Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sódepois 62
Junho/2025
Foi também num mês de junho, mas em 1959, que uma jovem nascida em Jaú (São Paulo), “morreu” pela primeira vez: a professora foi acusada, juntamente com duas colegas, de pregar em sala de aula o amor livre e o ateísmo.
No ápice das manifestações exigindo que as três professoras fossem expulsas da cidade, a comunidade local montou pequenos túmulos para aludir ao sepultamento das indesejáveis “materialistas de paraquedas”¹ que ameaçavam a coesão social. Niède Guidon, a professora de ciências, morria.
Na tradição ocidental, a morte é simbolizada pela suspensão temporária de todas as cores, a escuridão. Foi no escuro das tocas e cavernas do Piauí, que Niède encontrou as cores das pinturas rupestres que despertaram sua paixão. Nascia uma arqueóloga.
Décadas depois, a fundadora do Parque Nacional Serra da Capivara, patrimônio mundial da UNESCO, em sua “Carta aberta aos cientistas e homens do futuro” (2004)², constatando que “templos, túmulos monumentais e palácios, sempre exigiram multidões de escravos para serem construídos e mantidos”, Niède compartilhou uma compreensão mais profunda: seu êxito não coincidia, nem se encerrava, com a formalização de um território ou com a titulação de um patrimônio.
Seu legado seriam as memórias sobre um processo turbulento, por vezes perigoso e doloroso, sempre precário e provisório, de uma humanidade feita e inscrita em ato, coletivamente: por ancestrais comuns, por aliados e adversários colecionados ao longo da vida, pelas famílias maniçobeiras do antigo povoado do Zabelê, reassentadas para a criação do parque.
Sua trajetória tornou-se metáfora viva: da opressão à reinvenção, da violência à práxis transformadora, do esquecimento à preservação. Nas trilhas dessa humanidade em ato, seguiram também os ensaios publicados no OP ao longo deste mês:
Em “Miséria do Esquecimento” (OP585/2025), Luiz Meyer (SBPSP) enfrentou uma difícil cartografia das disputas por territórios e patrimônios, concretos e simbólicos, entre judeus-israelenses, palestinos e todos que, por diferentes caminhos, também somos atravessados por contundente paradigma sobre os rumos da humanidade. Nesse gesto, nos encoraja ao resgate das memórias soterradas sob os escombros de explosões de crueldade e de bombardeios de ilusões totalitárias, como pondera Daniel Delouya (SBPSP), para não perdermos “O Pequeno Vão” (OP588/2025) por onde a humanidade se realiza como ato criativo de cooperação.
Se a humanidade cooperativa pede uma sociedade de enlutados do poder, lembremos que nosso luto não é só escuridão e silêncio. Também é batucada! A morte de Bira Presidente, sambista fundador do Fundo de Quintal e do lendário Cacique de Ramos, não calou o samba, assim como a partida de “Dom Marcelo Viñar” (OP587/025), lembrado por Magdalena Filgueira, APU, não apagou seu dom humanizador.
Esse movimento entre o que é imposto e o que é ressignificado nos coloca a pensar sobre expressões de violência institucional em nossas próprias “Formações…” (OP586/2025). Avelino F. Machado Neto, anunciando a aprovação de um novo processo de legitimação da função didática na SBPsb, a partir da experiência íntima e privada da dupla analítica, ilustra a realização de um ato coletivo que enfrenta hierarquias petrificadas. Somos convidados a repensar formas humanizadas de cultivar os laços com a história sem matar a experiência viva.
Experiência encarnada na vivíssima visita que recebemos este mês no OP: “João do Bloco” (OP589/2025), habitante da “dobra silenciosa onde dores vão repousar”, circula pelo mundo com um molho de chaves em uma mão e a outra sempre livre, disponível ao invisível. Aposta na força do gesto que desvela o não dito, abrindo as frestas soterradas, como feito em Maputo: em meio a um turbulento contexto sociopolítico, nossos colegas do Círculo Psicanalítico de Moçambique, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Psicanálise e a Febrapsi, sustentaram o VI Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa. Josiane Barbosa Oliveira, SBPRP, mais do que nos dar notícias do valente e necessário CPLP, faz passar pelas frestas da vida o “Dengo em Psicanálise” (OP590/2025), matéria-prima das mais especiais para construirmos a paz.
Reinvenção e sustentação são ecoadas por Alexandre Henrique Paixão, SBPSP e SBPCamp, em “Psicanálise e LGBTQIA+: uma relação em construção” (OP591/2025), revisitando uma lenta abertura institucional: um século desde Freud, que já distinguia funcionamento psíquico de prática sexual, até a eleição de Virgínia Ungar como primeira mulher à frente da IPA. Destaca, portanto, a sempre urgente responsabilidade de nossa comunidade reconhecer que constroi e reproduz significados e valores que transcendem seu próprio campo.
Campo, aliás, vizinho geminado da antropologia, conforme pudemos acompanhar no episódio 41 do podcast Mirante, “Totens e tabus: tudo é culpa da cultura?”. A partir de semelhanças entre os métodos investigativos, Marina Massi, SBPSP, e Michel Alcoforado, antropólogo, desenham juntos uma possível etnografia do desejo que permite a escuta do outro em sua diferença radical, realizando novos mundos mais do que servindo à incorporação a este mundo presente, cada vez mais devastado.
Devastação ambiental, em metáfora e matéria, em Gaza. A terra devastada por bombas é corpo e arquivo: território e patrimônio que guarda o resquício ancestral e os ossos recentes. As memórias soterradas e as incompreensões vivas. Ali também a preservação ambiental e a preservação histórica são uma só e pedem a desarticulação da lógica predatória. Escutar e ecoar os gritos de territórios devastados nos leva a reafirmar: não haverá psiquismo possível em um mundo sem solo, sem água, sem tempo e sem corpo vivo para sonhar.
Junho traz o cinza e o frio do inverno, mas, com ele, atualiza nossa capacidade de buscar o reencontro quente com as cores. Ali estão elas! Na chita das festas juninas, nas alegorias míticas do Festival de Parintins, no arco-irís da Parada LGBTQIA+, grandes eventos populares que aqueceram esse primeiro mês de inverno.
Se a crueldade insiste em cavar túmulos, vazamos pelas frestas resgatando cores e as usamos para pintar novos estandartes de afeto. Seguimos em marcha, com tinta fresca, tambores afinados e sementes na mão reflorestando o território da humanidade em ato. E caminhamos com João do Bloco, sempre com uma chave pronta para abrir novos mundos e outra livre a saudar a paz e a vida.
Encerramos este editorial com um até breve emocionado à querida Vanessa Corrêa (SBPSP), companheira de tantas jornadas, que se despede da Curadoria para se lançar em novos voos profissionais. Levamos conosco sua marca delicada e firme. Que este novo tempo que se abre diante dela seja fértil e luminoso. Ao mesmo tempo, acolhemos com alegria a chegada de Ana Carolina Alcici (SPRJ), que se junta a nós neste cuidado coletivo com o Observatório Psicanalítico — espaço que pulsa com os afetos e os pensamentos de quem o faz viver.
Referências:
1. Os caminhos de Niède Guidon. Produção B9, apoio do Instituto Serrapilheira. Disponível em https://youtu.be/_NKmywTqN4Q?
2. Carta aberta aos cientistas e homens do futuro. Publicado por FUMDHAM – Fundação Museu do Homem Americano. Disponível em https://blocosonline.com.br/
Forte abraço,
Beth Mori (SPBsb), Ana Carolina Alcici (SPRJ), Ana Valeska Maia (SPFOR), Cris Takata (SBPSP), Gabriela Seben (SBPdePA), Giuliana Chiapin (SBPdePA) e Lina Schlachter (SPFOR).
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: foto de Niède Guidon. Acervo Fumdham – Fundação do Homem Americano foto de Niède Guidon, símbolo de luta pela preservação da Serra Capivara (PI) – arquivo Fundham – fundação do homem americano
Categoria temática: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, Antropologia, Arqueologia, Niède Guidon
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