Observatório Psicanalítico OP 591/2025 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Psicanálise e LGBTQIA+: uma relação em construção (1)

Alexandro Henrique Paixão – SBPSP e SBPCamp

Dialogando com as postagens do “Ocupação Mulheres” do Blog BVPS (1), trago memórias de uma entrevista com duas mulheres psicanalistas da atualidade quando tratamos da questão LGBTQIA+ dentro da Psicanálise no passado e no presente. Não expressarei as opiniões das entrevistadas, mas uma espécie de glosa daquilo que me mobilizou quando falamos sobre gênero e sexualidade e que me levou durante a pesquisa ao tema da homossexualidade dentro da International Psychoanalytical Association (IPA).

Relembrando Raymond Williams (2000), para quem os problemas são de perspectiva e fatos históricos, aponto mudanças significativas do ponto de vista voltado à homossexualidade no interior de uma associação internacional que organiza, regula, forma uma boa parte dos psicanalistas espalhados pelo mundo, que seguem suas diretrizes e princípios no tratamento psicanalítico da população e, pertencente a ela, a comunidade LGBTQIA+. 

Mais do que saber como as pessoas conversam entre si, que convenções utilizam para o que é importante ou não, conhecer as instituições e como elas agem construindo significados e valores é também fundamental, conforme indica Williams (2015). Nesse sentido, parece válido informar-se sobre uma associação internacional que norteia milhares de profissionais ocupados com a saúde psíquica das pessoas e sobre o modo como esta se relaciona com questões de gênero e sexualidade (2).

Falando das entrevistas, em 27 de novembro de 2021, ainda bastante alarmados, inseguros e sofridos com a situação da Pandemia de Covid-19 e as crises democráticas que o governo Bolsonaro nos impunha enquanto sociedade brasileira, tive saúde e oportunidade de realizar parte de uma pesquisa docente, entrevistando on-line a ex-presidente da IPA, a psicanalista portenha Virginia Ungar. Trata-se da primeira mulher eleita, em 2015, ao mais alto cargo da associação criada por Sigmund Freud, em 1910 (3). Seis meses depois, em 26 de maio de 2022, com o fim do isolamento social, entrevistei, em Paris, Élisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa, em uma conversa que rendeu frutos dentro da investigação sobre feminilidade e masculinidade na história, na literatura e na psicanálise, a qual venho realizando na Faculdade de Educação da Unicamp desde 2019 (4).

Indaguei Ungar e Roudinesco sobre o discurso e a prática psicanalítica realizada por mulheres no passado e no presente. Perguntei qual era o lugar, hoje, na psicanálise, para as questões de identidade e expressão de gênero e, depois de terminada nossa inspiradora interlocução, fui pesquisar sobre a questão dos analistas homossexuais, outrora proibidos de clinicar. Encontrei preconceitos e reparações históricas da Associação Internacional diante dos homossexuais e decidi compartilhar um pouco de minhas reflexões nesses últimos anos sobre o tema, começando por recolocar, esquematicamente, Freud frente ao problema.

Sigmund Freud foi um homem que, apesar do contexto patriarcal de sua época, soube dar atenção, cuidado e voz às mulheres e aos homossexuais que frequentaram seu consultório durante anos, traduzindo o mal-estar psíquico dessas pessoas em seus escritos sobre histeria, neurose obsessiva, homossexualidade masculina e feminina, perversões, fetichismo etc. Ele permitiu que essas pessoas se pronunciassem por meio de suas obras acerca das vicissitudes da sexualidade humana, utilizando, muitas vezes, a literatura e as artes plásticas, como no caso de Leonardo Da Vinci, para explicar que a homossexualidade era uma experiência também dos chamados gênios criadores. Era uma forma de abrandar a visão ortodoxa existente, enquanto tentava oferecer um tratamento psicanalítico adequado para todas as enfermidades psíquicas apresentadas em seu setting terapêutico. 

Aliás, temos que recordar que, caso as pessoas homossexuais fossem expostas na época, elas poderiam ser punidas, atacadas ou mesmo excluídas do convívio social. Mas, felizmente, encontraram no consultório de Freud o acolhimento e cuidado psíquico, ainda que ele as considerasse “pervertidas”, denominação dada aos homossexuais naquele momento. Aliás, Roudinesco recuperou esse tema contemporaneamente em vários de seus trabalhos, merecendo destaque seu livro A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos, lançado em 2008.

De volta a Freud, seus leitores conhecem bem as páginas de Os três ensaios da teoria da sexualidade(1905) e a relação estabelecida entre a homossexualidade e a perversão, bem como sabem que ele próprio revisou inúmeras vezes seus escritos e seu posicionamento datado sobre a sexualidade humana, conseguindo oferecer alguma reparação quando explicou que se tratava de uma exposição acerca de uma teoria psíquica da sexualidade; logo, falava de nosso funcionamento mental, e não, propriamente, da conduta de cada ser humano sobre sua sexualidade. Lembrei-me de uma carta de uma mãe de um filho homossexual (1935), em que Freud respondeu confirmando esse reposicionamento mais humanizado sobre os gays e as lésbicas. Disse que a homossexualidade “não é nada de que se deva ter vergonha, nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como uma doença… É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e uma crueldade também” (5).

Já do ponto de vista institucional, desde o momento da fundação da IPA por Freud, e até há pouco tempo – não esqueçamos que tivemos que esperar mais de um século para uma primeira mulher ser eleita à presidência da Associação Internacional, o que dirá dos homossexuais ou pessoas transgênero –, a abertura às chamadas minorias ainda está em andamento e tem sido pautada pela luta dos próprios psicanalistas, localizados em todo mundo, para incluir tais grupos na formação em Psicanálise ou na gestão das mais de 90 sociedades psicanalíticas existentes.

Foi somente na década de 1990 que começaram a aparecer os primeiros exemplos de mudança na perspectiva de sexualidade e gênero dentro da Psicanálise. Os precursores foram os psicanalistas da American Psychoanalytical Society (APsaA), a primeira sociedade a se posicionar, institucionalmente, em 1991, contra a discriminação de pessoas homossexuais, seguidos, em 1999, da IPA, que redefiniu esse cenário contra o preconceito à orientação homossexual para as sociedades de psicanálise globais. Outros exemplos que, inclusive, contribuíram para as mudanças, vieram de congressos, reuniões internas e produções escritas em revistas e jornais ao longo dos anos de 1990. Eles disseminaram um discurso psicanalítico crítico sobre a discriminação contra os homossexuais (Ayouch & Charafeddine, 2013). 

Como vemos, hoje podemos nos orgulhar dessas mudanças de perspectiva, embora a luta se mantenha, pensando que ainda não temos muitas notícias de psicanalistas transgênero clinicando ou presidindo sociedades de Psicanálise, sendo que o melhor exemplo de contestação desse fato adveio de Paul B. Preciado. Em 17 de novembro de 2019, ele palestrou para 3500 psicanalistas reunidos para a jornada internacional de Paris da Escola da Causa freudiana sobre o tema “Mulheres em psicanálise”, perguntando para a plateia se havia psicanalistas gays, trans ou não-binários na sala, tendo o silêncio quebrado por algumas risadas, seguidas não só degritos, acusações, mas também de aplausos (Preciado, 2022). Como vemos, pelos gestos contraditórios e espontâneos dessa plateia, o assunto divide especialistas do campo da Psicanálise, o que significa que gênero e sexualidade ainda são temas polêmicos, embora estejamos conseguindo avançar.

Ungar relatou que desde 2016 existe um Comitê de Diversidade e Gênero na Associação Internacional de Psicanálise (IPA Sexual and Gender Diversity Studies Committee), sendo que uma das primeiras reparações realizadas pelos membros participantes em 2017 foi se manifestar contra a visão patológica, pautada pela perversão, que tinham da homossexualidade. Segue parte da declaração da Associação: 

“Nos últimos anos, nosso campo teve de aprender uma lição dolorosa e difícil, pois lutamos com a questão de saber se a homossexualidade foi sempre e somente uma condição patológica e/ou perversão. Isso foi irônico, porque era algo que uma leitura cuidadosa e menos culturalmente determinada de Freud poderia ter nos ensinado, e lamentável, pois essa leitura poderia ter poupado várias gerações de pacientes da confusão e da angústia. Os psicanalistas devem considerar cuidadosamente as origens e os determinantes de nossas suposições e crenças e permanecer conscientes de que as crenças não são necessariamente fatos. Elas podem estar sujeitas a todos os tipos de forças, conscientes e inconscientes, que podem, sem querer, moldar seu conteúdo final.”(6)

Esse rosto mais humano que a Associação Internacional imprimiu na gestão de Ungar sobre a questão de gênero e sexualidade é algo digno de nota, mas muita coisa ainda precisa ser transformada. Como disse Julia Kristeva (2024), na ocasião do 51º Congresso Internacional da IPA em Londres, em 2019, o “feminino transformador” (“féminin transformatif”) não é propriedade das mulheres, pois a luta contra a discriminação de gênero e sexualidade é uma ação transformadora de todos.

Nessa direção, outro avanço: a Associação Internacional emitiu, em 26 de abril de 2022, uma “declaração de posição” acerca das tentativas de mudança de orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero,(7) solicitando a todos os psicanalistas associados que não somente respeitem as identidades sexuais e as de gênero em tratamento psicanalítico, como também se juntem contra quaisquer atitudes preconceituosas, diretivas ou coercitivas no tratamento. É uma reparação histórica dentro do campo da Psicanálise e motivo de orgulho dentro da luta LGBTQIA+ por uma sociedade mais respeitosa, ética e plural, além de ser mais saudável psiquicamente, algo que de fato nos deixaria bastante orgulhosos neste dia 28 de junho de 2025.

Significaria muito, na luta contra quaisquer tipos de discriminação, que a maioria da população brasileira, incluindo a comunidade LGBTQIA+, tivesse cada vez mais acesso ao tratamento psicanalítico transformado no que concerne às questões de gênero e sexualidade, algo que nos deixaria muito satisfeitos e alimentaria nossos sonhos neste Dia do Orgulho Internacional LGBTQIA+.

Notas 

(1)Texto, originalmente, publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), no dia 29 de junho de 2025, dentro da Ocupação Orgulho LGBTQIAPN+, ver: https://blogbvps.com/. Acesso em: junho 2025. Agradeço ao Miguel Cunha e André Botelho pelo espaço no BlogBVPS e por autorizarem a republicação.   

(2) Mais sobre a IPA, ver: https://ipa.world/ipa/IPADev/About__Us/Dev/Our_Org/The_IPA.aspx?hkey=f7609245-88ef-45ee-811d-c409758930a2. Acesso em: maio 2025. 

 (3) A IPA começou a ser gestada alguns anos antes, mas foi criada em março de 1910 na ocasião do Segundo Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Nuremberg, na Alemanha.

(4) A pesquisa geral intitula-se É preciso falar sobre os ausentes na história, na literatura e na psicanálise, dividida em dois grupos de trabalho: um (já concluído) intitulado “É preciso falar sobre as ausentes: mulheres cronistas na imprensa oitocentista (pesquisa em acervos)”; outro (em andamento) “O Rosto da Medusa: escritas femininas dentro da clínica de psicanálise e do discurso público psicanalítico na contemporaneidade (São Paulo, Londres, Paris, passado e presente)”.

(5) Para saber mais, consulte o site: https://oglobo.globo.com/brasil/carta-em-que-freud-trata-sobre-reversao-da-homossexualidade-compartilhada-nas-redes-sociais-21845301. Acesso em: maio 2025.

(6) Tradução livre minha, no original: “In recent years, our field has had to learn a painful and difficult lesson as we have struggled with the question of whether or not homosexuality was always and only a pathological condition and/or perversion. This has been ironic, because it was something that a careful and less culturally determined reading of Freud could have taught us and regrettable because of the confusion and distress that such a reading may have spared several generations of patients. Psychoanalysts must carefully consider the origins and determinants of our assumptions and beliefs and remain mindful that beliefs are not necessarily facts. They may be subject to all kinds of forces, conscious and unconscious, that may unwittingly shape their ultimate content”. Verifique o original no sitehttps://www.ipa.world/IPA/Dev/Our_Org/Committees/SEX-GENDER/CommitteeMaster?WebsiteKey=8c9dbf2e-30a1-4cd9-977f-a4cb5f4e071b&Code=SEX-+GENDER&CCOCommittee=1#CCOCommittee. Acesso em: maio 2025. 

(7)A nota pode ser consultada nesta página: https://www.ipa.world/IPADev/Dev/Our_Org/Procedural_Code/IPA_POSITION_STATEMENT_ON_ATTEMPTS_TO_CHANGE_SEXUAL_ORIENTATION__GENDER_IDENTITY__OR_GENDER_EXPRESSI.aspx. Acesso em: maio 2025.

Referências

Freud, Sigmund (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Sigmund Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (pp. 119-229). Imago.

Kristeva, Julia (2024). Prélude à une éthique du feminin. Fayard.

Preciado, Paul B. (2022). Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas. Zahar. 

Roudinesco, Elisabetu (2008). A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos. Zahar.

Ayouch, Thamy, & Charafeddine, Lucas Bulamah. A homossexualidade dos analistas: historia, política e metapsicologia. Percurso51, 115-126. 

Williams, Raymond (2000). Um problema de perspectiva.In Raymond Williams, O campo e a cidade: na história e na literatura (pp. 21-26). Companhia das Letras. 

Williams, Raymond (2015). A ideia de uma cultura comum. In Raymond Williams, Recursos da esperança (pp. 49-57). Editora Unesp.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores) 

Categoria: Instituições Psicanalíticas; Política e sociedade 

Palavras-chave: Psicanálise, Orgulho LGBTQIA+, Homossexualidade, Virginia Ungar, Élisabeth Roudinesco

Imagem: Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Os ensaios do OP são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:

https://www.facebook.com/share/p/15uZ9kvG8V/?mibextid=wwXIfr

Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico 

E para você, que é membro da FEBRAPSI e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie mensagem para [email protected]

Tags: Élisabeth Roudinesco | Homossexualidade | Orgulho LGBTQIA+ | Psicanálise | Virgínia Ungar
Share This