Observatório Psicanalítico OP 457/2023 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

“Carthago delenda est”

Adriana Augusta (SPFOR)

(Comentário em resposta ao texto “Mundos em Colisão”, Valton de Miranda Leitão, publicado no Observatório Psicanalítico 455/2023).

Os mortos 

“Na ambígua intimidade 

que nos concedem

podemos andar nus

diante de seus retratos. 

Não reprovam nem sorriem

como se neles a nudez fosse maior.”(CDA)

O mundo é governado por plutocracias que se valem de toda sorte de subterfúgios e crueldades para levar a cabo seu projeto de acúmulo de dinheiro e, por conseguinte, poder. 

A inequívoca constatação de “uma humanidade” atrelada à compulsão à repetição da guerra pelo ouro fetichizado e para o consumo.

Ah o “mercado”, faz Pandora estremecer!

A guerra é espetáculo, uma atuação em que se sacrificam vidas em prol do lucro. Os senhores da guerra criam narrativas, por vezes espantosas e delirantes, a fim de fabricar uma verdade, a sua verdade, a verdade do capital. O que há de bom na guerra? 

Avanços científicos, médicos e bélicos; pode-se apreciar novas armas químicas; também o alcance de um fuzil, já devidamente testado no corpo de algum jovem e que será vendido nas feiras de armamentos; novos espaços para empreendimentos imobiliários… É preciso movimentar o mercado, enfim… Ah! Tantas coisas a guerra traz! São esses argumentos ignominiosos para nós? 

Ao examinar os estragos psíquicos da I Guerra Mundial, Freud abriu um campo de pesquisa abarcando guerra, neurose, trauma, angústia e repetição. A guerra representa, para a mente, o excesso dos excessos pulsionais, obviamente se sobrar alguma mente, pois o objetivo é a aniquilação completa do outro. A nós, resta-nos equilibrar o nosso próprio psiquismo para não perdermos a razão, mesmo com nossas dores, e podermos pensar com clareza e compreensão ampla dos fatos. Infelizmente, as coisas não são como gostaríamos e é preciso dizer: não temos a certeza de tudo e nem a nossa verdade é absoluta, embora queiramos que seja soberana, custe quantas vidas custar. 

A realidade é o que é. 

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Não foi Freud quem disse isso, foi Marx, mas poderia ser a descrição do inconsciente. 

Nosso tempo é marcado pela comunicação e muitas guerras têm sido travadas e sustentadas nesse campo. Escolhemos as fontes de pesquisa conforme nosso interesse. Ou serão os algoritmos que nos escolhem? Assim, estreitam nossa possibilidade de pensar e mantêm intactos o sistema de exploração dos poderosos? 

Por Eric Hobsbawn: “Vivemos hoje novas formas de vida, novos regimes precisam criar identidades que se adaptem a eles. Daí que é comum hoje governos e meios de comunicação inventarem um passado. Como dizia George Orwell, estamos em uma idade em que o presente controla o passado. Altera-se a história para servir aos interesses de poucos grupos. É vital o historiador lutar contra a mentira. O historiador não pode inventar nada, e sim revelar o passado que controla o presente às ocultas.”

Em 149 a.C. Cartago foi destruída por Roma. Houve duas guerras anteriores nas quais Roma vencera, as guerras púnicas, em que foram impostas duras sanções à capital dessa civilização da Antiguidade. No entanto, Cartago conseguiu se reconstruir, o que deixou os romanos furiosos e invejosos de seu sucesso comercial. Dentro do senado romano começa, então, um “lobby” para que Cartago fosse completamente destruída. 

“Carthago delenda est” era a frase proferida persistentemente por Catão, o Velho, em suas explanações, usando-a para finalizar seus discursos veementes: “Cartago deve ser destruída”. 

A cobiça dos senadores pelas riquezas de Cartago determinou seu destino, mas os romanos precisavam de uma desculpa. Obviamente, os cartagineses não suportaram a severa pena e as condições extorsivas e inaceitáveis impostas por Roma. A guerra, então, aconteceu e Cartago foi facilmente vencida pela implacável Roma. Varrida do mapa. A cidade foi arrasada até os alicerces. Sua população foi morta e os sobreviventes, escravizados. A cidade foi destruída totalmente, sendo queimada e colocado sal pelo solo, para que ali nada mais crescesse. 

Com isso, completou-se o ciclo de batalhas que deu grande parte do mar Mediterrâneo aos romanos. 

Marx nos diz “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. E, completando, Dr Valton nos diz terem os fatos sempre os dois componentes combinados: tragédia e farsa. 

É possível a paz para o ser humano? 

É possível superar o narcisismo individualizante?

Vamos continuar na negação alucinatória da morte?

Como me disse uma amiga (dentre várias): “não quero entrar nessa “vibe” de guerra”, estou em clima de “jingle bells”; ao qual prontamente respondi: “só quer saber da sua própria “rave”, não é? 

Interessante constatar que os seres humanos dizem buscar a paz, mas talvez o que persigam seja sua paz “individual”, mesmo que neguem o mundo real, banindo o princípio de realidade. É uma das saídas possíveis e que vemos no consultório frequentemente. 

“Por que, não?”, respondeu minha amiga. 

Freud já nos disse no Mal-Estar na Civilização que o homem gosta mesmo é de conflito e confusões de toda ordem. A pulsão de destruição não parece ser domesticável. A história vem mostrando isso. Cartago seria o modelo histórico/psicanalítico a se repetir.

Força Pandora! 

Segura a caixa!

Referências

S. Freud – O mal-estar na civilização

K. Marx – O 18 de Brumário de Luís Bonaparte 

E. Hobsbawn – https://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR59220-6011,00.html

Valton de Miranda Leitão – O inimigo necessário

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: psicanálise, guerra

Imagem: “A solidão do monstro”. George Frederic Watts. O Minotauro se transforma num símbolo dos instintos bestiais da civilização moderna, segundo declarou o próprio pintor. 1885. Tate Modern, Londres. 

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Tags: guerra | Psicanálise
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