Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sussurrando um testemunho
Vanessa Corrêa – SBPSP
Em dezembro fui ao lançamento do livro da amiga psicanalista Helena Cunha Di Ciero, na obra ela relata o luto por sua mãe. Estávamos, porém, em um clima de alegria e animação quando, na roda de conversa, à porta da livraria, contei que participaria de uma residência literária por dez dias, na cidade de Gonçalves, ao que outra amiga, muito sensível e amorosa, disse: cuidado para não morrer, não aceite nenhuma droga que te derem.
Fiquei bastante impressionada e me guiei por essa advertência espontânea e incisiva, que depois fez sentido. Em todo caso, não pude evitar morrer, por isso vou falar baixinho daqui para frente, para não correr o risco de acordar o que deve permanecer morto em mim.
Nunca estivera antes com um grupo de pessoas que contava de seus personagens como se fossem membros da família, e este tema era o sério e importante, todos compreendiam e reverenciavam. No começo achei um pouco engraçado falar assim de coisas que aparentemente não existem, tão distantes do pão nosso de cada dia, mas à medida que cada um se permitia investigar e ser investigado pelo outro, percebi que a alma desnuda é o assunto mais tangível e verdadeiro possível , e era disto que se tratava. A primeira morte foi a da mulher cética que me habitava.
Outro preconceito que eu levava, era o de que seria inevitável, em uma reunião de pessoas cultas, amantes de Machado de Assis e Proust, cairmos na tentação de usar a literatura somente como defesa, como argumento para o desencontro. Não estava preparada para a revolução que seria testemunhar, em mim e nos outros, a potência dessas ferramentas quando servem na construção de pontes – para compartilhar medos, fragilidades, carências, angústias, invejas, terrores e alegrias insignificantes, microscópicas. Assim morreu em mim a mulher que metralhava versos para se manter distante de quem quer que fosse.
Estar no frio, entre montanhas, sob o império dos elementos terra, ar, fogo e a água das cachoeiras, fazia com que percebêssemos nosso pertencimento a um corpo único chamado Terra. Chorei ao ouvir Caetano cantando “por mais distante/ o errante navegante/ quem jamais te esqueceria?”. Chorei de pena de mim e do nosso planeta; chorei de alegria por ter a oportunidade de sentir a terra coberta da pelagem verde sob meus pés; chorei por causa do amor terrível e assassino que desaba meus eixos; chorei olhando as minhas mãos, para as quais eu nego, tantas vezes, o direito da escrita. Nem sei quanto de mim morreu nessa hora.
Guiada somente pelo que ficou vivo, passei a escrever, fui tomada por lembranças da infância que estavam opacas e sonhei muito nas noites. Nesse clima onírico, entre uma conversa e outra, compreendi que cada escritor tem seu tema recorrente, que o persegue e necessita vazão, e que na minha literatura tímida e gotejante o tema é a transformação – de menina em mulher, mulher em mãe, médica em psicanalista, sobretudo da transformação da dor em palavra: vida em morte, morte em renascimento. E se houve alguma droga, foi somente esta, a da literatura viva que quer nascer através dos nossos dedos no teclado. Uma droga de efeitos irreversíveis e que recomendo.
Como prometi falar baixinho, vou poupar este relato de citações de Freud “sobre a transitoriedade” e de todos os links que tudo o que contei tem com a psicanálise. Levanto só um pouquinho a voz para agradecer aos meus colegas residentes e aos escritores Ricardo Mituti e João Anzanello Carrascoza, que promoveram essa resistência literária, porque escrever é resistir.
(Os textos publicados são de responsabilidade dos autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: literatura, escrita criativa, residência literária, palavra.
Imagem: Residência Literária em Gonçalves, MG. Foto de Gustavo da Rocha Lima
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