Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Formações…
Avelino Neto – SPBsb
Tenho lido e ouvido com frequência uma frase que sempre me põe a pensar, talvez justamente por sua aparente simplicidade e contundência: “Psicanalista é quem uma pessoa escolhe para ser seu psicanalista.”
À primeira vista, é difícil discordar. Há algo de profundamente verdadeiro na ideia de que a psicanálise nasce de um encontro, de um ato de escolha subjetiva que instaura, entre duas pessoas, uma experiência absolutamente singular. No entanto, essa afirmação, ao mesmo tempo que seduz, provoca inquietações que não podem ser ignoradas. Ela nos força a interrogar: o que legitima uma análise? O que, afinal, funda o lugar do analista?
A frase sugere — e talvez com razão — que a existência de uma psicanálise se sustenta menos em certificações formais e mais no vínculo único entre sujeito e analista. Se há transferência, se há escuta, se há trabalho de elaboração, se há transformação subjetiva — enfim, se o processo vivido é reconhecido, por ambos, como efetivamente analítico — isso não bastaria para que ali se diga que há uma análise em curso?
Essa perspectiva, que se aproxima de uma concepção mais ética e experiencial da psicanálise, entra em tensão com os parâmetros institucionais historicamente construídos pelas escolas de formação. A tradição, nas diversas vertentes do campo psicanalítico, sustenta a importância do chamado tripé: análise pessoal, supervisão clínica e transmissão teórica. Esse tripé busca garantir, de modo ao menos simbólico, uma consistência na formação do analista, conferindo-lhe um pertencimento e um laço com a história e os fundamentos da psicanálise.
No entanto, surge uma questão legítima: seria menos válida a decisão livre, entre duas pessoas, de que ali se faz uma análise, só porque ela se deu fora do circuito institucional? Estaríamos diante de uma prática menos legítima apenas por não carregar a chancela de uma escola ou de um percurso pré-determinado?
E se o dito psicanalista — aquele a quem alguém confiou seu inconsciente — jamais tiver feito parte de uma instituição ou frequentado os ritos de uma formação formal? E se, ainda assim, seu analisando demonstrar interesse e potencial para tornar-se psicanalista, buscando se formar em uma instituição como a nossa, mas sem querer romper com esse vínculo originário? Por que obrigá-lo a trocar de analista, se aquele vínculo é vivido, por ele, como verdadeiramente analítico?
Não seria essa imposição uma espécie de violência simbólica? Um deslocamento forçado de um lugar subjetivo já construído em nome de uma norma que, embora necessária, talvez esteja envelhecida em certos aspectos? Se aceito pela instituição, esse candidato teria acesso aos espaços de supervisão e de estudo, podendo ampliar, com isso, sua compreensão teórico-clínica da psicanálise. Não seria essa integração uma forma possível — e talvez até desejável — de articulação entre experiência viva e saber estruturado?
Tal abertura poderia, inclusive, enriquecer a formação psicanalítica, tanto no aspecto quantitativo — ao acolher mais trajetórias singulares — quanto no qualitativo, ao reconhecer que o percurso de análise pessoal não precisa, obrigatoriamente, ter se iniciado nos moldes tradicionais para ser válido. Esse tipo de movimento nos convida a pensar, com honestidade e coragem, até que ponto nossos critérios de validação de uma análise não se apoiam, muitas vezes, em convenções institucionais que, se por um lado oferecem um necessário resguardo ético e teórico, por outro podem se tornar barreiras a experiências legítimas que emergem nas margens do sistema.
O desafio, portanto, é pensar essa tensão não como uma ameaça, mas como uma oportunidade de debate. Abrir espaço para essas perguntas talvez seja uma forma de nos recolocarmos diante da própria questão fundante da psicanálise: o desejo — de se analisar, de escutar, de transmitir. E, quem sabe, repensar, ao menos em parte, o que entendemos por análise legítima, por formação possível e por psicanalista em ato.
Nesse espírito, a Sociedade Psicanalítica de Brasília (SPBsb), em consonância com seu compromisso permanente com o aprimoramento possível na formação psicanalítica, aprovou em assembleia recente uma atualização em suas diretrizes. A nova deliberação estabelece que candidatos aprovados no processo seletivo para a formação que já estejam em análise com um membro da SPBsb — com frequência mínima de três sessões semanais — poderão dar continuidade a essa análise como parte de sua análise de formação.
Para isso, o analista deverá encaminhar à Comissão de Ensino uma solicitação formal de reconhecimento da função didática para esse vínculo analítico. A autorização estará condicionada à inexistência de registros na Comissão de Ética relativos à sua atuação e à comprovação de sua prática clínica por meio da entrega de um memorial descritivo de sua trajetória profissional na Psicanálise.
Com essa medida, a SPBsb reafirma seu empenho em garantir a seriedade e a qualidade do processo formativo, respeitando a singularidade dos percursos analíticos e reconhecendo a potência das experiências que se constituem, às vezes, fora dos moldes tradicionais.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Formação psicanalítica, análise didática, ética, legitimidade, formalismos.
Imagem: Dois personagens conversando na mesa. Pintura a óleo. Gerke Henkes (1844-1927)
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