRJ) nos disse recentemente numa fala informal: “O OP é o espaço mais psicanalítico e político que temos. Um congresso permanente onde podemos reafirmar que psicanálise e política andam juntas e que ser psicanalista implica em uma posição ética que não pode passar ao largo dos acontecimentos.”
Nossa posição ética, contudo, teve que ser reafirmada, enquanto equipe de curadoria, uma vez que vimos o teatro da guerra se repetindo no meio virtual. O bacilo da desumanidade é contagioso. Falas ofensivas, perfis fakes difamando autores, palavras duras e preconceituosas. Estamos todos muito feridos e em alerta. O espírito bélico assombra todos nós, tanto que tivemos que reforçar, a partir de uma nota publicada em nossas redes sociais, que seguimos as leis das esferas civil e penal, e que comentários de perfis falsos estão sujeitos aos preceitos estabelecidos no código penal e no marco civil da internet. Nada que é humano nos surpreende, como disse Nietzsche.
No grupo de e-mails do OP, o belicismo também foi sentido, sinal de que nem mesmo nós, que trabalhamos e prezamos pela palavra e o pensamento, escapamos da armadilha de não considerar as diferenças, sobretudo quando estamos tomados por dores profundas. Não há como não espelharmos o que se dá no cenário mundial. Nesses momentos, o debate de ideias se interrompe e a polarização toma conta.
A destrutividade nos habita e às vezes antecede a reflexão, trazendo consequências. A internet não é terra sem lei, está sujeita a regras para que possamos nos proteger e continuar existindo enquanto espaço de pensamento. A castração é importante e parte inerente da condição humana. Aline Sant’Anna Ferreira da Silva (SPBsb) nos lembra no texto Coto umbilical: uma ferida narcísica (458/2023): “assim como o nascimento, também a morte – que nos coloca de frente com a finitude – é algo do qual nenhum ser humano escapa. Então, eu diria que somos todos castrados porque nascemos e porque morremos.”
Nossa existência se dá no “por enquanto”. Enquanto estivermos vivos, procuremos pela beleza, pela força da arte, pela poesia e pelas palavras. Luiz Meyer (SBPSP) e o arquiteto Pedro Boaventura falaram do impacto estético na arte e na Psicanálise no quinto episódio da temporada atual do nosso podcast Mirante. Numa fala marcante, Meyer diz: “o que é transformador na arte são nossos objetos internos, que quando externalizados na criação artística, são revelados. E, quando estamos conversando com nossos botões, conversamos com nossos objetos internos”.
Nós, da equipe da curadoria, desejamos que “nossos botões” desabrochem em palavras de compreensão, empatia, resiliência. Inspiradas pela homenagem a Freud realizada em Porto Alegre pelos colegas da SBPdePA, desejamos que o nosso OP possa funcionar como uma praça em que psicanalistas se encontrem para dialogar e debater ideias, escutando-se mutuamente, tal qual os gregos o faziam na ágora. E que tenhamos o compromisso de levar essas palavras-ponte em nosso ofício para almas desesperançadas. Que em 2024 possamos confiar na volta da primavera, como Helena Di Ciero e Rafaela Degani terminam seu ensaio, que essa seja nossa herança invencível em tempos tão áridos.
Finalizamos o editorial novamente com Camus: “No meio do ódio, descobri que havia, dentro de mim, um amor invencível. No meio das lágrimas, descobri que havia, dentro de mim, um sorriso invencível. No meio do caos, descobri que havia, dentro de mim, uma calma invencível. E, finalmente descobri, no meio de um inverno, que havia dentro de mim, um verão invencível. E isso faz-me feliz. Porque isso diz-me que não importa a força com que o mundo se atira contra mim, pois dentro de mim, há algo mais forte – algo melhor, empurrando de volta.”
Um abraço afetuoso a todos,
Equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPdePA), Gizela Turkiewicz (SBPSP), Helena Cunha Di Ciero (SBPSP) e Vanessa Corrêa (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Cicatriz em Belém, Banksy (2023). https://www.instagram.com/p/
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, guerra, polarização, conflitos, esperança.
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