Observatório Psicanalítico OP 458/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Geração digital: abominável mundo novo?

Cibele Rays (SBPSP)

Michel Dermuget (2020), um neurocientista francês e diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, em seu mais recente trabalho, apresenta dados fundamentados que mostram como os dispositivos digitais estão afetando seriamente o desenvolvimento neuronal de crianças e jovens. Segundo o pesquisador, que também é autor do livro “A Fábrica de Cretinos” (2019), é a primeira vez na história que o QI médio de uma geração é menor que o da geração anterior, quebrando assim o “efeito Flynn”.

Embora não seja possível calcular o peso de cada fator que pode influenciar na diminuição do QI (poluição, exposição à pesticidas, entre outros), para o autor não há dúvidas que o tempo de tela tem um efeito significativo na diminuição do desenvolvimento cognitivo, e faz um alerta aos pais para que manejem melhor o tempo que cada criança ou jovem fica exposto a elas. E o que será que as telas provocam para causar esse efeito?

Dermuget faz uma lista de danos aos quais esses jovens estariam submetidos, como a diminuição de tempo destinado a atividades enriquecedoras (como leitura, arte, música, entre outras), perturbações no sono, superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, deficiências na aprendizagem, impulsividade e sedentarismo. Este último, além de comprometer o desenvolvimento corporal, influenciaria a maturação cerebral, justamente numa fase da vida onde o potencial para a plasticidade neuronal é mais intenso.

Suponho que Durmeget descreve assim as ditas gerações Z (nascidos entre 1997-2010) e alpha (nascidos a partir de 2010). A principal característica desses grupos é a afinidade com a tecnologia, são os chamados nativos digitais. Têm capacidade multitarefa, mas podem ter dificuldades em encontrar um equilíbrio entre a conectividade virtual e o contato real, fora das telas. Para essas gerações, a visão sequencial de tempo foi substituída por uma em que várias coisas podem ser realizadas ao mesmo tempo, criando assim uma noção de realidades simultâneas.

Esses jovens são descritos como práticos, realistas, ativistas, avessos a rótulos. Por outro lado, generalizando, são aqueles que passam horas trancados no quarto mexendo no celular, conectados a pessoas de vários lugares, recebendo uma enxurrada de informações, porém sem estabelecer uma conexão cotidiana profunda, tanto com as informações que recebem como com seus pares, pais e familiares. Assim, seus comportamentos tendem a ser pouco reflexivos, muito influenciados por opiniões que captam nas mídias digitais, às quais podem se alienar ou se tornar adictos.

As neurociências têm nos trazido uma série de estudos que mostram como a adição às redes ocorre por um sistema biológico muito parecido ao da adição às drogas. Entretanto, para além disso, o que levaria esses jovens à hiperconexão a ponto de se alienarem de si mesmos e do contato com o mundo real?

Ao ler a entrevista de Irene Hernández Velasco (2020), pela BBC, com Michel Dermuget, fiquei inicialmente imersa por uma perturbadora sensação melancólica e nostálgica. Meus pensamentos foram invadidos por uma série de imagens de minha própria infância e da infância de meus filhos. Imagens do quintal da minha casa onde passava horas brincando, encenando histórias e criando representações para minhas vivências infantis e fantasias do que seria crescer.

Fiquei tomada pelo que, para mim, há de mais íntimo com a infância: o momento de viver entre pares, de constituir-se e construir vínculos, vivenciar as sensações internas e externas do que é habitar um corpo, estar nesse mundo, e desvendá-lo.

Lembrei de um trecho da poesia “Manoel por Manoel”, do livro Infância, de Manoel de Barros (2004), que diz:

“…Cresci brincando no chão entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Eu o menino e o sol. O menino e o rio. O menino e as árvores.”

Arrisco uma aproximação entre a descrição de Manoel de Barros com uma ideia que Winnicott (1979) desenvolveu sobre a constituição inicial de um sujeito. Para Winnicott, no início o bebê existe em comunhão com sua mãe (ou com a pessoa que cuida dele), ou seja, ele não existe como alguém separado dela (essa é uma ilusão primária). É somente aos poucos, entre as presenças e ausências da mãe, que a criança vai experimentando as fronteiras de seu domínio. Assim, vai-se constituindo um espaço intermediário entre a mãe e o bebê, de onde deriva o início da simbolização (que seria o modo de poder criar a mãe dentro de si em suas ausências). A criação desse espaço intermediário (espaço transicional) é essencial para que alguma separação ocorra entre o bebê e quem cuida dele, e ele possa surgir como um sujeito separado, capaz de criar pouco a pouco uma ideia de si mesmo.

A primeira ideia que criará a respeito de si será a partir do reflexo de sua imagem no olhar da mãe (o olhar da mãe funciona no início como um espelho para a criança pequena). Os olhares das demais pessoas que o cercam também servirão como espelho e a criança precisará juntar esse quebra-cabeças para se compor (Aulagnier, 1979).

Para que essa separação ocorra, a mãe suficientemente boa (conceito criado por Winnicott) precisa falhar. Ou seja, ela não irá naturalmente corresponder a tudo que seu bebê espera dela e aos poucos a criança terá que começar a suportar as frustrações que a mãe e a realidade lhe impõem para poder reconhecer o que está fora de si, se relacionar e se constituir internamente.

A psicanálise, como ofício que também se propõe a refletir sobre o contexto sociocultural, poderia contribuir para pensar a respeito do que levaria os jovens à hiperconexão às redes, a ponto de se alienar de si mesmos e do contato com o mundo real, lembrando esse estado de indiferenciação inicial? Certamente sim, e já existem na literatura inúmeros artigos a respeito. Há, inclusive, uma edição do Jornal de Psicanálise (do Instituto Durval Marcondes, da SBPSP) toda dedicada a esse tema.

A educadora Katia Ethiénne dos Santos (2023) coloca que, desde 2015, existe um conceito chamado de “onlife”, que se refere à ideia de que esses jovens vivem na fronteira entre o universo físico e o virtual de uma maneira que, em alguns momentos, não sabem mais o que é de um e o que é do outro, como no estado de ilusão primária que descrevi acima. Seria essa uma das respostas para o efeito de alienação e compulsão às redes? Um retorno a um narcisismo primário que levaria o sujeito a ficar refugiado (alienado) a uma imagem ideal de si?

Tanis (2022) indaga, sem querer patologizar, se haveria, nesses jovens, uma maior instabilidade narcísica, uma fragilidade para sustentar suas próprias ideias, um certo vazio. Indo além, o autor comenta como uma das hipóteses para esse fenômeno o enfraquecimento do sujeito como narrador, tornando-se passivo diante de um cenário constituído pelos jogos ou pelas redes sociais. Tanis se pergunta se esses efeitos teriam a capacidade de moldar subjetividades e até que ponto isso seria possível. Ou ainda mais, se seriam capazes de afetar o próprio regime pulsional do sujeito.

Helena Di Ciero (2023), em um ensaio para o blog da SBPSP, traz uma imagem muito interessante para refletirmos. Ela faz uma aproximação entre o espelho em que a madrasta do conto da Branca de Neve se mirava a cada manhã para saber se havia alguém mais bela do que ela e um “espelho de pixels” contemporâneo, que tem a mesma função oracular, diante do qual cada jovem (mas também nós, adultos) se mira e busca o encontro de um ideal, daqueles impossíveis de se atingir, que os levam à angústia e alienação de si mesmos, buscando fora de si (no TikTok, Instagram, Snapchat, YouTube, etc.) quem eles devem ser, ficando cada vez mais siderados, empobrecidos e infelizes.

Não se trata de exorcizar as redes, entrando em um debate tecnofóbico, exaltando o passado e demonizando o uso das mesmas, como nos alerta Gondar (2020). Entretanto, temos que considerar que “a tecnologia deixou de se referir a instrumentos para tornar-se um meio, todo um ambiente digital onde estamos mergulhados e que nos constitui”. Há uma rede de interesses em busca de poder por trás das tecnologias, seja por parte das empresas, de quem as contrata, do Estado. Enfim, não nos cabe sermos ingênuos.

A entrevista com Dermuget termina de modo fatalista, anunciando a criação de uma “fábrica de cretinos” e acende um sinal de alerta para que as novas gerações não se tornem os personagens gama de Huxley, em “Admirável Mundo Novo”, ou os animais ludibriados de “A Revolução dos Bichos”, de Orwell, que sucumbiram ao poder por serem incapazes de ler e pensar e, assim, construir uma crítica sobre a repressão a que estavam submetidos.  

Gondar (2022), contudo, nos lembra que somos munidos de um inconsciente que tem força e profundidade, e isso nos torna bem mais do que consumidores digitais. A autora acrescenta que “há algo em todo sujeito que escapa ao domínio das normas sociais e digitais, dos perfis de grupos, da intensa propaganda da mídia, e mesmo dos movimentos coletivos. Disso a clínica nos dá testemunho: nenhum sujeito é mero decalque ou pura massa de manobra das instâncias de poder, sejam eles pais, patrões, ou manipuladores digitais. Seus sintomas o denunciam. As depressões, as compulsões, o pânico, não são simples defeitos de um funcionamento individual; são também formas – mesmo que sofridas – de fazer obstáculo à universalidade, de mostrar que nem tudo é capturável, de que algo singular em cada sujeito insiste em se preservar”. (p.155)

Termino com uma frase de Jean-Luc Nancy, citada por Gondar: “o ser humano nada mais é que a resistência absoluta, incontornável, ao aniquilamento”. (pág. 156)

Nós, psicanalistas, também estamos aqui para lembrar disso e nos debruçarmos sobre todas essas questões.

Referências bibliográficas:

– Dermuget, M. (2020) – Entrevista de Irene Hernández Velasco, pela BBC, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54736513

– Barros, M. (2004) – Manoel por Manoel, in Memórias Inventadas – A Infância. Planeta.

– Winnicott, D. W.(1975) – O brincar e a realidade. Imago

– Aulagnier, P. (1979) – A Violência da Interpretação, do Pictograma ao Enunciado. Imago

-Tânis, B. (2022) – Do Fort-Da ao Fortinite, Hiperconectividade e exaustão. Jornal de Psicanálise, 55 (102), 47-60.

– Santos, K. E. (2023) – É vício? Entenda os diferentes graus de dependência das redes. Disponível em: https://folha.com/wrz4c3l8

– Ciero, H.C.D. (2023) – Ilusão: o perigoso fio que nos conecta mesmo sem wi-fi. Blog de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Disponível em: https://www.sbpsp.org.br/blog/ilusao-o-perigoso-fio-que-nos-conecta-mesmo-sem-wi-fi/

Gondar. J. (2022) – O inconsciente é capturável? Jornal de Psicanálise, 55 (102), 149-156.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: inteligência artificial, geração z, geração alpha, subjetividade contemporânea, hiperconectividade, mídias digitais. 

Imagem: site BBC

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Tags: geração alpha | geração z | hiperconectividade | inteligência artificial | mídias digitais | subjetividade contemporânea
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