Observatório Psicanalítico OP 589/2025

 Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

João do Bloco

Avelino F. Machado Neto – SPBsb

Era conhecido, no prédio número 87 da Rua Murtinho da Costa, na Lapa, como João do Bloco. Não João da portaria, nem João do turno da noite, mas João do Bloco — como quem pertence à arquitetura, à ossatura do edifício, ou talvez ao bloco mais intangível da vida.

João limpava os corredores com uma dignidade que não fazia barulho. Tinha mãos que não pediam explicações aos azulejos encardidos, olhos que já viram de tudo, e um jeito de ouvir que parecia anterior à escuta. Seu posto era ao lado do hidrante, onde uma cadeira de plástico branca, já arqueada pelo tempo, lhe servia de trono provisório. Era ali, justamente ali, que as coisas extraordinárias aconteciam.

Não se sabe bem como começou — talvez com um choro contido no elevador, ou uma pergunta casual sobre o peso de um silêncio — mas, com o tempo, João passou a receber, ao cair da noite, visitas discretas dos moradores. Não para falar do encanamento ou da garagem, mas de seus temores, culpas, desejos indizíveis.

E João os ouvia.

Diferente de um psicólogo, ele não fazia perguntas técnicas. Diferente de um padre, não aconselhava. Diferente de um psicanalista, não interpretava — mas seus silêncios, longos como corredores antigos, pareciam convidar o outro a encontrar palavras que ainda não sabiam que sabiam.

Quando os primeiros começaram a relatar sonhos a João, ele apenas meneava a cabeça. Quando um deles confessou o desejo de desaparecer sem deixar carta, João não se espantou. “É o peso do ar que às vezes faz isso”, disse, como se estivesse descrevendo umidade no teto.

O inusitado aconteceu meses depois, quando três desses frequentadores do banco de João foram aprovados em rigorosa seleção para uma sociedade de formação psicanalítica ligada à IPA. A cerimônia foi solene. Fotos, discursos, votos de ética, juramentos de sigilo. Mas, logo após a festa, dois deles retornaram, envergonhados e esperançosos, à cadeira branca de João.

“Vamos continuar nossos encontros, não é?”, perguntou uma, com a mão sobre a bolsa como quem carrega segredo e ameaça.

João apenas sorriu com os olhos. Não disse sim, não disse não. A cadeira estava ali, como sempre, e o hidrante também. O prédio não se mexera.

O problema, contudo, não tardou a aparecer. Alguém da sociedade — talvez um zeloso fiscal da pureza teórica — soube da continuidade desses “atendimentos” paralelos. E um ofício foi emitido: “Informamos que não é permitido manter vínculos analíticos não regulados com indivíduos fora do corpo técnico reconhecido pela instituição. O Sr. João do Bloco não pertence ao nosso quadro.”

João leu a carta numa tarde chuvosa. Achou-a estranha. Ele nunca se considerou parte de nenhum quadro, e, ao mesmo tempo, não se sentia exatamente fora de nenhum. Que nome se dá a quem ouve com o corpo inteiro, sem diplomas nem divãs?

Comentou com Dona Isaura, a síndica, que riu e respondeu: “O senhor é nosso psicanalista de plantão, João. Só não tem jaleco.”

O mais curioso é que os que continuaram indo até João, agora o faziam com mais reverência. Um deles passou a trazer um café forte e sem açúcar, exatamente como João gostava. Outro deixou, certa noite, um pacote com meias novas, embrulhado num papel modesto. Nenhum gesto parecia pagamento — eram pequenos rituais de gratidão silenciosa, como quem acende vela para um santo sem altar.

Certa noite, João estava ausente. Um papel escrito com letra redonda colado ao hidrante dizia: “Volto logo. Fui cuidar da alma de um encanamento.”

Quem leu sorriu. Sabiam que João nunca esteve ali por salário. Ele habitava uma espécie de inconsciente do prédio — uma dobra silenciosa onde dores iam repousar.

Dizem que hoje, em certas instituições de formação, circula um boato entre os iniciantes: “Se você tiver sorte, pode passar pela análise com João do Bloco. Mas cuidado, ele não segue Freud, nem Lacan. Ele segue o que não tem.

Fragmento de um manuscrito inédito, encontrado entre os papéis do Dr. E. R. L., candidato à formação na Sociedade de Psicanálise dos Dois Rios

(Datado, segundo suposições, do outono de um ano sem importância)

É estranho escrever isso agora. Mais estranho ainda é tentar contar sem que me desvie do que sei e do que não ouso saber. Ainda me recordo do cheiro de produto de limpeza que precedia a chegada de João, todas as tardes às cinco, como um rito involuntário. Ele vinha com um pano no ombro, um molho de chaves na mão esquerda, e na direita — curiosamente — nada. A mão direita de João parecia sempre livre para o invisível.

Chamávamos-no, entre nós, de João do Bloco. A alcunha nascera espontaneamente, e se impusera como se já estivesse escrita em algum livro anterior a este mundo. Ele não era da portaria nem da limpeza; ou era das duas funções e de nenhuma. Morava no oitavo andar, em um quartinho que mais parecia uma observação clínica do espaço.

Não sei quando comecei a descer até o hidrante. Talvez após aquele sonho com a escada que não levava a lugar algum, ou após o seminário sobre o caso Schreber, em que percebi que os delírios alheios eram menos extravagantes que os meus. João me ouvia. Não como um analista escutaria. Nem como um pai, nem como um amigo. Havia um grau de suspensão em sua presença — algo que ressoava com aquilo que Bion talvez tivesse chamado de “sem memória, sem desejo”, só que acrescido de algo mais inconfessável: um cuidado sem nome.

Outros também vinham. Fomos nos reconhecendo pelo modo como olhávamos a cadeira branca junto ao hidrante. Ninguém se atrevia a sentar nela quando vazia. João a ocupava como um médium ocupa um corpo emprestado.

Fomos três — eu, M., e R. — os que passamos na seleção da Sociedade. Um feito. Uma marca. Fomos parabenizados com jantares, votos de confiança e manuais de conduta. Mas, no dia seguinte, um de nós já estava de novo no térreo, ao lado do hidrante. Com João.

Os encontros prosseguiram em segredo, como se fossem de outra ordem, mais grave, mais real. Tentamos nomear o que ocorria ali — análise selvagem, transferência não mediada, contravenção institucional? Nada cabia. O que havia entre João e nós era como uma voz que brota do meio do sonho e não obedece à lógica do narrador.

A notícia, como era de se esperar, chegou à diretoria. Um membro da comissão de ética nos convocou. A sala cheirava a mofo e protocolo. Disseram-nos que manter encontros dessa natureza, fora do escopo institucional, era não só irregular, como perigoso. Perguntaram: “Esse João é psicanalista?”

M. respondeu com honestidade: “Acho que não.”

R. preferiu o silêncio.

Eu, por minha vez, disse apenas: “Ele ouve.”

O mais curioso é que, naquela mesma semana, João desapareceu. A cadeira ficou vazia por três dias. Depois, um papel dobrado apareceu colado no hidrante. Nele se lia, em caligrafia simples: “Precisei sair. Fui cuidar do barulho de um cano que chora mesmo sem vazamento.”

Hoje, tantos anos depois, cada vez que escuto alguém falar de setting, de resistência, ou de neutralidade técnica, lembro da cadeira branca. E do olhar de João, que nunca pediu nada. Alguns dizem que ele voltou para o interior, outros que morreu. Há quem diga que ele fundou um pequeno centro em Paraty onde escuta pescadores e crianças. A verdade é que não sei. Talvez João nunca tenha estado aqui da forma como acreditamos.

Talvez tenha sido apenas a parte de nós que ousou escutar-se sem autorização.

Mas, se me perguntarem sob juramento de fidelidade teórica, negarei tudo.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Instituições Psicanalíticas 

Palavras-chave: Escuta clínica, Transferência informal, Clínica não convencional, Instituição e margem, Subjetivação

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Tags: Clínica não convencional | Escuta Clínica | Instituição e margem | subjetivação | Transferência informal
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