Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Sobre o V Congresso da CPLP – Salvador – 2023
Miguel Sayad (SBPRJ)
Meu ponto.
“A Sabedoria da Insegurança”. Alan Watts
Observem o seguinte:
Eu fui vice-presidente da SBPRJ, e estive muito envolvido com o projeto que introduziu não só o sistema de cotas raciais sociais na formação psicanalítica, bem como, retornando ao espírito e à letra freudiana, levantou a censura à formação para não médicos e não psicólogos.
Isso durante o período de pandemia da Covid e de pandemônio autoritário, violento e armamentista que cindiu o Brasil em estilo esquizoparanóide.
Simultaneamente, entrou em formação a primeira turma de cotas raciais sociais e o auditório da Sociedade deixou de poder ser usado pela dificuldade de acesso dos mais velhos e pelo risco de não se poder escapar em caso de incêndio. Entretanto, foi em Salvador, no encerramento do Congresso da CPLP, que “a coisa pegou fogo”. Agora, temos várias saídas que se bifurcam. (Jorge Luis Borges em “Os Jardins das Veredas que se Bifurcam”)
A natureza, as suas sementes e o solo em que se gestou e se organizou o V Congresso da Comunidade Psicanalítica dos Países de Língua Portuguesa em Salvador, mostrou-se uma natureza tensa e desconhecida, carregada de pressão devido à herança trágica por parte da sociedade branca, beneficiária e estruturada no privilégio dos brancos colonizadores, cujos herdeiros estavam pela primeira vez em convívio, contato e confronto com a sociedade negra de jovens, muitos em início de suas análises e formação psicanalítica, outros em coletivos ativistas de seus direitos e à espera de justiça e reparação.
Desde o início, um clima tenso – e assim é que deveria ser – e foi, ainda bem, deflagrado pelas falas contundentes e exigentes, focando com intensidade e agressividade a questão da branquitude.
Esse clima foi progressivamente alimentado pela intensidade crescente e constante das “chamadas às falas” ao povo branco ali presente, pelos participantes negros e afins.
Essa atmosfera foi intensificada pela dificuldade de empatia com a agressividade que era o bonde condutor das falas. Agressividade que rompe com a organização e estrutura colonial, abre o inconsciente recalcado que passa a se manifestar com clareza na superfície das falas.
Possivelmente, a expectativa idealizada do Ideal do Eu branco, (de modo a sustentar o Eu Ideal branco), era a de que o V Congresso fosse de congraçamento mútuo e imediato entendimento entre os descendentes do povo negro escravizado e espoliado e os descendentes do povo branco que os massacrou e explorou sua mão de obra escravizada.
Ora, se assim tivesse sido, seria o testemunho da inocuidade e da iniquidade do encontro e uma reafirmação estrutural da branquitude.
Quanto a essas considerações, as faço inteiramente exposto a reparos, contradições e outras ideias, desde que estas se ponham em discussão: essa é uma das vias privilegiadas para a correção e modificações de pensamentos, projetos e ações.
Pois bem, podemos ver que na sessão de encerramento – atenção! – o encerrado se abriu, com força a tensão explodiu.
Consideramos que o estímulo (as provocações, as palavras faladas, as teorias desenvolvidas) partiu do povo negro, e a força de descerramento, que emergiu com vigor, com luz incandescente a polarizar a atenção de todos, partiu ou repartiu do povo branco.
Psicanalistas conhecem, por experiência de ofício, os movimentos grupais. É claro que a questão que envolve o Ideal do Eu e sua solidariedade com o Eu Ideal envolve todos os humanos, de qualquer cor, raça ou credo. É uma equação matemática complexa. Uma linguagem com gramática, semântica e melodia.
Veja-se lá o Livro dos Sonhos de Freud, os artigos sobre chistes e a psicopatologia da vida quotidiana.
As nossas Instituições, que oferecem uma formação psicanalítica com um programa antirracista e de estudos – tanto do movimento negro como da branquitude – incluída no currículo da formação de novos psicanalistas e na formação contínua dos já associados ou efetivos, organizaram esse Congresso!
Essas Instituições, precisam aproveitar esse momento decisivo, talvez um ponto de inflexão no movimento psicanalítico brasileiro, para expandir o diálogo e o estudo compartilhado do V Congresso e da cena de seu encerramento ou descerramento.
Não se trata de “tornar proveitoso um mau negócio” (Bion), mas aproveitar as consequências e desdobramentos inesperados de um bom negócio.
Desde o primeiro dia de minha formação psicanalítica, o primeiro mesmo, há quase 50 anos, e durante meu percurso por três instituições psicanalíticas – atualmente, a pujante, inovadora e dramática SBPRJ – e ainda participando por alguns anos do Comitê da IPA\UN -, anos intensos, muito enriquecedores e instrutivos sobre os conflitos do mundo imbricados com o movimento psicanalítico na IPA, em todas essas experiências das quais dou testemunho, a questão do silenciamento, não a do silêncio, mas a do silenciamento cúmplice de encobrimento, de encerramento de fatos e testemunhos, tem sido um problema crônico, “de origem”, mas não original, pois vem sendo compulsivamente repetido.
Entretanto, temos agora a oportunidade para contrariar essa compulsão, devemos aproveitá-la institucionalmente no lugar de silenciar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas; Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Formação Psicanalítica, Branquitude, Ideal do Eu branco, Compulsão à Repetição, Silenciamento
Imagem: Rona Neves, 2016
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no facebook: