Observatório Psicanalítico OP 575/2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

A consciência da beleza

Ana Valeska Maia Magalhães – SPFOR

Algumas semanas após a morte de minha mãe, a psicanalista e escritora Helena Cunha Di Ciero fez chegar em minha casa seu livro recém-lançado: ‘O que enxerguei quando seus olhos ficaram opacos’.

Era fevereiro e guardei o livro sem abrir. O luto é, em suas sombras, doído e processual.

Intuitivamente eu sabia não estar preparada para ler o livro da Helena naquela época. Precisava do trabalho do tempo para lavar as memórias feridas, impregnadas pelos anos da doença, cirurgias, quartos de hospital, remédios, médicos, exames, desesperanças e a visão constante da dor nos olhos maternos.

Rosa Montero diz que em nascimentos e mortes saímos do tempo. Para ela, é como se o presente se partisse ao meio e nos permitisse “espiar por um instante pela Fresta da verdade – monumental, ardente e impassível. Nunca nos sentimos tão autênticos quanto ao beirarmos essas fronteiras biológicas: temos a clara consciência de estarmos vivendo algo grandioso.”* Espiar pela fresta da verdade e ser olhada de volta. Amar como se não houvesse amanhã.

Hoje, enfim, li o livro. A escrita de Helena é delicada (que eu já conhecia como leitora da publicação anterior, ‘Instantes de dentro’). É sobretudo uma escrita poética, elaborada como um diário, na qual navegamos nas flutuações das lembranças da autora e sua mãe, nos anos de vida compartilhada e nos momentos de despedida.

‘O que enxerguei quando seus olhos ficaram opacos’ é um livro sobre a consciência da beleza. Aquela beleza que transpareceu nos detalhes cotidianos, nos gestos e expressões de um ser amado que partiu.

É sobre tornar-se órfã e reaprender a viver nessa condição, tendo a memória amorosa como companheira.

A beleza também está presente no projeto gráfico da obra, elaborada com costura manual, capa de papel artesanal e tipografia de letras douradas em baixo relevo. O livro foi lançado no final de 2024 pela editora Quelônio.

Por fim, a beleza está na força da literatura, nos afetos que as palavras movimentam em quem lê.

Após a morte de minha mãe adquiri um hábito: passei a ter muitos vasos com flores em casa. Quando concluí a leitura, mirava um desses vasos floridos e, num cochilo involuntário, sonhei. Eu retornava à casa da infância. Ao estar novamente naquele lugar longínquo e conhecido, antes de abrir a porta para entrar, escutei a voz de minha mãe: ‘minha filha, foi você quem chegou?’

*Rosa Montero: A ridícula ideia de nunca mais te ver. Todavia, 2019.

(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)

Categoria: Política e sociedade; Cultura

Palavras-chave: mãe, beleza, luto, memória, literatura.

Imagem: Capa do livro ‘O que enxerguei quando seus olhos ficaram opacos’, de Helena Cunha Di Ciero.

Os ensaios do OP são postado no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:

https://www.facebook.com/share/p/1FijFDNRbr/?mibextid=wwXIfr

Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico

E para você, que é membro da FEBRAPSI e se interessa pela articulação da psicanálise com a cultura, inscreva-se no grupo de e-mails do OP para receber nossas publicações. Envie mensagem para op.febrapsi@gmail.com

Tags: beleza | Literatura | luto | mãe | Memória
Share This