Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Oito de Janeiro
Júlio Hirschhorn Gheller – SBPSP
Escrevo este texto no dia 07/01/2024, véspera do primeiro aniversário de uma movimentação em Brasília que foi devidamente caracterizada como de atos antidemocráticos e tentativa de golpe de Estado.
Para efeito de contextualização, cabe relembrar a coleção de absurdos que o governo anterior impingiu ao Brasil durante quatro tristes anos. Corro o risco de esquecer alguns – entre tantos – fatos, mas vamos lá. A questão ambiental foi relegada a segundo plano, com aumento do desmatamento e desmonte de órgãos de controle nesta área. A pandemia foi menosprezada pelo mandatário. Já de início, tratou de minimizá-la como se fosse uma simples “gripezinha”. Em seguida, boicotou as orientações médicas de isolamento e uso de máscaras, atrasou a compra de vacinas – duvidando de sua eficácia – e recomendou tratamentos a base de cloroquina, medicamento sabidamente ineficaz para o caso. No campo do comportamento ético, já se sabia de indícios da prática das famigeradas “rachadinhas” em seu grupo familiar, sendo que o possível operador do esquema permaneceu, por bom tempo, escondido numa casa pertencente ao advogado da família do governante. Houve a suspeita de ações de intermediação por parte de pastores que ofereciam vantagens a interessados em negócios junto ao Ministério da Educação. Aliás, pastas como Educação, Cultura, Ciência e Direitos Humanos foram maltratadas, ficando a cargo de ministros despreparados para as respectivas funções.
Um elemento importante a ressaltar se refere aos frequentes ataques às instituições democráticas, tais como as ameaças a ministros do STF e a sugestão de que as Forças Armadas estariam sempre a postos para obedecer ao comando do governante, executar as suas ordens e instituir, se necessário, uma nova ordem com endurecimento do regime. Já ao final do mandato houve a famosa reunião com embaixadores de países estrangeiros, com o objetivo de questionar o rigor e a lisura das eleições, buscando desacreditar a confiabilidade das urnas eletrônicas.
Outros pontos que marcaram a passagem do grupo que geriu a nação até o fim de 2022 foram o estímulo ao armamento da população e o discurso em favor de pautas de costume retrógradas. Tudo isto só prosperou por existir um ambiente em que havia muita gente disposta a “comprar” essas ideias. Nem menciono aqueles que levam vantagem e se aproveitam da antiga e clamorosa situação de desigualdade econômica vigente no país. Neste ponto, passo ao relato de uma experiência recente e ilustrativa, a demonstrar como certas mensagens ainda encontram eco nas pessoas mais ingênuas ou fixadas em um viés conservador.
Tive contato há poucas semanas com uma enfermeira que eu conhecera anteriormente e com quem mantinha um relacionamento cordial. Trata-se de pessoa simpática, gentil e, aparentemente, eficiente no seu mister. Em dado momento, a conversa caiu no assunto de vacinas. Sabendo que ela já tinha a idade de 60 anos e que, portanto, seria elegível para a dose de reforço da vacina bivalente contra a Covid, perguntei se ela já havia se vacinado. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir que ela, uma profissional do campo da saúde, não ia tomar esta dose de reforço e que já não tinha tomado a primeira dose, uma vez que estava satisfeita com as vacinas anteriores. Meio que brincando, indaguei se ela era fã do governo anterior, ao que ela me respondeu que sim. Perguntei quais seriam os itens positivos que ela distinguia no mandato findo em 2022. Ela respondeu que apreciava a defesa dos valores da família por parte do antigo presidente e o excelente desempenho do ex-ministro da Economia, capaz de gerar um superávit, ao contrário do atual governo. A conversa, por minha inabilidade e falta de jogo de cintura, acabou tomando o rumo de uma discussão, em que mesmo o episódio da apropriação de joias presenteadas ao país, com a subsequente tentativa de negociá-las para auferir um lucro pessoal era relativizado por ela, considerando que não havia provas concretas contra o ex-presidente. O histórico de declarações machistas e misóginas do tipo: “Não te estupro porque você (por ser feia) não merece” é relevado e o que impressiona, por incrível que possa parecer, é a tal defesa dos valores da família. Quem acredita na pureza destas intenções? Será que é preciso ser dotado de sensibilidade especial para notar os traços de psicopatia revelados em vários gestos e pronunciamentos? Creio que existe um comportamento monolítico de quem não arreda pé de suas convicções e permanece aferrado a concepções maniqueístas, algo típico da posição esquizoparanoide.
Essa introdução significa que a eleição de outubro de 2022 trouxe a esperança de que tempos melhores viriam e a posse do novo presidente em 01/01 /2023 confirmou essa expectativa positiva. No entanto, sabemos que a nossa sociedade permanece dividida por uma forte polarização. E foi daí que redundou o movimento de 08/01/2023, que consistiu em um ataque à praça dos Três Poderes, com a invasão do Congresso, do STF e do palácio do Planalto. Revi as cenas do quebra-quebra e das depredações. A destrutividade primitiva dos manifestantes, com sua violência explícita, era algo de assustador. A interpretação dos fatos indica que a confusão e a bagunça faziam parte de uma estratégia com vistas a induzir o novo presidente a apelar para uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Na sequência as Forças Armadas poderiam assumir o controle da situação, depor o presidente eleito e reconduzir o governante anterior ao posto, resultando, muito provavelmente, em uma ditadura. Lembremo-nos que foi encontrada uma assim chamada “minuta do golpe” na casa do ex-ministro da Justiça. Felizmente, os militares, em especial os comandantes do Exército e da Aeronáutica, não embarcaram na aventura golpista. Todavia, chama a atenção recente pesquisa da Genial/Quaest, indicando que 6% dos entrevistados ainda apoiam a tentativa de golpe do ano passado. Isto corresponderia a cerca de 9 milhões de pessoas. Parece pouco para sustentar um golpe. Mas o fato é que o espírito golpista está aí a espreita em nossa sociedade, à espera de descuidos de nossas instituições. Diante desse aspecto, torna-se mais premente que as apurações cheguem aos mandantes do lamentável episódio.
Penso que elementos de ressentimento contam na não aceitação dos atuais governantes. Estou longe de ser um fã incondicional do presidente Lula. Creio que ele comete equívocos, de modo que discordo de algumas de suas posições e atitudes, mas reconheço sua inegável importância na política brasileira. O fato de ele ser um torneiro mecânico, sem graduação universitária, que, assim mesmo, ascendeu ao posto mais alto da nação, parece incomodar muita gente. Esse incômodo existe tanto nas classes dominantes quanto entre os menos privilegiados. A inveja é um componente da natureza humana e fomenta reações de ódio. Este ódio deve estar embutido no fato que o ministro do STF Alexandre de Moraes revelou há poucos dias, em relação aos planos dos golpistas do Oito de Janeiro, que supostamente pretendiam matá-lo, talvez por enforcamento na praça dos Três Poderes. Seria uma espécie de exemplo, um alerta para os adversários políticos e opositores. A ideia lembra cenas da série “O Conto da Aia”, ambientada em um futuro distópico, na fictícia república de Gilead, dominada por uma ditadura fundamentalista cristã e altamente militarizada. Os inimigos do regime eram enforcados e ficavam expostos em praça pública.
A esta altura, cabe lembrar que ainda aguardamos pela elucidação de quem seriam os cabeças e planejadores dos atos antidemocráticos, de quem financiou a vinda dos manifestantes para a ”festa da Selma”, de quem ajudou na manutenção do acampamento em frente ao Quartel-General do Exercito em Brasília, bem como de diversos acampamentos em frente a quartéis de outras cidades, em que indivíduos bradavam pela destituição do presidente eleito, não se conformando com o resultado da eleição. A justiça tem sido morosa em alguns crimes de cunho político, como é o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco. Ocorrido em março de 2018, há um executor preso, mas ainda não se incriminou o mandante. Do jeito que as coisas andam, algumas teorias já surgem no sentido de que possíveis acordos para não se chegar ao termo das investigações, poupando peixes mais graúdos, estejam funcionando nos bastidores do caso Marielle e agora, talvez, no caso do Oito de Janeiro.
Oxalá os fatos sejam completamente esclarecidos e os culpados, devidamente responsabilizados.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras-chave: destrutividade, inveja, polarização, psicopatia, ressentimento
Imagem: vista do Palácio do Planalto durante a invasão, de Pedro Ladeira/Folhapress
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