Observatório Psicanalítico OP 585/2025 

 Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Miséria do Esquecimento

Luiz Meyer – SBPSP

 “Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem a circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão é a de coração, no espírito, não na letra”. (São Paulo. Epístola aos Romanos- 2:28-29).

O texto “Desaprendendo com a Experiência” que enviei a esse OP desencadeou uma intensa reação composta de opiniões variadas, seja de apoio, seja de crítica, estabelecendo uma discussão que demonstrou o quanto este tema candente e controverso estava latente e carente de discussão. O OP revelou-se um fórum aberto e privilegiado para a exposição de pontos de vista diversos que vêm provocando uma polêmica produtiva.

Gostaria de comentar cada uma das contribuições enviadas que de forma direta ou indireta aludiram ao texto. Isto seria, porém, fastidioso além de ignorar que a situação abordada, salvo alguns aspectos que permaneceram constantes, é por demais dinâmica e volátil. A cada dia novos eventos, declarações de políticos civis e militares, tanto de Israel quanto de outros governos, artigos na imprensa escrita e na TV propõem novas perspectivas para a análise e compreensão desta guerra. Veja-se por exemplo o extenso artigo de Bruno Blecher, jornalista com profunda vivência de Israel, publicado na Folha de São Paulo em 01/06, assim como, o do professor Daniel Aarão Reis que abarca toda a história da Palestina e da criação do Estado de Israel, publicado no site: “A terra é redonda”, em 02/06.

O mais conveniente, pois, é sublinhar alguns temas que emergiram de modo mais constante reveladores de problemas centrais ligados ao conflito e expressos nas respostas. No comentário que farei, lanço mão de várias ideias que emergiram ao longo das discussões:

1) A criação de dois Estados como solução para o conflito foi uma das sugestões mais frequentes. Entretanto, é necessário entender por que ela está paralisada. Vivem atualmente em assentamentos na Cisjordânia 700 mil colonos israelenses, presença que aumenta de modo significativo com o passar do tempo. Trata-se de uma ocupação destinada a privar o povo palestino de autonomia sem a qual não lhes será possível constituir uma liderança política autêntica. A construção de dois Estados necessita a presença de dois negociadores investidos de poder e qualificados para esta tarefa. Isso é incessantemente minado. Em novembro de 1995, após negociações e acordos para a criação de dois Estados, Yitzahk Rabin, que representava a parte israelense, foi assassinado por um extremista de direita que o acusou de colocar vidas judaicas em risco ao ceder (sic) territórios aos palestinos. Em 1996 Netanyahu foi eleito.  Acho que não preciso dizer que a postura atual do governo de Israel é totalmente contrária à criação de dois Estados, o que é verbalizado constantemente por Netanyahu e seus ministros. Há, ainda, mais uma intenção entranhada nessa posição. A política que visa impossibilitar a solução de dois Estados criou uma dinâmica lenta e  progressiva destinada a estabelecer o Grande Israel, este sim do Jordão ao Mediterrâneo, varrendo a Cisjordânia do mapa e forçando os palestinos a abandonarem suas terras (ver artigo de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo, de 24/05/2025).

2) Outra questão levantada, correlata à recém comentada, é a necessidade e o direito de Israel se proteger de terrorismo do Hamas, mormente após o massacre de 07 de outubro. Embora este seja um ponto indiscutível, não é infelizmente o que Israel está fazendo. O serviço secreto israelense realizou operações cirúrgicas contra o Hesbolah. Valendo-se desde walkie-talkies “envenenados” até o bombardeio preciso dos prédios em que sua liderança se abrigava, foi possível eliminar toda a direção política do movimento. É difícil acreditar que o mesmo não pudesse ter sido feito na faixa de Gaza, por sinal continuadamente espionada. Isto leva a um dos pontos mais mencionados e relevantes da discussão que se estabeleceu no OP: a guerra não está sendo dirigida ao Hamas, mas à população palestina. As vidas inocentes perdidas, as crianças mortas, a imposição de um regime de carência total  marcado pela fome (de 12 a 18 de maio não se permitiu que qualquer ajuda humanitária – comida, combustível, medicamentos – entrasse em Gaza) visa uma certa limpeza étnica, além de desnortear a população palestina que é obrigada a se deslocar do Norte para o Sul e vice-versa, empurrada por um exército que a bombardeia e encurrala. Não é por acaso que a palavra genocídio é citada com tanta frequência em toda mídia para qualificar esta ação. 

No momento em que escrevo essas linhas, contabiliza-se, num cálculo conservador, vinte mil crianças mortas, e cinquenta mil civis, sem contar os que permanecem soterrados nos escombros.

3) Outro tema que emergiu em várias das contribuições foi o do antissemitismo. Eu o vejo como a loba, descrita por Dante logo no início do primeiro canto do Inferno:

”…e tanto che mai non empie fame 

e dopo il pasto ha piu fame che pria…”

Ou seja

“…tem uma fome que nunca se sacia

e depois de comer sente mais fome do que antes”

Este é um dos fatores que dá ao antissemitismo o seu funcionamento estrutural; ele gira movido pela procura incessante de vítimas que saciem algo que lhe é intrínseco, pois lhe fornece identidade. Deste modo ele irá criar o judeu até mesmo lá onde ele não existe. Isto aconteceu no governo Gomulka, comunista polonês que expulsou os poucos judeus remanescentes do Holocausto que ainda viviam na Polônia. Mas nem por isso cessou sua intensa companha antissemita; dela necessitava. 

O modelo da loba como metáfora do antissemitismo implica na existência de ao menos dois problemas: a) O primeiro é o de fornecimento de alimento à besta de modo a excitar seu apetite. O cerco à população de Gaza e as mortes dramáticas que dela resultam são úteis para manter a fome da fera (mais de um comentário no OP estabeleceu essa ligação); b) O segundo é a banalização de seu sentido: toda crítica dirigida às políticas do governo de Israel é recebida como se antissemitismo fosse. Esta é uma forma cínica e oportunista que dilui o verdadeiro sentido do termo. Netanyahu que brada Aos céus estar protegendo os judeus do antissemitismo fez três Visitas de Estado a Viktor Órban, governante da Hungria, antissemita notório que ressuscitou o culto de Miklos Horthy. Este era um nacionalista conservador, regente da Hungria de 1920 a 1941, implantador de leis antissemitas, aliado da Alemanha nazista e participante da deportação de judeus húngaros. Quando o Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou que “a política do cerco e fome a Gaza ridiculariza a dívida internacional”, foi acusado de antissemita pelo representante de Israel. Há ainda outra forma de manipular o antissemitismo que seria risível se não fosse tão ameaçadora. Refiro-me àquela de que Trump se vale para cercear o pensamento acadêmico e ameaçar de deportação qualquer um que expresse uma opinião contrária ao seu modo de pensar e à de seu establishement. Em nome do antissemitismo, uma varredura intimidadora está sendo feita no corpo discente e docente das universidades. 

Caso o OP dependesse de alguma verba pública para sua subsistência, ela a esta altura seria cancelada. E mais ainda: pergunto em sã consciência se alguém duvida que este supremacista branco não seja antissemita?

O antissemitismo, evidentemente, é sempre injustificável, mas para melhor combatê-lo é preciso entender a forma como é usado.

4) Muitas contribuições criticaram o fato de que meu escrito não abordava as inúmeras outras guerras, cruéis e destrutivas em vigência no globo. Mas esta acusação é claramente uma manobra diversionista. O texto visava um recorte específico da guerra vigente em Israel, sua dinâmica, a forma que assumiu a maneira como é impulsionada e as razões de sua permanência. Esta última pode ser explicada na medida em que um cessar-fogo real implicaria na queda do governo de Netanyahu e o início de seu julgamento.

5) Penso que é em torno desse recorte que orbitam as inúmeras contribuições que, em tom de triste desabafo, lamentam “como é difícil ser judeu hoje” (judeu no sentido descrito na epígrafe deste texto). Sou inteiramente solidário com elas.  No dia em que escrevi o texto, eu estava assistindo, depois do jantar, o noticiário da TV, quando surgiram na tela as cenas inomináveis da matança em Gaza. Mais do que revolta, senti uma imensa vergonha. Lembrei-me de meus avós, de minha tia, de primos, todos assassinados de modo cruel e sem defesa no Schedel em que viviam. Senti que agora estavam fazendo com os palestinos o mesmo que fizeram com meus antepassados. Me levantei, fui à escrivaninha, e escrevi o texto praticamente de enfiada.

Esta não é uma guerra ideológica (mesmo que um ou outro lado dela se aproprie para criar um viés de direita ou de esquerda). Também não é apenas uma guerra entre um grupo terrorista fundamentalista e um Estado que se propõe a eliminá-lo. Não é somente uma guerra onde a compaixão deu lugar à crueldade.

É uma guerra da qual os que foram vítimas tornaram-se algozes.

Mais do que ao Holocausto remete ao seu esquecimento.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores) 

Categoria: Sociedade e Política 

Palavras-chave: Holocausto, Guerra, Governo de Israel, Gaza, Antissemitismo

Imagem: Inferno de Dante e a loba. https://bornalcerebrau.blogspot.com/2023/10/a-criacao-do-inferno-por-dante.html

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Tags: Antissemitismo | Gaza | Governo de Israel | guerra | Holocausto
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