Observatório Psicanalítico – OP 462/2024

Ensaios sobre eventos sociopolíticos, culturais e institucionais no Brasil e no Mundo

Um (outro) dia de domingo

Mariano Horenstein – APC (Associação Psicanalítica de Córdoba)

Há apenas um ano atrás, os eventos de um domingo em Brasília me levaram a escrever um texto (1). Não se passou sequer um ano entre aquele domingo em que a democracia brasileira foi tomada de assalto e outro domingo, semanas atrás, quando um novo presidente assumiu o poder em meu país, quando recebi o convite da OP. A velocidade das mutações epocais dá medo.

As curadoras me propunham pensar sobre o que acontece na Argentina, tornando-o inteligível – suponho – para os colegas brasileiros. Como se fosse inteligível para nós. Ainda que talvez sirva a estrangeiridade proporcionada pelo OP, de quem tanto aprendo: pensar em meu país a partir de outra língua. Estranhar-me, ser obrigado a nos ver como se fôssemos outros.

Nada indicava, naquele domingo de um ano atrás, que na Argentina passaríamos de um populismo para outro. Que testemunharíamos um ataque à democracia no próprio exercício da democracia. Que seria possível imaginar um presidente do meu país assumindo o comando ao lado de Bolsonaro, e não do presidente legítimo do Brasil. Que também o acompanhariam figuras tão opostas como Vladimir Zelenski, o presidente da Ucrânia invadida, e Viktor Orban, o ultradireitista aliado de Putin, seu invasor. Que poderíamos ter um governo ultraliberal, conservador e populista ao mesmo tempo.

Desde aquele domingo, me sinto vivendo em meio à uma distopia.

De repente, somos nós que temos um presidente guiado por seu cachorro morto. Que prega como um pastor evangélico, mas tem um rabino como guia espiritual. Que nunca gerenciou nada, e ainda assim o colocamos para liderar um país que está sempre em risco de colisão. Que personifica para muitos uma esperança messiânica – alimentada por ele mesmo com referências bíblicas – mas propõe um exercício de darwinismo social, a pura lei de mercado que não é nada além da lei da selva.

Nunca imaginei que atravessaríamos a rachadura que separava meu país dessa maneira, espantados diante de uma maioria de compatriotas que -esperamos circunstancialmente- parecem escolher alegremente o abismo como destino.

Além das razões políticas e econômicas – ou econômicas, e portanto políticas – desse salto no vazio, interessa-me analisar o que talvez seja uma das razões nas quais se baseia o absurdo que estamos vivendo, com consequências imprevisíveis. Talvez por vício da minha profissão, não posso deixar de ver algo que preferiria não ver. Pois há véus necessários. Refiro-me à fascinação que o obsceno desperta naqueles que miram, aqueles que votam.

A fascinação despertada pelo novo presidente tem diversas facetas, e não é raro que tenham sido os jovens os mais cativos. Pois são eles que reconfiguram no presente a sua relação tanto com o abismo quanto com a Lei. Pierre Legendre, jurista lúcido, estudou isso com cuidado: as construções civilizatórias, o que chamava de Referência fundadora, a Lei que nos fundamenta como espécie, é a única que nos protege do abismo.

O abismo é o ponto em que corremos o risco de desfazer os fundamentos do humano, que se desatem os laços que nos permitem reconhecer-nos. O arnês que nos sustenta diante do vazio está ligado à figura do Pai, em decadência – pelo menos no Ocidente – há décadas (2), infiltrando as figuras da Lei com as quais todo adolescente deve lidar em seu espasmódico processo de subjetivação. Que essa subjetivação ocorra em um país como o meu, onde aqueles que devem sustentar o valor da Lei a desvalorizam constantemente (3), não colabora em absoluto.

É impossível não ver na identificação com alguém que tem o sobrenome Milei a miragem de uma lei própria, na escala da hybris juvenil. Sabemos como isso termina: os escolhidos dos deuses morrem jovens. “Mi lei” na realidade, significa “Sem lei”.

Assim deve ser lido. Pois toda lei implica uma referência terceira, além do capricho, que pode incomodar, mas acaba tranquilizando. Sem lei, só aguarda o abismo, a inclinação para o sacrifício pela qual os jovens têm sido atraídos desde tempos imemoriais.

São os limites que estruturam o humano: limites genealógicos, proibição da endogamia, separação entre o mundo dos vivos e dos mortos, delimitação entre as espécies. E a ascensão de uma figura como nosso novo presidente implica a diluição dessas barreiras. Quando os jovens escolhem alguém capaz de professar um amor apaixonado por seus animais de estimação, quando pouco importa se eles estão ou não neste mundo, pois até mesmo a morte pode ser negada via clonagem, estamos em apuros.

Quando não é audacioso pensar que a Primeira Dama seja a irmã do líder, e não sua companheira, estamos em apuros. Algo se degrada quando o pudor desaparece e os gritos de um cinquentão parodiam a saudável incorreção política juvenil. Quando se capitaliza a frustração coletiva em uma rapina que parodia um suposto liberalismo que deveria começar pela amplitude e tolerância em relação às ideias, antes de se reduzir à selvagem disputa pela renda.

Muitos recordarão de um filme de Tinto Brass, Calígula. Os jovens que votam em alguém capaz de fazer da lei um capricho não haviam nascido quando o filme foi lançado. Eu o assistí na época como se fosse, sem ser, um filme pornô. Tinha a idade daqueles que votaram pela primeira vez há semanas atrás (4). No filme, são exibidas uma série de transgressões, zoofilia e maus-tratos à casta governante. Mas o foco estava na relação sem lei do imperador com sua irmã, uma relação erótica, ambígua e fascinante também, ao desafiar a proibição que nos fundamenta como humanos, a do incesto (5).

Essa imagem de um homem sem lei fascina, assim como fascinava a imagem do único governante resgatado pelo homem que ama seus cães, o único governante antecedente com o qual se identifica: considerado em meu país como inominável, o yeta (6), que aceitava presentes mesmo sendo presidente, expulsava sua mulher da residência presidencial aos pontapés e bradava a toda velocidade “a Ferrari é minha, minha, minha”.

No fundo da rachadura há um abismo. Esse abismo é capaz de engolir jovens que querem tornar o mundo um lugar melhor. E a todos nós também. Pois o abismo fascina e, por meio da fascinação, paralisa. Também são fascinantes as luzes de um carro que se dirige para nós e está prestes a nos atropelar.

Notas

https://febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-op-361-2023/

2 E que não tem nada a ver com o desaparecimento desejável do patriarcado, que, de qualquer forma, é a sua caricatura.

3 A constante desvalorização de nossa moeda é apenas um efeito colateral de um contínuo processo de deslegitimação.

4 Apenas que, naquela época, não era possível votar, pois outro tipo de obscenidade – também aludida na fórmula negacionista que venceu as eleições – tinha assumido o poder.

5 Até mesmo algumas características físicas, sobre tudo seu olhar, aproximam a figura que conseguiu fascinar tantos jovens daquele que encarnava Calígula, o mesmo ator de “Laranja Mecânica”, Malcolm McDowell.

6 Na guíria, que traz má sorte. Estou me referindo a quem governou a Argentina na década de 1990.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e sociedade

Palavras-chave: lei, abismo, sacrifício

 Imagem: Hugo Aveta. Dioses invisibles (vídeo-instalação, 2022)

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:

https://www.facebook.com/share/p/CywcQTR1vi2MS2Rk/?mibextid=K8Wfd2

____________________________________________________________

Texto Original em Espanhol:

Observatorio Psicoanalítico – OP 462/2023

Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo

Um (outro) dia de Domingo

Mariano Horenstein – APC (Asociación Psicoanalítica de Córdoba)

Apenas un año atrás, los sucesos de un domingo en Brasilia me llevaron a escribir un texto (1). No había pasado siquiera un año entre aquel domingo en que la democracia brasileña fue tomada por asalto y otro domingo, semanas atrás, cuando un nuevo presidente asumió el poder en mi país, cuando recibí la invitación de OP. La velocidad de las mutaciones epocales da miedo.

Las curadoras me proponían pensar lo que sucede en Argentina, para hacerlo inteligible -supongo- a los colegas brasileños. Como si fuera inteligible para nosotros. Aunque quizás sirva la extranjería propiciada por OP, del que tanto aprendo: pensar en mi país desde otra lengua. Extrañarme, obligado a vernos como si fuéramos otros.

Nada hacía pensar, aquel domingo de un año atrás, que en Argentina íbamos a pasar de un populismo a otro. Que asistiríamos a un asalto a la democracia desde el ejercicio mismo de la democracia. Que sería posible imaginar a un presidente de mi país tomar el mando flanqueado por Bolsonaro, y no por el presidente legítimo de Brasil. Que pudieran escoltarlo también figuras tan opuestas como Vladimir Zelenski, el presidente de la invadida Ucrania, y Viktor Orban, el ultraderechista aliado de Putin, su invasor. Que pudiéramos tener un gobierno ultraliberal, conservador y populista al mismo tiempo.

Desde ese domingo, siento vivir en medio de una distopía.

De pronto somos nosotros quienes tenemos un presidente que es guiado por su perro muerto. Que predica como un pastor evangélico pero tiene a un rabino por guía espiritual. Que jamás ha gestionado nada, y sin embargo lo hemos puesto a conducir un país siempre en riesgo de colisión. Que encarna para muchos una esperanza mesiánica -alimentada por él mismo con referencias bíblicas- pero propone un ejercicio de darwinismo social, la pura ley del mercado que no es otra cosa que la ley de la selva.

Nunca imaginé que saltaríamos la grieta que dividía a mi país de este modo, espantados frente una mayoría de compatriotas -ojalá circunstancial- que parecieran elegir alegremente el abismo como destino.

Más allá de las razones políticas y económicas -o económicas, y por tanto políticas- de semejante salto al vacío, me interesa desgranar lo que quizás sea una de las razones en las que abreva el disparate que estamos viviendo, de consecuencias imprevisibles. Quizás por vicio de mi oficio no puedo evitar ver algo que hubiera preferido no ver. Pues hay velos necesarios. Hablo de la fascinación que despierta lo obsceno en quienes miran, quienes votan.

La fascinación despertada por el nuevo presidente tiene distintas facetas, y no es raro que hayan sido los jóvenes quienes queden más cautivos. Pues son ellos quienes reconfiguran en tiempo presente su relación tanto con el abismo como con la Ley. Pierre Legendre, jurista lúcido, lo estudió bien: los montajes civilizatorios, lo que llamaba la Referencia fundadora, la Ley que nos funda como especie, es lo único que nos protege del abismo.

El abismo es el punto en el que corremos el riesgo de deshacer los fundamentos de lo humano, de que se desanuden los lazos que nos permiten reconocernos. El arnés que nos sostiene frente al vacío está ligado a la figura del Padre, en decadencia -al menos en Occidente- desde hace décadas (2), infiltrando las figuras de la Ley con las que todo adolescente debe vérselas en su espasmódico proceso de subjetivación. Que esa subjetivación tenga lugar en un país como el mío, donde quienes tienen que sostener el valor de la Ley lo devalúan constantemente (3), no colabora en absoluto.

Es imposible no ver en la identificación con alguien que se apellida milei el espejismo de una ley propia, a la escala de la hybris juvenil. Sabemos cómo acaba eso: los elegidos de los dioses mueren jóvenes. Mi ley en realidad significa sin ley.

Así debe leerse. Pues toda ley implica una referencia tercera, más allá del capricho, que podrá incomodar, pero acaba tranquilizando. Sin ley, solo aguarda el abismo, la pendiente al sacrificio por la que los jóvenes se han visto atraídos desde el fondo de los tiempos.

Son los límites lo que estructura lo humano: límites genealógicos, proscripción de la endogamia, separación entre el mundo de los vivos y el de los muertos, deslinde entre especies. Y el ascenso de una figura como nuestro nuevo presidente entraña la dilución de esas barreras. Cuando los jóvenes eligen a alguien capaz de profesar un amor apasionado por sus mascotas, cuando poco importa que estén o no en este mundo, pues incluso la muerte puede desmentirse vía clonación, estamos en problemas.

Cuando no es aventurado pensar que la Primera Dama sea la hermana del líder, y no su compañera, estamos en problemas. Algo se degrada cuando el pudor desaparece y los gritos de un cincuentón parodian la saludable incorrección política juvenil. Cuando se capitaliza la frustración colectiva en una rapiña que parodia un supuesto liberalismo que debería empezar por la amplitud y tolerancia hacia las ideas en todo caso, antes de reducirse a la salvaje disputa por la renta.

Muchos recordarán una película de Tinto Brass, Calígula. Los jóvenes que votan a un sujeto capaz de hacer de la ley un capricho no habían nacido cuando se estrenó. Yo la vi entonces como si fuera, sin serlo, cine porno. Tenía la edad de quienes votaron por primera vez semanas atrás (4). En la película se exhibe un abanico de transgresioness, zoofilias y maltrato de la casta gobernante. Pero la relación del emperador sin ley con su hermana ocupaba el foco, una relación erótica, ambigua, fascinante también, en tanto burla la prohibición que nos funda como humanos, la del incesto (5).

Esa imagen de un hombre sin ley fascina, como fascinaba la imagen del único gobernante rescatado por el hombre que ama a sus perros, el único antecedente con quien se identifica: considerado en mi país como innombrable, el yeta, quien aceptaba regalos aun siendo presidente, echaba a las patadas a su mujer de la residencia presidencial y bramaba a toda velocidad “la Ferrari es mía, mía, mía”.

Al fondo de la grieta hay un abismo. Ese abismo es capaz de engullir a jóvenes que quieren convertir al mundo en algo mejor. Y a todos nosotros también. Pues el abismo fascina y, fascinación mediante, paraliza.

También fascinan las luces de un auto que se dirige hacia nosotros y está a punto de atropellarnos.

Notas

https://febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-op-361-2023/

2 Y que no tiene nada que ver con la deseable desaparición del patriarcado, que en todo caso es su caricatura.

3 La constante devaluación de nuestra moneda es apenas un efecto secundario de un proceso continuo de deslegitimación.

4 Solo que en esos años no se podía votar, pues otro tipo de obscenidad -también aludida en la fórmula negacionista que ganó las elecciones- se había encaramado en el poder.

5 Incluso algunos rasgos físicos, sobre todo su mirada, emparentan la figura que ha logrado fascinar a tantos jóvenes con quien encarnaba a Calígula, el mismo actor de “La naranja mecánica”, Malcolm McDowell.

(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)

Categoría: Política y Sociedad

Palabras-clave: ley-abismo-sacrificio

Imagem: Hugo Aveta. Dioses invisibles (video-instalación, 2022)

Colega, haz clic en el siguiente enlace para debatir el tema con los lectores de nuestra página de Facebook:

https://www.facebook.com/share/p/CywcQTR1vi2MS2Rk/?mibextid=K8Wfd2

Tags: abismo | Lei | sacrifício
Share This