Observatório Psicanalítico OP 460/2024

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Entre Tânatos e Eros: destruir para construir a cidade.

Laerte Idal Sznelwar -SBPSP

Quando se trata de uma construção contínua, como é o caso de qualquer cidade, há que se perguntar: o que se está destruindo para colocar algo novo em seu lugar? Instados por uma série de vontades e atributos, aqueles que estão imbuídos da tarefa de fazer novas edificações numa cidade moldam o que será o futuro do viver-junto em determinado espaço urbano. Um deles diz respeito à vontade de ganhar financeiramente; mas não só, há também a vontade de exercer um poder que, mesmo que outorgado pelas autoridades legislativas e executivas, só se contempla ao erguer um edifício, em algum lugar da cidade.

Trata-se de algo concreto, estruturante e que terá impactos significativos na vida das pessoas e da polis. Não há dúvidas com relação à necessidade de haver mais moradias, inclusive daquelas que se situam perto dos equipamentos urbanos que mais facilitam a vida dos cidadãos. Todavia, não se pode esquecer que há também muitos locais desocupados, outros degradados, e outros, ainda, mal aproveitados no que diz respeito ao acesso das pessoas das mais variadas classes sociais a um local de moradia decente. Mesmo assim, ainda há o que se construir e reformar, considerando que muito pode ser reaproveitado. Pensar em questões outras, como a mobilidade e o acesso a diferentes modalidades da infraestrutura urbana, como  rede de água e esgoto, energia elétrica e rede de gás encanado, também faz parte da construção de um pensamento mais abrangente sobre a polis. E isso não é tudo; há questões ligadas à possibilidade de se usufruir das oportunidades de emprego e ao uso de equipamentos sociais ligados à saúde, ao comércio, à segurança, ao lazer, à cultura e aos espaços verdes.

Concordo que é necessário construir e que é importante agir em conformidade com uma racionalidade que considere os meios existentes e os objetivos, levando em conta também os custos e as possibilidades oferecidas por diferentes materiais, incluindo os reciclados, com o objetivo de propiciar mais e melhores condições para a população ter moradia com usufruto dos equipamentos urbanos.

Porém, nada é tão racional, claro e transparente para que possamos simplesmente pensar que aquilo que estão fazendo na Cidade de São Paulo é o melhor possível, até porque aqueles que têm como propósito “engenheirar a cidade” estariam refletindo com bastante cuidado e considerando diferentes perspectivas. Primeiramente porque o poder não é neutro, ele está fundamentado em um sistema de representação que, de fato, não corresponde a uma gama ampla de interesses e, muito menos, aos daqueles que têm menos “voz” em nossa sociedade. Também seria pouco considerada uma perspectiva de médio e longo prazo em que estariam contemplados os interesses “difusos” da sociedade atual e, por que não, futura.

Se aquilo que impera está mais voltado para a manutenção do poder de ação de alguns que vão agir no sentido de construir destruindo, há que se perguntar: será que eles poderiam agir considerando outros aspectos que não aqueles relacionados exclusivamente aos resultados financeiros de seus empreendimentos? Será que conseguem enxergar de outra maneira a cidade? Pois o que os dirige é um tipo de pensamento ancorado em uma racionalidade de caráter instrumental; isto é, uma maneira de pensar que visa atingir objetivos usando determinados meios do modo mais eficaz e eficiente possível. Fica claro que esses objetivos estão pautados numa racionalidade limitada e excludente com relação a outros aspectos da existência da polis.

Há como considerá-los? Quais seriam esses outros aspectos? Não estaria tudo contemplado nas reflexões feitas pelos vereadores, prefeitos, alguns representantes da sociedade civil e dos empreendedores, incluindo alguns urbanistas? Tudo indica que não! Isto porque há que se colocar em pauta outras dimensões do viver junto na cidade que são frequentemente desconsideradas. O modelo que impera está pautado sobretudo no anseio de manter os interesses daqueles que são “donos” do espaço e daqueles que se tornaram “donos” do espaço a ser construído e vendido. O que vale é o interesse privado, concebido a partir de uma visão de curto prazo. Outros aspectos, como o microclima das regiões adensadas, a criação de logradouros públicos, como os parques e jardins, a estética das ruas  – ainda mais quando se trata de avançar com relação ao alinhamento/recuo dos edifícios já existentes, criando mais áreas de sombreamento – entre outros, não parecem ser considerados. Se o são, é de maneira secundária.

Há uma outra questão que também é pouco trabalhada. Trata-se de um ponto chave: o que seria viver a cidade? Ao que parece, avaliando aquilo que se propõe com este grande turbilhão de construções, é que estamos construindo um espaço urbano onde cada um terá, maior ou menor, um espaço  para chamar de seu (mesmo que alugado) e onde, em princípio, estariam contempladas as suas necessidades. Note-se que muitas propostas de construção incluem equipamentos de lazer e esporte para que os condôminos possam desfrutar. Ótimo, quanto melhor a condição de moradia, mais as pessoas têm condição de viver melhor. Todavia, essa visão de cidade, de mundo, calcado numa proposta individualizadora, é inadequada, pois suas consequências não são tão positivas.

Não podemos esquecer o fato de que as propostas construtivas estão quase sempre pautadas na busca de mais e mais segurança, através de diferentes tipos de equipamento, como, as câmeras, os muros e as cercas, sejam elas eletrificadas ou não. Este fato é relevante e precisa sempre ser levado em conta, ainda mais quando se pensa na legitimidade de resguardar a si e a seus próximos da violência urbana.

Mais uma vez pergunto, o que estamos construindo como polis, como lugar para viver-junto? Aparentemente os principais atores sociais envolvidos neste processo de construção – destruição – se esqueceram, ou desconsideraram algo fundamental. A cidade se constrói também e, muito, no entre. O entre significa aquilo que não é parte exclusiva minha, mas que é relacional. Tudo que se passa entre os edifícios é o que dá mais vida à cidade; é onde há um potencial de encontro, a possibilidade de desfrutar daquilo que há de comum, de compartilhado; é o espaço previsto para que os mais variados tipos de atividade individual e coletiva aconteçam.

Toda e qualquer relação humana se dá no entre, aquilo que acontece entre as pessoas. O entre é a morada de Eros, onde se estabelece a vida relacional. Mesmo se pensarmos no sujeito, na sua individualidade,  sabemos que sua constituição se dá na relação com o outro, naquilo que é tecido em conjunto, compartilhado. Contrariamente a Tânatos, onde impera o desligamento, o que não está mais na relação, aquilo que pode ser considerado como esfriado, escurecido, que pode ser considerado como moribundo ou morto. Tudo que impede o contato, a consideração da existência do outro, está no seu reinado. Ressalte-se que não se pode considerar a existência de Eros sem a de Tânatos, até porque eles se contrapõem, numa disputa permanente. De modo análogo, existe a disputa na cidade!

Será que para construir, precisamos necessariamente destruir? Isto não seria, entenda-se, apenas destruir o que já existe para construir algo novo, mas sim, destruir a possibilidade de se criar o que propicia o entre. No caso da cidade, trata-se daquilo que acontece no espaço público, daquilo que é destinado ao encontro; isto é, às possibilidades de se construir algo além dos edifícios que isolam os seus moradores do resto da polis. Ou, diferentemente, será que podemos pensar que cada unidade residencial, assim como cada sujeito, não existe por si só, não é algo isolado? Há sempre algo do outro na constituição desses espaços, construídos com materiais inertes (cimento, areia, metais, vidro, água, entre outros) mas dependentes da vida, onde outros trabalharam, seja para conceber, projetar ou realizar a obra. Por isso, considerar que as unidades se bastam por si só é uma falácia. Isto porque outros a construíram a partir de uma racionalidade bastante limitada, sem considerar o entorno. Habitar uma determinada unidade residencial também significa colocar vida em e construir uma relação com outros, mesmo que de modo distante. Isto não basta, a vida não é o isolamento.

De que modo podemos pensar nessas questões, incluindo-as mais incisivamente na própria legislação e nas possibilidades de ação de diferentes agentes públicos e privados? Defender o que há de difuso em uma sociedade, e não apenas se curvar ao poder que têm as forças organizadas, aquelas que têm acesso a cargos no poder legislativo e no poder executivo? Agir em comunidade poderia e deveria ser incluído na pauta da polis, no fazer política. Há também o contrapeso do poder judiciário, pautado nas leis e na sua interpretação. A ação do Ministério Público, como defensor dos interesses difusos da sociedade, também é fundamental nesse debate. Leis são a base para gerir as relações entre os cidadãos, ainda que em determinados momentos históricos possam favorecer interesses muito específicos, como os daqueles que não estão preocupados com o “entre” na polis.

A concretude de algo que já foi construído, se por um lado permite a configuração do espaço urbano, por outro, dificulta ou impede a emergência de outras possibilidades de organização…. Há que se pensar o entre, quando se pensa a cidade.

Isto não é novo, sabemos bem, muitos urbanistas já discutiram e propuseram uma configuração da cidade onde o “entre” é valorizado. Basta olhar o que foi proposto por Lúcio Costa, em Brasília, Salmona, em Bogotá, entre outros tantos. Cada vez mais, em diferentes locais do mundo, há ações que acontecem no “entre”, no comum, no relacional, através da criação de espaços de convivência, da implantação de áreas verdes interligadas que favorecem o retorno também de animais, de jardins suspensos, de hortas comunitárias, entre tantos dispositivos com essa finalidade.

Um exemplo, mais próximo de mim, foi proposto por Marina Rosenfeld Sznelwar em seu trabalho de formatura em arquitetura (2009 – As linhas da Augusta), quando pensou e propôs soluções para ligar e relacionar os edifícios no “baixo Augusta”, através de equipamentos públicos variados para constituir esse espaço do “entre”.  

Incluir soluções já pensadas, mas que precisam ser reforçadas e mais desenvolvidas  nos processos de decisão que definem o espaço público, é urgente. Quando olho para o edifício da prefeitura de São Paulo, antigo prédio do extinto Banespa, que contém um verdadeiro bosque no seu teto, imagino que foi pensado, desenvolvido e cuidado por alguém, por vários, que trabalharam para cuidar da beleza da cidade; consideraram que haveria prazer, não apenas dos sujeitos diretamente envolvidos, mas de todos que o contemplam, aumentando, enfim, o prazer de viver a cidade. Pena que este exemplo não foi seguido! Mesmo que seja um caso de difícil implantação e manutenção, ele é possível e há outras soluções semelhantes.

Tenho a impressão de que Tânatos está ganhando a parada, de longe. Isto quando contemplo os espaços de sombra criados por edifícios que dominam o espaço que ainda sobra, sem respeito à vizinhança e à insolação para os outros; com a perda de árvores onde vivem pássaros, insetos e outros seres; nós mesmos também. Isto reduz ainda mais os espaços para a passagem do vento e de regulação do microclima; com o desaparecimento de córregos e riachos, entre outros. Pensar a cidade em seu conjunto requer uma dose significativa de ligação, de Eros; isto é possível e deve ser tratado, no mesmo nível que os outros aspectos ligados à construção de moradias, de edifícios destinados a serviços, de dispositivos públicos, de transporte etc.  

De qualquer modo, muito do que já foi destruído em São Paulo não tem retorno, fica na memória de alguns como parte de um passado longínquo ou próximo. Por outro lado, ainda há, apesar do que já se tornou impossibilitado devido à construção de diferentes tipos de impedimentos, condições de se recuperar e de se desenvolver espaços relacionais, de vida, onde se propicie e se garanta a possibilidade de convívio; onde se possa focar na construção e no cuidado do “entre”.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: desligamento, pulsão de vida, pulsão de morte, viver-junto.

Imagem: foto do autor do ensaio 

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Tags: desligamento | pulsão de morte | Pulsão de vida | viver-junto
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