Observatório Psicanalítico OP Editorial-Janeiro 2025

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Sódepois 57 

Janeiro/2025

Cada vez que um novo ano inicia, nutrimos a esperança de que algo em nós e no mundo poderá se renovar, pulsão de vida que nos mobiliza a seguir em frente, a criar e a seguir desejando. “É preciso dar um jeito, meu amigo”, já diria a canção de Erasmo Carlos. É preciso encontrar meios de driblar e enfrentar as intempéries da vida. 

E em janeiro, um fato que nos encheu de esperança e orgulho foi a indicação do filme “Ainda estou aqui” ao Oscar. Baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles, o filme concorre em três categorias. A atriz Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro pela magistral atuação na película, na qual interpreta Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), foi elevada ao patamar de uma das maiores atrizes da atualidade, seguindo os passos de sua mãe, Fernanda Montenegro, agraciada pelo mesmo prêmio 26 anos antes com “Central do Brasil”, também dirigido por Walter Salles e vencedor de melhor filme em língua estrangeira. Fernanda Torres disputa o Oscar de melhor atriz, enquanto o filme concorre também nas categorias de melhor filme internacional e de melhor filme. O sucesso da obra, que narra o desaparecimento de Rubens Paiva, levado por militares sem qualquer explicação, reflete o sofrimento e a luta de Eunice, que buscou respostas durante décadas sobre o destino de Rubens, sendo obrigada a reinventar sua história, a exemplo do que ocorreu com muitas famílias brasileiras naqueles anos sombrios. Não à toa o filme tem lotado salas de cinema pelo Brasil e pelo mundo. Além de representar um acontecimento inédito para a história do cinema brasileiro, traz à tona a violência da ditadura que vigorou no Brasil por vinte anos. Em um país que reprime suas memórias e nega sua história, narrar aquilo que ficou “escondido” nos porões da ditadura é um ato corajoso e político que nos devolve a palavra e oferece vias de elaboração para o traumático. Seguimos na torcida por Fernanda e pelo cinema brasileiro!

E o primeiro ensaio publicado em 2025, de Rafaella de Faria Maiello (SBPSP) versou justamente sobre a potência transformadora da arte. Intitulado “Autoficção e dialética: aproximações entre a série ‘Bebê Rena’ e o livro ‘O perigo de estar lúcida’” (OP 553/2025), o texto convida a uma análise instigante de alguns aspectos de personalidade dos personagens do livro e da série, assim como de seus autores “que nos convocam a mergulhar nas emoções obscuras de nós, seres humanos”. Para Rafaella, Rosa Montero e Richard Gadd assumem esse estilo autoficcional, “assumem suas loucuras”. A autora aponta também para a dialética entre a realidade e a fantasia, presente em ambas as obras. A personagem Martha, de “Bebê Rena”, rompe com a realidade, o que a impede de fantasiar, relacionando-se de forma obcecada com o “Bebê Rena” Donny, ao qual trata como um bichinho de pelúcia, representante inanimado de suas vivências infantis. Donny/Gadd, por sua vez, não se exime de sua própria loucura, uma vez que não consegue dar um basta em Martha. Enredado à compulsão à repetição, sua tentativa de saída pareceu se dar através da escrita da série. Em “O perigo de estar lúcida”, Rosa Montero, por sua vez, aborda diversas situações “de loucura” vividas por ela, e coloca a escrita também como tentativa de elaboração de tais vivências. Entretanto, ressalta que “o ato de escrever em si não é suficiente para salvar as pessoas de sua própria condição”.  Ao tecer conexões entre as obras de Gadd e de Montero, Rafaella aponta para a nossa tendência a diminuir o poder mobilizador da obra quando costumamos separar o que é a realidade factual e fantasística: “Existe uma dinâmica cultural de nossos tempos em colocar uma coisa versus outra, em comparação, sem haver muito espaço para considerarmos uma coisa junto da outra, contendo a outra”.

Na sequência, publicamos o ensaio de Fernando Orduz (SCP – Sociedade Colombiana de Psicanálise) intitulado “Macondo, entre a solidão e o esquecimento“ (OP 554/2025) no qual descreve a aldeia de Macondo como “um espaço condenado à solidão e ao esquecimento, como nossa existência”. Ao referir-se ao povoado colombiano, cenário do romance “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Marquez, o autor o define como “a matriz de nossos destinos (…) que nos envolve na exuberância transitória de suas paixões, nos nutre com suas imagos tropicais, com as histórias de nossas incessantes batalhas fratricidas, com as pestes que, de diversas formas, habitam ao longo de sua história, com a morte que reside em cada canto de seu território”. Ao aproximar o romance de Garcia Marquez da psicanálise, em face dos diversos conflitos e contradições que perpassam os humanos, assim como na aclamada obra, o autor se pergunta se haverá algo diferente na cura pelo amor. Como resposta, propõe que “a psicanálise é uma técnica que pretende lutar contra este destino fatídico que atravessa Cem Anos de Solidão, anos de solidão que parecem ser o antônimo dos laços de solidariedade, em uma América Latina onde cada povo parece se contentar em observar as linhas e os desvios de seu próprio umbigo”.

Publicamos também o ensaio de Vanessa Corrêa (SBPSP) “Sussurrando um testemunho” (OP 556/2025), que nos relata sua experiência de dez dias em uma residência literária na cidade de Gonçalves (MG). Guiada pela advertência de uma amiga para que tomasse “cuidado para não morrer”, Vanessa driblou os receios despertados por aquela frase enigmática e rendeu-se ao ineditismo da experiência: “na medida em que cada um se permitia investigar e ser investigado pelo outro, percebi que a alma desnuda é o assunto mais tangível e verdadeiro possível, e era disto que se tratava. A primeira morte foi da mulher cética que me habitava”. Aos poucos, Vanessa foi se desprendendo de alguns preconceitos para imergir por completo naquela vivência de compartilhamento de “medos, fragilidades, carências, angústias, invejas, terrores e alegrias insignificantes, microscópicas”. A autora ressalta o poder transformador da literatura, “da dor em palavra, vida em morte, morte em renascimento (…) uma droga de efeitos irreversíveis e que recomendo”.

E em meio ao clima de alegria e de conquista despertada pelo cinema brasileiro no mês de janeiro, também fomos tomados pela apreensão. Donald Trump assumiu o segundo mandato presidencial e o mundo está ardendo em chamas, literalmente. A cidade de Los Angeles, na Califórnia, foi devastada por uma onda de incêndios que matou dezenas de pessoas e desalojou mais de cinquenta mil, arrasando florestas e biomas inteiros em uma área equivalente à cidade de Paris. As principais causas dos incêndios são atribuídas, sobretudo, às mudanças climáticas, visto que a região vem padecendo de uma forte seca em pleno inverno. 

Enquanto isso, Trump, apoiado por bilionários como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg, donos das Big Techs, retirou a participação dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, dentre outras inúmeras medidas retrógradas, que vão desde o cerceamento dos direitos adquiridos pela população LGBTQI+ até a perseguição radical e violenta a imigrantes. Outra mudança esperada se dará a partir de um decreto de Trump assinado na última semana, em que usuários do Google Maps dos EUA passarão a ver o Golfo do México rebatizado de Golfo da América, decisão polêmica que aponta tanto para a ascensão do discurso nacionalista quanto para o colonialismo digital, fenômeno que se baseia no uso da tecnologia para dominação política, econômica e social de países. Os professores e pesquisadores Deivison Faustino e Walter Lippold, que recentemente lançaram um livro sobre o assunto (Colonialismo digital, por uma crítica hacker-fanoniana, Editora Ciências revolucionárias), afirmam que experimentamos um cenário distópico real onde temos, de um lado, tecnologias ultra avançadas e, de outro, condições de vida cada vez mais baixas e esvaziadas. Se a sociedade digital implementou avanços, também modificou e tornou mais precárias as relações sociais e de trabalho, intensificando as formas de exploração e de opressão. Trump, em parceria com seus aliados, promete um cenário ainda mais voltado para a dominação, acirrando o ódio e aumentando a desigualdade social no planeta.

Sobre este acontecimento, cujos efeitos atingem e preocupam o mundo inteiro, Julio Gheller (SBPSP) escreveu um ensaio intitulado “Apocalipse now” (OP 555/2025), trazendo reflexões sobre o segundo mandato de Trump e sua política ainda mais reacionária: “pelo jeito, nada é tão ruim que não possa piorar”. Trump é o primeiro candidato dos EUA condenado por crimes e ainda assim conseguiu se eleger, fato que se deve também aos erros estratégicos de Biden na disputa presidencial. Segundo Julio, “um sujeito truculento e autoritário comandará a maior potência econômica e militar do mundo, confirmando a expansão do radicalismo de ultradireita em diversos países (…) O predomínio da posição paranoide aliada à ignorância parece nos remeter ao século passado, tempos de guerra fria, em lamentável retrocesso civilizatório. Nuvens cinzentas se aproximam”. O autor enfatiza o cenário desolador que se aproxima e que nos afetará nos próximos anos: “Salve-se quem puder!”.

E para encerrar o mês de janeiro, publicamos o ensaio de Daniel Delouya (SBPSP), “A raça em primeiro” (OP 557/2025), no qual compartilha vivências autobiográficas para pensar em como a raça, que para alguns se manifesta como um orgulho de pertencimento é “frequentemente uma ferida aberta, resultante da arrogância do outro, que concebe a sua como hegemônica em relação às demais”. Daniel discorre com profundidade sobre o tema, e afirma que “a raça foi descoberta na psicanálise no âmago daquilo que nos constitui como seres humanos, ou seja, nossa singularidade. O sujeito se constitui pela lógica das regras de pertencimento ao grupo”. O autor recomenda retornar a Freud para compreender as complexidades do racismo, e diz crer que o mesmo não será erradicado por completo, mas poderá sim ser atenuado. Retoma ainda a questão da expulsão dos judeus, nas décadas de 1950 e 1960 dos países árabes, que os fizeram migrar para Israel. Daniel encerra o ensaio contando sobre sua experiência de vida, de marroquino judeu, ainda uma “ferida aberta”, e propõe metaforicamente uma “vingança à raça”, encerrando com a indagação: “Como se faz isso? Pergunte a Freud, Annie, Didier e Edouard”.

O texto de Daniel Delouya vai ao encontro de outro acontecimento importante do mês de janeiro, que não poderíamos deixar de mencionar: a assinatura do tão esperado acordo de cessar-fogo entre Israel e Hamas, ainda que selado em meio a muitas dificuldades. Desde o ataque perpetrado pelo Hamas, em outubro de 2023, mais de 48 mil pessoas foram mortas, dentre elas 45 mil palestinos. O acordo será dividido em três etapas, que incluem a libertação de reféns, o cessar-fogo completo e a reconstrução territorial, sustentando a promessa de colocar um fim à guerra que ceifou milhares de vidas e instalou o caos e a destruição no Oriente Médio.

Em meio a boas notícias de um lado, e de um cenário mundial bastante pessimista de outro, relembramos mais uma vez a canção de Erasmo Carlos, composta em 1971 e trilha-sonora do filme “Ainda estou aqui” (2024). 

Lançada no período da ditadura, a letra expressa a necessidade de mudança frente às injustiças vividas pela sociedade brasileira. A atemporalidade da canção configura um chamado à ação, e ao não esmorecimento diante das injustiças e das crueldades do mundo. 

Resistiremos através da arte e da psicanálise, e talvez não à toa os ensaios de nossos psicanalistas tenham, em sua maioria, versado sobre este tema. 

Encerramos este editorial com a perspectiva e a esperança de mudança, e de força para seguir lutando, agora mais do que nunca.

“É preciso dar um jeito, meu amigo

É preciso dar um jeito, meu amigo

Descansar não adianta

Quando a gente se levanta

Quanta coisa aconteceu”

(Erasmo Carlos, 1971)

Abraço afetuoso,

Beth Mori (SPBsb), Ana Valeska Maia (SPFOR), Gabriela Seben (SBPDEPA), Giuliana Chiapin (SBPDEPA), Lina Schlachter (SPFOR), Vanessa Corrêa (SBPSP). 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: foto publicada no The New York Times, de Maria Magdalena Arréllaga 

Categoria temática: Editorial 

Palavras-chave: Editorial, Observatório Psicanalítico, Cinema Brasileiro, Donald Trump, Cessar-fogo 

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Categoria: Editoriais
Tags: Cessar-fogo | Cinema Brasileiro | Donald Trump | editorial | observatorio psicanalitico
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