Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A dor e o sofrimento da falta de representação política das mulheres brasileiras
Marina K. Bilenky (SBPSP) / Thais Bilenky (jornalista UOL)
A mãe de uma menina de 12 anos denunciou um homem de 20 anos que engravidou sua filha. A Justiça de Minas Gerais, estado onde mora a família, o condenou a mais de 11 anos de prisão por estupro de vulnerável. Ele recorreu, e a segunda instância considerou que não houve crime. O caso então subiu para o Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, em março de 2024. Coube à quinta turma do STJ julgar a conduta do homem.
O primeiro a votar foi o relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que se posicionou contrário à condenação. Sustentou que a menina e o homem constituíram união estável, mesmo que problemática e precoce. Considerou que o acusado não convive mais com a mãe do bebê, mas presta assistência ao filho. E aplicou o conceito jurídico de “erro de proibição”, segundo o qual não se pode imputar responsabilidade por um crime a uma pessoa se ficar demonstrado que ela o praticou sem saber que era proibido. Os dois ministros que votaram na sequência endossaram a tese do relator, com isso formou-se maioria de três dos cinco juízes a compor a turma do STJ.
Mas a ministra Daniella Teixeira abriu divergência mesmo assim. Ela rejeitou a aplicação de “erro de proibição” para o caso dizendo que o homem tinha conhecimento da lei por não viver isolado da sociedade ou sem acesso à informação e meios de comunicação.
“O fato de terem um relacionamento amoroso apenas reforça a situação de violência imposta à adolescente, que deve ser protegida pelo Estado até mesmo de suas vontades. Ninguém acharia lícito dar a ela bebida alcoólica ou substância entorpecente apenas porque manifestou vontade”, argumentou a ministra. Seu voto foi acompanhado pelo quinto e último ministro a votar, mas no fim o homem foi absolvido.
Daniella Teixeira foi nomeada ministra do STJ em 2023 após um jejum de dez anos sem a posse de uma mulher no tribunal, o segundo mais alto do país. Com ela são 6 mulheres entre os 33 ministros no total.
O Supremo Tribunal Federal, mais alta corte do país, chegou a ter duas ministras, mas hoje conta com apenas uma. Em 132 anos de história, o STF teve 168 ministros homens e apenas 3 mulheres.
A história se repete nos tribunais dos estados e nas varas nas cidades. De acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), as mulheres ocupam 38% das vagas da magistratura em todo país, embora sejam mais da metade (51%) da população brasileira.
Ao se aplicar o critério de raça, além do de gênero, a análise é ainda mais alarmante.
A Plataforma Justa, que se debruça sobre a composição do Judiciário brasileiro, levantou que há uma juíza negra no Brasil para cada 7,4 juízes brancos na primeira instância. Na segunda instância –os Tribunais de Justiça dos Estados–, para cada desembargadora negra há 33,5 desembargadores brancos.
E, no entanto, segundo o IBGE, 25,5% da população brasileira é composta por mulheres negras.
A Justiça brasileira é ocupada por juízes que prestam concurso público no primeiro grau e por indicação política no segundo e terceiro graus. Os cargos executivos que indicam ministros para os tribunais superiores (presidente da república) e desembargadores para os tribunais de justiça (governadores) são majoritariamente ocupados por homens. A presidência da república teve apenas uma mulher a ocupá-la em toda a história do Brasil. Dilma Rousseff, contudo, não concluiu seu segundo mandato por ter sofrido impeachment. Já das 27 unidades da federação, apenas 2 elegeram mulheres como governadoras.
A conclusão é óbvia. As mulheres estão subrepresentadas na Justiça brasileira. As mulheres negras ainda mais. E esse dado tem consequências políticas, mas também causa impactos subjetivos para cada mulher brasileira.
Do ponto de vista político, movimentos que lutam pela ampliação da presença feminina no Judiciário argumentam que, sem poderem se identificar com a figura da autoridade representada pelo juiz que eventualmente a julgará, as mulheres não confiam no poder reparador do sistema judicial de seu país. Com isso, muitas vezes deixam de recorrer a ele. Quando acionam a Justiça, correm o risco de sofrerem violência duas vezes como no caso da menina de 12 anos que engravidou. Ao absolver o acusado, o STJ impôs à criança novamente o sofrimento de ser responsabilizada por uma gravidez indesejada sendo menor de idade.
Do ponto de vista subjetivo, há outros fatores que fragilizam a mulher e a colocam em posição ainda mais vulnerável. Entre as mulheres que ocupam posições de poder, quantas compactuam com a visão patriarcal da sociedade, identificadas com o modelo sociocultural vigente por séculos? Quais são seus modelos identificatórios e como se posicionam em relação às questões femininas?
A mesma questão se aplica em relação à vítima: quantas mulheres, meninas, mães se dão o direito de fazer reivindicações, não somente porque não se veem representadas, mas também porque, identificadas com esses mesmos valores, acreditam que falharam e se culpam ou se envergonham pelo que aconteceu com elas?
O ser humano é atravessado pela cultura, que molda a subjetividade em cada tempo e cada lugar. Em nossa sociedade, a mulher foi sistematicamente educada e formatada para seguir o padrão de comportamento determinado pelos valores patriarcais.
Freud, ao se perguntar o que quer uma mulher, mostra a dificuldade de compreender o desejo feminino numa sociedade onde, por séculos, a mulher foi instada a se adequar e reproduzir um padrão, onde não lhe cabe ser sujeito de seu próprio desejo. Hoje, as mulheres continuam reproduzindo, em maior ou menor grau, a visão de mundo centrada no poder masculino. E isso ocorre não somente por ignorância e aderência a valores religiosos. A alienação, ou seja, a impossibilidade de enxergar a realidade para além de um sistema de crenças e valores arraigados na cultura e transmitidos de geração a geração, impede que se enxergue a realidade por outras perspectivas e impede que haja movimentação para além da estrutura que a compreende. Sem um grande trabalho de conscientização, sem políticas públicas e educação, essa situação tende a se perpetuar.
Atualmente, esse sistema tem sido desconstruído e questionado. Alguns achados surpreendem por estarem incorporados ao dia a dia de maneira tão naturalizada, que somente agora são objeto de questionamento. Um exemplo é a pesquisa que constatou que médicos receitam mais medicação para dor para homens do que para mulheres, ou seja, as queixas masculinas são mais valorizadas que as femininas, independente da intensidade do sofrimento. Esse tipo de comportamento e tantos outros em diferentes áreas perpetuam a condição da mulher que, ao não ser legitimada, pode acreditar que sua dor não tem valor.
Essa condição acrescenta mais um ingrediente para a dificuldade da mulher de reivindicar seus direitos mais básicos. Para além da descrença no poder reparatório da justiça, a mulher que não é ouvida não sabe que tem o direito de se fazer ouvir ou duvida de sua própria percepção.
A mudança de mentalidade exige um trabalho persistente de conscientização das raízes do sistema de crenças incorporados, que ainda estão entranhados em nossa sociedade.
Foi, afinal, uma mulher em posição minoritária no STJ que abriu a divergência no caso da menina que engravidou aos 12. Uma ministra mulher não endossou um argumento que perpetua o poder masculino segundo o qual ele provê a pensão, logo, faz sua parte. Um argumento que deslegitima o sofrimento de uma criança pelo fato de ela ser do sexo feminino. Foi uma mulher que se recusou a aceitar essa tese. Ela perdeu, mas se fez escutar. A família da criança perdeu o processo, mas ao menos se viu legitimada pela autoridade representada pela ministra, a única mulher que a julgou. Não há dúvida de que essa legitimação mudará a experiência da família na busca por justiça e reparação.
É urgente que mais mulheres possam se ver representadas na justiça e nas demais posições de poder. Só assim o sistema deixará de reproduzir argumentos que impõem camadas em cima de camadas de violência contra as meninas e mulheres brasileiras.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chave: justiça, mudança de mentalidade, representatividade feminina, poder
Imagem: composição atual do STF
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