Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A raça em primeiro
Daniel Delouya (SBPSP)
Com quatro ou cinco anos, um irmão, doze anos mais velho, me ameaçou em tom jocoso: “vou acabar com sua raça” (“Je casse ta race”), enquanto corria atrás de mim. Tudo isso por causa de alguma estripulia ou travessura que cometi, mas da qual não tenho memória alguma. Apenas a frase, a voz e o tom – uma mistura de brincadeira e de intimidação – ficaram cravados em mim. Com o passar dos anos, falei mais sobre a pulsão, mas pensei e senti mais a raça, a minha. Na canção abençoada de Gilberto Gil, e conhecida de todos, “a raça humana é uma semana de trabalho de deus; é a ferida acessa; uma beleza, uma podridão; risca, rabisca, pinta … o rosto da saudade”. Sim, e tem mais: é “fogo, morte, lágrima, solidão…”. Quem poderia ser mais preciso?!
A raça se manifesta, em alguns, como um orgulho de pertencimento. Contudo, ela é, frequentemente, uma ferida aberta, resultante da arrogância do outro, que concebe a sua como hegemônica em relação às demais e, assim, torna a minha abjeta. Onde outrora me encontrava, desde sempre, no prazer de existir, no amor das palavras dos adultos que me designaram sujeito, tornou-me, agora, exilado: expulso e banido de meu lugar, do meu corpo, da saudade própria à minha pátria e mátria. Uma vivência de destituição de si que emerge, por exemplo, na recordação da descoberta inaugural, como criança ou púbere, de que a própria inclinação sexual destoa do que é considerado aceitável no entorno humano.
O sujeito, desde os seus primórdios, está vinculado, pelo desejo, aos objetos. A abjeção destitui, simultaneamente, o sujeito e seus objetos (assim como o eu enquanto objeto do outro), como observou a minha amiga Berta H. Azevedo. Muito antes de começar a escrever seu primeiro livro Os armários vazios (1974), Annie Ernaux registrou em seu diário, em 1962, aos 22 anos de idade, o projeto ao qual se dedicaria: “vou vingar a minha raça”. A raça, aqui, não se refere apenas à cor – branca, negra, indígena, amarela – que é difícil de ocultar, nem se limita à religião ou à nação. Ela abarca também os gêneros (binários e não binários) e, sobretudo as classes sociais, além de outras categorias que marcam diferenças e exclusões (normais/loucos; nativo/imigrante; saudáveis/doentes, estranhos, etc.). A luta de classe, afinal, constitui um eixo particular da luta de raças, como Annie Ernaux, Didier Eribon e Eduard Louis, nos fazem perceber.
A raça foi descoberta na psicanálise no âmago daquilo que nos constitui como seres humanos, ou seja, nossa singularidade. O sujeito se constitui pela lógica das regras de pertencimento ao grupo. O primeiro ensaio de Totem e Tabu é, a esse respeito, o mais arguto: nele, Freud mostra como, nas aborígenes australianas, a proibição de incesto imposta pelo totem define o sítio e o perímetro da singularidade potencial do sujeito, pela inscrição da filiação e do pertencimento ao grupo, desvinculados, inicialmente, das logicas “naturais”, biológicas. Ou seja, é a constituição do desejo e do sujeito, por meio de totem e tabu, que está na origem do mapeamento do ser, e que mais tarde se estende à biologia. A biologia, por sua vez, herdou os gêneros e as gerações do mundo psíquico, e não inversamente, como se costuma pensar! Uma década mais tarde, em O eu e o isso, esse delineamento do lugar do sujeito estará plasmado na identificação primária, sem investimento, na qual o recém-nascido se reconhece (humano) no adulto. Entretanto, essa reivindicação filogenética é apenas o molde dentro do qual o sujeito é impelido a conquistar sua raça, sua identidade, pelas designações dos adultos que lhe concederiam o lugar e a morada no mundo humano. Principiante nessa empreitada, ele adquire tais designações e mensagens no eixo da atenção e dos cuidados do adulto em meio ao desamparo, ao desconhecido, e ao caos gerado por exigências vitais e estímulos do mundo que se abatem sobre ele. Essas designações, “notícias de si” – como Freud (1895) as denomina – e que dotam o bebê de suas “imagens de movimentos”, preenchendo ou realizando o molde da herança filogenética da espécie, tanto como coordenadas de desejo quanto como “traços de caráter” do sujeito (Freud, 1900), protegendo-o do marasmo originário. Esse é o estofo de nossa raça
Foi Ferenczi quem restaurou o eixo constitutivo do sujeito pelo adulto ao enfatizar que a falta em prover a criança com “notícias de si”, com suas imagens ternas de movimento, equivale a desmentir suas vivências, invalidá-las, recusá-las, acarretando um modo de sobrevivência pela dissociação e cisão, no qual a criança conlui com essa violência, abdicando da própria raça, rechaçando-a. Não obstante, a violência do adulto é uma perpetração de seus próprios traumas quanto à sua raça e suas aspirações desejantes. Como exemplos disso sugiro O lugar (A.Ernaux), O retorno a Reims (D. Eribon) e O fim de Eddy (E.Louis).
Como lidamos com essa transmissão transgeracional que se depara, ainda, com uma realidade traumatogênica? Lembro-me de meu pai queixando-se com minha mãe em uma língua (árabe) que eles acreditavam desconhecida para nós, crianças, e que, infelizmente, acabei perdendo: “viemos para essa terra para nos reunirmos ao nosso povo, fugindo do ódio dos árabes, e eis que estamos aqui e nos humilham por sermos judeus marroquinos: que mundo é este?!” Logo na escola, sentimos vergonha duplamente marcada – como imigrantes e marroquinos – pela vergonha dos pais, seus hábitos estrangeiros, sua dificuldade com a nova língua, seu sotaque carregado… Tudo isso diante do paradoxo enunciado por meu pai, que reduplica de forma mais aguda os estrangeiros que fomos na terra de origem, embora nossos antepassados residissem no lugar desde a fuga da inquisição, desde 1492… Paradoxos, aliais, cuidadosamente tratados na autoanálise do judeu e norte africano Jaques Derrida em seu livro O monolinguismo do outro (1996).
Quem acredita que o racismo é inexistente ou pode se tornar inexistente em certas partes do mundo, ou, alternativamente, que no lugar onde é difundido possa vir a definhar, desaparecer por completo, recomendo que retorne a Freud. A história pode modificar os racismos, atenuá-los, mas duvido que seja capaz de erradicá-los. Sem racismos, não seriamos humanos. O desamparo originário impede! E quem não utiliza as pequenas e grandes diferenças para tornar os outros abjetos? Entretanto, meu pai acreditava que sim. Afinal, o lugar para o qual ele hesitou emigrar (já que seus irmãos o convidaram para Suíça, Canadá, França) se proclamava um coletivo de exilados (Kibutz Galuiot), e ele, ingênuo, acreditou.
Sami Michael, um escritor notável que faleceu no ano passado aos 97 anos, foi um jornalista comunista no Iraque. Perseguido por sua ideologia, teve que fugir, mudar de nome e, sem outras opções, emigrou para Israel. Durante os primeiros 20 anos em Israel, escreveu em árabe e colaborou com palestinos na tentativa de criar um país binacional. Contudo, acabou desistindo do projeto e passou a escrever em hebraico. Seu primeiro romance Os que valem, e outros que valem mais, denuncia de forma contundente a discriminação sofrida pelos judeus oriundos de pais árabes, pelos bandeirantes, a elite branca, de origem russa e polonesa, europeia.
Essa obra de estreia, lançada nos anos 70, chocou a elite intelectual de Israel que estava, na época, imersa em conflitos de guerra. Como jornalista e ativista político, ele não poupava críticas ao elitismo cultural europeu, frequentemente zombando desse falso senso de superioridade. O racismo, afinal, reflete, muitas vezes, lacunas culturais; Fanon, em Paris, cheirava isso a torto e a direito. Sami Michael tornou-se um escritor exímio, autor de dezenas de romances. Os agentes culturais não o premiaram, não superaram o ranço pela sua genialidade literária.
Nos anos 1950 e 1960, a expulsão de judeus de países árabes forçou muitos a emigrarem para Israel. Curiosamente, nesse mesmo período, a imigração europeia, especialmente do leste europeu, continuava fluindo para o país. Contudo, foi revelado recentemente um plano deliberado de realocar imigrantes de origens árabe em regiões periféricas, áridas e próximas às fronteiras com os inimigos. Nesses locais, foram instaladas fábricas e escolas técnicas, projetadas para transformar esses imigrantes na força de trabalho subordinada às elites europeias que ocupavam os centros urbanos mais confortáveis do país. Essas desigualdades provocaram revoltas, e grande parte do mapa político atual de Israel foi moldado pelos conflitos étnicos que se intensificaram nos anos 70. A documentação desse projeto de segregação ficou inacessível ao público por seis décadas, mas o cineasta e professor universitário David Deri utilizou esses documentos, além de entrevistas e de sua história de vida, para criar a série Salah, aqui é a terra de Israel (em inglês, O pecado ancestral). A mim, ela tirou o fôlego, o sono… quase me desconecto, por semanas, da realidade.
Como lidamos com a nossa raça que o outro despreza e quer ´acabar com ela´? Sobreviver ou vingar?! Seria a sobrevivência um modo de vingança, ou será ela a expressão de uma falta de amparo que nos impede de vingar? Deixar-se colonizar, vestir a máscara, mesmo quando a pele – negra – a denúncia (Fanon); adotar um método de mudar (Édouard Louis), para se alienar? Mas será que existe escolha diante disso? Os três autores citados acima, Annie Ernaux, Didier Eribon e Édouard Louis, mais cedo ou mais tarde, perceberam que haviam se deixado colonizar. Contudo, ao se dar conta desse suicídio da alma, passaram a se vingar. Fizeram-no pela literatura, insurgindo-se contra a tradição literária clássica por meio de um estilo de autoficção. Ernaux vingou seu gênero e sua classe; Eribon e Louis, sua classe e sua homossexualidade. Eribon, mestre e amigo do jovem e brilhante E. Louis, tece em sua autoficção – marcada por um retorno a sua raça- reflexões filosóficas e sócio-políticas refinadas. Ele trabalhou com M. Foucault e P. Bourdieu. Segundo Eribon, muitos se serviram de sua obra para “mudar” e encontrar um ouvido que compense as ofensas feitas à sua raça. É o caso, também de acordo com A. Green, de Foucault (gênero), Bourdieu (classe) e até Proust (gênero). Essas vinganças, no entanto, são burguesas e silenciosas – não revoltas abertas, transformadoras.
E você, leitor, meu colega? Vingou a sua raça? Sem essa vingança – e Ignácio Paim não cansa de nos lembrar -, sua análise fica devendo. Preciso lembrar-lhe de nosso mestre Freud que, em sua autoanálise, desde o sonho da Irmã, chega ao episódio narrado pelo pai Jacob em que foi humilhado por um gói (“gentil”) por ser judeu, tirando violentamente a sua Kipa e lançando-a na sarjeta, dando ordem ao “grande homem”: “desça da calçada judeu”? A partir daí, a identificação com Anibal, que vingou a humilhação do pai Amilcar Barca pelos romanos, capturou o menino Sigmund, que conquistou o mundo pela criação da psicanálise, essa autoficção que utilizamos e sofremos com ela a cada dia.
E quanto a mim? Minha raça de imigrante, marroquino e judeu, é ferida aberta. O que fiz com ela? Em uma mesa de congresso ao qual fui convidado por I. Paim, lembrei-me de um episódio de minha vida adulta. Durante o meu mestrado em virologia molecular, realizado no hospital Hadassah da Universidade de Jerusalém, estávamos nos primórdios da descoberta do vírus da Aids. O clima de pesquisa era intenso, com muitos visitantes de outros países. Na hora do café, as conversas entre pesquisadores e técnicos floresciam. Um chefe de laboratório nutria certa simpatia por mim, embora ocasionalmente fizesse piadas sobre os “orientais”, que me picaram levemente, mas não chegavam a me surpreender. Um dia, após uma visita às janelas de Chagall na sinagoga do hospital, o vi me aguardando, visivelmente abalado, no corredor. Pensei que ele traria notícias sobre aquele misterioso vírus da África que, em 1982, começou a causar estragos. Mas não. Nesse caso, o “vírus” era eu mesmo, um africano que ele acabara de descobrir ao seu redor, algo contra o qual seu sistema imune, social, começava a reagir. Espantado, ele esboçava algo que parecia um pedido de desculpas, embora suas palavras fossem ainda mais dolorosas: “estou muito surpreso”, dizia-me, “você, assim, tão educado, inteligente, com esses olhos verdes… Fiquei sabendo que você nasceu no Marrocos (sua doutoranda americana lhe contou) e eu achava que você era nosso, daqui…”. Sorri, tímido, sem reação! Anos, já são mais de 40, estou com raiva acumulada em mim, claro! Por que não reagi? Entendo, talvez, melhor do que muitos, a identificação ao agressor de Ferenczi, mas isso não me consola. Como meu amigo afrobrasileiro, eu queria ter vingado. E, no entanto, vinguei, sem saber que eu o fazia. Vinguei a humilhação do meu pai com meu sotaque, que resiste, apesar de todo o trabalho que ele dá. Vinguei, mas nunca soube.
Costumo brincar com os colegas, dizendo que meu sotaque é a vingança de minha mãe, por eu ter me distanciando dela. Hoje percebo, como o Gilberto Gil sabia, que é saudade: saudade do meu pai imigrante, humilhado, que se foi cedo, muito cedo. Cedo demais para que pudesse convidá-lo, juntos, a vingarmos nossa história, nossa raça.
Como se faz isso? Pergunte a Freud, Annie, Didier e Edouard.
Referências
Freud S (1895) Projeto de uma psicologia.
Freud S (1900) Interpretação dos sonhos
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: raça, singularidade, luta de raça, vingança
Imagem: Imigrantes de Marrocos (anos 59/60)
Os ensaios do OP são postados no Facebook. Clique no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página:
https://www.facebook.com/
Nossa página no Instagram é @observatorio_psicanalitico