Observatório Psicanalítico Editorial maio/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 61

Maio/2025

Entre fumaças, guerras e reinvenções: palco, sala, divã e trincheiras. O OP no mundo.

Maio começou sob o signo do trabalho — e do feriado que, no Brasil, o celebra. Mas este mês, que tradicionalmente evoca também as mães, trouxe um conjunto de acontecimentos que reverberaram de modo intenso na cultura, nas redes, nas conversas e, claro, no Observatório. Muitos deles não se transformaram diretamente em ensaios, mas nem por isso passaram despercebidos ao nosso olhar.

Logo no início, o anúncio da eleição do novo Papa mobilizou o mundo. A fumaça branca, imagem que atravessa séculos, parece ter o poder de suspender o tempo. Gente parada diante das telas, outros tantos deslocando-se até Roma. Por que esse ritual ainda convoca, até entre os não católicos? O que nele ressoa — tradição, pertencimento, desejo de transcendência, ou quem sabe uma busca por alguma estabilidade simbólica em tempos líquidos?

No entanto, rapidamente a fumaça branca se tingiu de tons sombrios. O novo pontífice reafirma que a família é composta por homem e mulher. Um retrocesso? Uma tentativa de reinscrever no simbólico normas que já não se sustentam na experiência viva de milhões? E cabe lembrar: afinal, Francisco de fato reconhecia os casamentos homoafetivos? As ambiguidades da instituição católica seguem, mais uma vez, tensionando os debates.

Em contraste, outro evento reuniu mais de 2,5 milhões de pessoas — mas, desta vez, não em busca de transcendência divina, e sim da experiência coletiva proporcionada pela arte. Lady Gaga entrou para o Guinness Book com o maior público já registrado para um concerto solo. O evento gratuito, que recebeu o apelido de “Gagacabana”, foi um espetáculo nas areias de Copacabana. Descrito como uma ópera gótica em cinco atos, foi também uma performance política, abrigo e afirmação para corpos dissidentes, especialmente pessoas LGBTQIA+. Por que Gaga? O que ela encarna? Que tipo de amor, de força e de resistência pulsa ali? Enquanto na cúpula da Igreja reverberam discursos de exclusão, no palco carioca corpos diversos celebram sua existência.

Ainda na cultura, o cinema brasileiro brilhou em Cannes, com a premiação do ator Wagner Moura e do diretor Kleber Mendonça Filho. Mais uma vez, a potência da nossa sétima arte mostra que narrar a si mesmo é também uma forma de existir no mundo e disputar sentidos.

Maio se despediu de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai, cuja morte reverberou como um luto coletivo. Homem que fez da política um exercício ético, da simplicidade um gesto revolucionário e da defesa dos direitos de todos uma prática cotidiana. Mujica deixa um legado potente para quem acredita na democracia, na solidariedade e na construção de um mundo menos desigual. 

Em maio também se despediu de Sebastião Salgado, fotógrafo que fez da imagem um testemunho e um grito. Seus olhos — e suas lentes — captaram a beleza ferida do mundo, as cicatrizes da humanidade, os rostos invisibilizados pela história. Entre minas de carvão, campos de refugiados, florestas ameaçadas e territórios em resistência, Salgado nos ensinou que olhar não é um ato neutro: é escolher não desviar. Sua obra é, ao mesmo tempo, denúncia e reverência — denúncia da desigualdade, da destruição, do exílio; reverência à dignidade dos corpos que insistem, que seguem, que resistem. Sua morte não apaga sua missão: seguir mostrando que cada vida importa, que cada rosto carrega um mundo, que a beleza pode ser também um gesto político.

E se maio fala de mães, trouxe à cena um fenômeno curioso e inquietante: a crescente visibilidade dos bebês reborn. Bonecos hiper-realistas que reproduzem com detalhes impressionantes bebês de verdade. São cuidados, alimentados e vestidos como se fossem vivos. Uma prática que atravessa temas como luto, desejo, maternidade, elaboração da perda e, ao mesmo tempo, escancara os paradoxos de uma sociedade que mercantiliza afetos e simula vínculos.

Para ajudar a pensar sobre as maternidades, no podcast Mirante buscamos a literatura. Foi com Rhaina Ellery e a psicanalista Rafaela Degani (SBPdePA) que encontramos palavras que expandem o olhar sobre essa função. Elas são autoras, respectivamente, dos livros “Mas não guardo rancor” e “Menina em claro”. Convidamos todos a escutar o nosso podcast, presente em todas as plataformas de áudio.

O mês também foi marcado pela divulgação de novos estudos genéticos sobre a formação do povo brasileiro. Pesquisa liderada por cientistas da USP analisou o genoma de 2,7 mil pessoas, de todas as regiões do País; os resultados foram publicados na revista Science. A ciência confirmou, mais uma vez, o que a história já contava: as linhagens maternas são majoritariamente indígenas e africanas; as paternas, europeias. Um dado que denuncia, de forma incontornável, a violência sexual colonial — homens brancos, colonizadores, e mulheres negras e indígenas, corpos colonizados. A miscigenação no Brasil não se deu como celebração da diversidade, mas, na origem, como imposição, apropriação, dominação. Cicatrizes que a genética revela e que a cultura, tantas vezes, se esforça em não nomear.

Nesse mesmo maio, em Maputo (Moçambique), aconteceu o VI Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa: “Como se fabrica a guerra? Como se constrói a paz?”. Um evento que, em si, convocou reflexões sobre colonização, língua, memória e reinvenção. O Congresso terminou, no dia 18, com um manifesto de repúdio às declarações de Donald Trump, que sugeriu transformar a Faixa de Gaza em uma “riviera” no Oriente Médio. Um ultraje. Uma perversão simbólica e política diante da catástrofe humanitária em curso. A Febrapsi, além de endossar esse Manifesto, publicou o Ecos de Maputo.

Fernanda Marinho (SBPRJ) foi quem trouxe esse assunto ao nosso grupo de e-mails, reativando seu ensaio publicado em 2023 — Quebrando o silêncio (OP-454/2023). Com ele, acendeu uma intensa troca de mensagens sobre a guerra no Oriente Médio. Colegas de origens judaica, árabe, e tantos outros profundamente afetados, se encontram nesse espaço coletivo do OP para partilhar angústias, elaborar pensamentos, discordar, sustentar o debate e suportar, juntos, o peso desse sofrimento. A guerra não ficou lá; atravessou fronteiras, instalou-se nas transferências, nas palavras, nos silêncios e no desconcerto de quem sabe que não há respostas simples nem soluções fáceis.

É nesse campo vivo, pulsante, complexo, que também ecoaram os ensaios publicados no OP em maio. Avelino Neto (SPBsb), em “De suposições cruzadas” (OP-579/2025), reflete sobre como os desencontros das suposições inconscientes — na cultura, na clínica, nas relações — podem produzir tanto impasses quanto invenções. O colega argentino Mariano Horenstein, da Associação Psicanalítica de Córdoba, em “Mais uma língua” (OP-580/2025), traz uma reflexão potente sobre o multilinguismo como destino, como perda e como reinvenção. A língua como lugar de exílio e de criação — tema que conversa diretamente com os deslocamentos forçados pela guerra e pela história. Marina Bento Gaustad (SPPA) em “Dying for sex” (OP-581/2025), aborda, com precisão e coragem, os enlaçamentos entre sexualidade e pulsão de morte no contemporâneo. Um texto que interroga os excessos, os riscos e as ambiguidades do desejo hoje. Gustavo Alarcão, da SBPSP, em “Gil, Preta e Drão” (OP-582/2025), constrói um ensaio que transita entre a música, os afetos e as reinvenções possíveis no amor, na filiação e na transmissão — ecos sensíveis, especialmente num mês que convoca as mães e as genealogias. Luiz Meyer (SBPSP), com “Desaprendendo com a experiência” (OP-583/2025), nos convida ao exercício radical de desaprender — gesto clínico, político e ético diante de um mundo que, às vezes, só permite seguir adiante se formos capazes de soltar as velhas certezas. E, por último, Avelino Neto (SPBsb), retorna com o ensaio “Nomear os pequenos mortos” (OP-584/2025), quando dá nome ao que tantas vezes fica na sombra: lutos não elaborados, pequenas mortes cotidianas, microviolências que se acumulam e assombram tanto os sujeitos quanto às coletividades.

E como se tudo isso não bastasse, assistimos, estarrecidas, a mais um episódio de violência de gênero, desta vez no Senado Federal, quando a ministra Marina Silva, mulher, negra, ambientalista, foi alvo de ataques machistas, desqualificações e humilhações públicas por parte de senadores homens. Um espetáculo da misoginia institucional, que expõe não só o racismo estrutural, mas a resistência brutal, ainda hoje, ao lugar das mulheres no espaço público. Nós, da curadoria — mulheres —, não passamos incólumes por esse acontecimento. Sentimos, no corpo e na alma, esse ataque que é contra Marina, mas que é também contra todas nós. Uma violência que se repete, que tenta nos calar, nos constranger, nos deslegitimar. Mas seguimos. Seguimos dizendo, escrevendo, nomeando, sustentando o que nos constitui como sujeito e como coletivo.

E seguimos também celebrando um marco: o OP chegou a 700 colegas-participantes no grupo de e-mails. Um número que não é apenas quantitativo. É expressão do que este espaço se tornou — palco, sala, divã, ágora, trincheira, continente para as manifestações do desejo, da cultura, do sofrimento e da invenção. Para quem quer seguir pensando conosco na aposta de interface da psicanálise com a cultura, reiteramos nosso convite: solicite sua inscrição enviando seu pedido para o e-mail [email protected]. E mais: este é também um espaço aberto à escrita. Convidamos todos os colegas a enviarem ensaios, comentários, reflexões e provocações, ajudando a manter viva essa rede de pensamento, escuta e criação.

Por fim, é preciso reafirmar: o papel da curadoria não é silenciar — nunca foi. Nossa tarefa é sustentar o espaço, manter sua abertura, sua vitalidade, sua potência como agenciamento institucional de conversação, onde a escuta, o debate, o conflito, o dissenso e, sobretudo, o laço entre psicanalistas se torna possível. Porque somos sujeitos atravessados pela época, porque somos corpos afetados, porque a psicanálise também se faz nas tramas da cultura e da história.

Se tanta coisa nos atravessa, é porque seguimos disponíveis para sustentar, juntos, este acontecimento coletivo que é o Observatório Psicanalítico.

Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Cris Takata (SBPSP), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Lina Schlachter (SPFOR), Vanessa Corrêa (SBPSP).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Arte de Simone Gomes. Fotomontagem Jornal da USP com imagens de Wikimedia e Freepik. Disponível no site: https://jornal.usp.br/ciencias/estudo-mapeia-impactos-da-miscigenacao-no-dna-e-na-saude-da-populacao-brasileira/

Categoria temática: Editorial  

Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Miscigenações, Perdas, Mortes, Guerras 

Os ensaios do OP são postados Psicanálise e Cultura. Observatório Psicanalítico.

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Categoria: Editoriais
Tags: Guerras | Miscigenações | mortes | observatorio psicanalitico | Perdas
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