Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Os reencontros nos funerais
Carmen Maria Souto de Oliveira – SPBsb
Comecei o ano pensando sobre as perdas das pessoas queridas no ano passado (que não foram poucas) e a cada ano que passa e, consequentemente, com o avanço da minha idade, aumenta também a minha presença em velórios, enterros ou cremações de familiares, amigos e conhecidos. Como decorrência imediata, comecei a observar mudanças nas emoções e no comportamento durante as cerimônias de despedida, além de aprofundar reflexões sobre o nosso relógio do tempo.
Quando criança, lembro, era um silêncio total e muitas orações. Agora, nos funerais, sinto no ar uma mistura de sensações e sentimentos, que vão desde um profundo luto a um júbilo espontâneo. Obviamente, há a natural comoção, choro, sofrimento e tristeza pela perda da pessoa querida, mas paralelamente percebo uma pequena dose de euforia, sem constrangimento, nos encontros inesperados de antigos e distantes amigos, colegas, parentes e imagino que até inimigos. Esses encontros lembram, às vezes, confraternizações, pelo burburinho motivado por risadas sem acanhamento, provocadas pelos reencontros, abraços demorados, tapinhas nas costas, olhares afetivos e beijos fraternos.
As pessoas circulam e o clima vai mudando, formam-se e desfazem-se pequenos grupos, entre a sala principal de despedida e homenagens, comumente chamada de capela, onde fica o caixão com o corpo a ser velado e as varandas ao redor do espaço principal. Quando ficam sentadas e, em silêncio, não desgrudam do celular sem ao menos disfarçar o desinteresse pelo o que está ocorrendo à sua volta.
As conversas costumam girar em torno das boas lembranças vivenciadas conjuntamente, atualizações sobre emprego ou aposentadoria, casamentos e descasamentos, filhos, netos, política e, como não pode faltar, sobre a causa mortis do falecido e dos outros conhecidos que já foram para outro plano.
Alguns bate-papos são tão efusivos que chamam a atenção da família, que está alheia àquela movimentação, voltada para a sua dor, em meio a uma incredulidade que só o tempo ajuda a aceitar e refletir sobre a efemeridade da vida.
Eventualmente pondero que a pessoa falecida chega a ser “esquecida”, deixa de ser o protagonista porque já não está entre nós e o que importa naquele momento é a morte em si, que parece ser sempre uma surpresa.
Freud, em seu texto “A Transitoriedade”, nos lembra que a efemeridade das coisas torna a vida mais bela e eu digo que talvez, também, mais preciosa. Apesar da triste circunstância, penso que os encontros nos velórios, enterros ou cremações são gratificantes e chegam a ser apaziguadores, afinal, de certa forma, o fato de estarmos vivos reforça que ainda não foi a nossa vez.
Como disse Aristóteles, “sorte é quando o sujeito ao seu lado é atingido pela flecha”. Nessas situações também surgem dúvidas silenciosas como: quem será o próximo no caixão? Não estar naquele lugar dá alívio ao mesmo tempo que vem uma certeza da qual passamos a nossa vida a fugir – não escaparei, embora esse seja o desejo mais profundo de todos nós. Aqui uma brincadeira de criança: “passa morte que tô forte”. Retomando Freud, em O Estranho, podemos pensar que em nosso inconsciente existe a ideia de nossa própria imortalidade.
Enfim, nos funerais comemoramos a vida dos que estão ali e, também, celebramos e agradecemos a existência do morto, da qual participamos com mais ou menos presença, pois não há vida sem glória ou sem importância e, nesses momentos confirmamos isso, independentemente da quantidade de pessoas presentes nas despedidas.
Finalizo com uma frase do meu já falecido e bem humorado pai: “este ano morreu gente que nunca havia morrido”.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: morte, imortalidade, velórios, funerais
Imagem: “Os egípcios enterravam seus mortos na banda ocidental do rio Nilo, pois lá — acreditava-se — o sol iniciava sua jornada noturna através do mundo dos mortos.”
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