Observatório Psicanalítico–Editorial agosto/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 40

Agosto/2023

Editorial 

Os registros de atos realizados pela população branca de nosso país estão disponíveis nos arquivos brasileiros e coloniais, sobretudo nos manuais e livros didáticos. Entretanto, são escassas as referências, desde os meados do século XVI até praticamente o fim do século XIX, sobre a imensa população escravizada negra que viveu no Brasil. Há um silenciamento da luta incessante pela liberdade, protagonizada por negros, libertos e seus descendentes. São raros os registros das atuações desses grupos, e também do racismo e da violência cotidiana contra essa população, daí significando uma dupla morte: a física e a da memória. 

Segundo Gomes,F.; Lauriano, J.; Schwarcz, L. M. (2021, Enciclopédia Negra, Companhia das Letras), muito dessas trajetórias invisibilizadas deve-se à maneira como são fundados e organizados os arquivos brasileiros e como as narrativas são construídas e divulgadas. “Narrar é uma forma de fazer reviver os mortos e uma forma de fabulação crítica” (Saidiya Hartman, escritora norte-americana e professora na Universidade de Columbia, in Venus in Two Acts).

Na tentativa de reparar essa ausência de vozes em nosso campo de atuação e firmar nosso compromisso com a causa antirracista em nossa época, a equipe de Curadoria do Observatório Psicanalítico tem se empenhado, desde a sua criação em 2017, em debater os temas que abordam o racismo, a branquitude e as relações raciais no Brasil e no mundo. Editamos e publicamos ensaios escritos por colegas psicanalistas de nossa Federação e realizamos a série específica no podcast Mirante “Relações raciais no Brasil.” Criamos a categoria “Vidas Negras Importam”, no site da Febrapsi, onde estão organizados esses ensaios. Escolhemos essa hashtag para categorizar os ensaios, chamando a sociedade para a reflexão sobre a violência de Estado direcionada às pessoas negras. A expressão #vidasnegrasimportam resultou da manifestação de cobrança à adesão da pauta antirracista; começou nos Estados Unidos depois da morte de George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin e se espalhou pela Internet. 

O racismo está amalgamado às relações raciais brasileiras. Atravessa todas as camadas sociais, formando uma trama violenta na qual um grupo social se privilegia em detrimento do outro. São inegáveis as marcas psíquicas que o racismo produz, nas pessoas negras ou brancas. A série do Mirante é composta pelos episódios: Psicanálise e liberdade; Jogo mortífero: desigualdade e exclusão; Branquitude em questão; Descolonização da Psicanálise; A artista e o processo criativo; Um novo mundo. Esses programas de áudio estão em todas as plataformas de podcast.

Nesse último mês de agosto publicamos quatro ensaios-testemunhos de colegas que participaram presencialmente das atividades do V Congresso de Psicanálise da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em Salvador, de 27 a 29 de abril. Os debates ocorridos no Congresso foram retomados no Observatório Psicanalítico após três meses da sua realização, indicando que esse foi o tempo necessário para que muitos colegas pudessem refletir e elaborar pensamentos a respeito dos temas discutidos.

O primeiro ensaio, “Estive lá no Congresso Escravidão e liberdade: travessias do corpo e da alma”, foi enviado pela colega Teresa Rocha (SBPRJ) (OP-416/2023). Chama a atenção sua constatação de que “não seria esperado que o debate fosse plácido, posto que tanto a escravidão quanto a liberdade trazem, em si, uma enorme rede de tensão.” Teresa organiza seu pensamento em “testemunhos” voltados a pensar as dificuldades relacionados ao diálogo em nossas instituições psicanalíticas que reproduzem as mesmas dificuldades das instituições sociais em debater o tema do racismo em nosso cotidiano. Destacamos sua preocupação com a complexa articulação do pensamento psicanalítico com outros campos do conhecimento, pois “o espaço do nosso ofício precisa ser preservado para manter a problematização da teoria, da técnica e escuta da singularidade do outro, para que assim possamos ter mais consistência nesse diálogo interdisciplinar.” 

O ensaio “Nosso racismo e o desmentido” (OP 418/2023) foi elaborado pelo grupo de ações e estudos multirraciais formado por Alice Lewcowicz (SPPA), Carla Bellodi (SBPRP), Cybelli M Labate (SBPRP), Elizabeth Cimenti (SPPA), Josiane B Oliveira (SBPRP), Josimara M F de Souza (SBPRP), Luciana Mian (SBPRP), Mauro C Balieiro (SBPRP), Sérgio Lewcowicz (SPPA). Referiu-se ao pensamento do psicanalista húngaro Sandor Ferenczi sobre o “segundo tempo” do trauma, no qual a violência sofrida pelo sujeito irá se consumar como traumática. “É o tempo do desmentido, quando a dor relatada não é validada pelo outro – a dor é desmentida e dessa maneira ocorre a retraumatização do sujeito. Se nos deparamos com a denúncia da dor provocada pelo racismo estrutural, enunciada por psicanalistas negros, e nós, analistas, não reconhecemos nossa responsabilidade enquanto grupo, o que se passa é o desmentido. Para os autores “as dificuldades de convívio entre diferentes, faz parte desse desmentido, pois pretende transformar em simétrica uma relação historicamente de dominação.”

“Onda Negra, Medo Branco em Território Psicanalítico” (OP 420/2023) é o título do ensaio de Maria José Tavares Barbosa Irmã e Cristiane Mota Takata, ambas da SBPSP que reconhecem a importância do 5° CPFL ter marcado “a presença negra no evento, fazendo toda diferença, pois todos puderam perceber que os negros/as/es têm voz e saberes autênticos a compartilhar 

também no campo psicanalítico.” Referem-se ao pensamento de Neusa Santos Sousa (2021): “a descoberta de ser negro é mais do que a constatação do óbvio (…) é sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades. Ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro”.  Dentre tantas considerações destacamos a convocação que nossas colegas nos fazem sobre a urgência de “criarmos dispositivos antirracistas para lidar com violências como as que testemunhamos diariamente, tão “naturalmente” reproduzidas no CPLP.”

Ainda “Sobre o V Congresso da CPLP – Salvador – 2023” (OP422/2023), Miguel Sayad (SBPRJ) entende que o Congresso da Comunidade Psicanalítica dos Países de Língua Portuguesa foi “carregado de pressão devido à herança trágica por parte da sociedade branca, beneficiária e estruturada no privilégio dos brancos colonizadores, cujos herdeiros estavam pela primeira vez em convívio, contato e confronto com a sociedade negra de jovens, muitos em início de suas análises e formação psicanalítica, outros em coletivos ativistas de seus direitos e à espera de justiça e reparação.” 

“O desconhecido e o novo” (OP 417/2023) é o título do ensaio do psicanalista peruano Jorge Bruce. Este texto foi apresentado no último Congresso da FEPAL – Federação Psicanalítica da América Latina – na mesa do Observatório Psicanalítico sobre o bicentenário de independência dos países latino-americanos. Jorge cita o poeta Charles Baudelaire, que termina seu poema “Le Voyage (A Jornada)” nos dizendo que é necessário ir “ao fundo do desconhecido para encontrar algo novo!”. Para Jorge “uma das características da herança colonial latino-americana que se repete em toda a nossa região, apesar da diversidade de histórias em cada país, é a presença de mecanismos que constituem variantes de negação… Em todos esses esforços para exercer a vontade de não saber, o objeto que nos preocupa em termos de colonização e descolonização é a soma – no meu país são a maioria – de pessoas excluídas, marginalizadas, desvalorizadas desde o trauma da conquista até os dias de hoje.” Reconhece que apesar de “estarmos comemorando nossos bicentenários de vida republicana, esse processo de olhar e escutar seletivos continua atravessando os períodos de nossa história, como um vírus cujas variantes são infinitas e se adaptam de uma etapa histórica para outra.”

Segundo alguns jornalistas políticos é raro passar um mês de agosto sem crise política no Brasil. Agosto é considerado um mês agourento para os políticos brasileiros e para as nossas Instituições. Não faltam razões para fundamentar os temores. Citam o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, a renúncia à presidência da República de Jânio Quadros em 1961, quando militares tentaram impedir a posse do vice João Goulart que governou até o começo de 64. Esses militares, apoiados por civis, implementaram a ditadura militar em nosso país. Em 1976 ocorreu o “estranho” acidente de carro que causou a morte de Juscelino Kubitscheck. Segundo relatório da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, o ex-presidente do Brasil (1956-1961) foi assassinado em 1976, vítima de um atentado político. Complô da Operação Condor, firmado entre as ditaduras do Brasil, Argentina, Chile e Paraguai, pois JK poderia influenciar seriamente a estabilidade do cone sul. Ainda no mês de agosto de 1992, Collor pediu a população que fosse às ruas com as cores da Bandeira; porém, multidões responderam saindo de luto, decretando o fim daquele governo. Em 2014, o candidato à sucessão de Dilma, Eduardo Campos, morreu num acidente aéreo em Santos. 

Neste agosto de 2023 o gosto amargo foi para o ex-presidente do Brasil. Celulares de pessoas próximas a ele foram rastreados e decodificados pela polícia federal. A operação ajudou a fechar algumas das peças do quebra-cabeças do “caso das joias” e as tentativas de golpe tanto da Polícia Rodoviária Federal em dificultar a chegada dos eleitores de Lula às urnas do Nordeste como os atos de 8 de janeiro.  Segundo o jornalista Ricardo Noblat, “Bolsonaro só desejava uma coisa: torpedear a democracia para pôr no seu lugar um regime autoritário à moda antiga com o apoio dos militares.”

Assim, em agosto o desgosto na política foi para a democracia argentina. O parlamentar Javier Milei, do partido de extrema-direita “Liberdade Avança” e um desconhecido na política até 2021, desestabilizou a corrida presidencial com eleições marcadas para outubro, ao vencer as prévias no país. O ex-presidente brasileiro disse nas redes sociais que compartilha dos mesmos valores de Milei e citou o legítimo direito à defesa com o livre uso de armas (conforme foto onde ambos estão apontando os dedos indicadores como se fossem armas). Nós, brasileiros, sabemos bem o que é ter um governante, por quatro anos, que faz uso do sentimento do ódio para pautar suas ações, com ataques às instituições democráticas.  

No OP publicamos os ensaios “Segunda-feira sombria” (OP 419/2023) de Monica Vorchheimer e o “Congresso de Cartagena: duas semanas depois” (OP 421/2023), de Virginia Ungar, ambas colegas da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA).  Para Monica “não basta explicar a decepção, a desilusão com os políticos, as carteiras vazias e os salários insuficientes para cobrir as necessidades básicas.” E pergunta: “Como é possível que um louco possa definir o destino de 46 milhões de argentinos? […] a extrema direita não é apenas um fenômeno local ou mesmo regional. O que está acontecendo conosco? São promessas diante da desesperança geral e do pessimismo de uma população assolada por catástrofes de todos os tipos, onde o vínculo social parece estar se desmembrando em egoísmos solipsistas. Populismos de uma cor ou de outra auguram um renascimento nas mãos de um líder carismático, porta-voz de um futuro redentor das massas. Nesse momento, o líder salvador proclama uma redenção cuja condição prévia é a destruição.”

Para Virginia Ungar é muito difícil pensar quando se vive em um clima de ameaça. […] É muito semelhante ao que ocorreu, e segue ocorrendo em nosso continente e para além dele: parece que estamos sofrendo uma espécie de praga que vai espalhando o neofascismo perigosamente pelo planeta.” Virginia faz um contraponto à sua alegria no Congresso de Cartagena quando participou de debates sobre temas atuais, ao lado de amigos e colegas após quatro anos de tantos encontros on-line. “Foi gratificante e reparador”. Cita uma das atividades do congresso, uma discussão em torno do filme “Cría Cuervos”, de Carlos Saura. “Assistimos ao esforço da menina em localizar signos e sinais a fim de encontrar alguns significados que lhe permitam entender algo do que se passa. A questão do tempo também é crucial para entender o que ocorre em um mundo em que personagens insólitos e quase caricatos irrompem na cena política. Devemos lembrar que nas catástrofes que não são naturais, mas sim provocadas pelo ser humano, se recorre a meios específicos de desumanização e dessubjetivação a fim de aniquilar a existência histórica e social dos indivíduos.”

Também neste mês de agosto, “O leite, a comida e a sexualidade” foi episódio do nosso podcast Mirante, quando demos continuidade à nossa temporada “O sexual na Polis”. Convidamos Luciana Saddi (SBPSP), que conversou com a artista visual contemporânea Cecília Cavalieri. O seio da mãe é oferecido não apenas com o intuito de nutrição, mas de apaziguamento das tensões, minimizando as sensações de desconforto que o ego incipiente do bebê não pode ainda sustentar. Neste sentido, para a psicanálise, a relação com o seio é ampla e complexa. Cecília nos revela que enquanto cultura, permanecemos muito ligados ao objeto leite. Para ela, há uma continuidade da experiência de amamentação na nossa vida adulta, mediada pela indústria do leite, e que envolve fêmeas de outras espécies.

No Instagram relembramos os ensaios das colegas: Juliana Lang Lima (SBPdePA), OP 138/2020 “E nós, o que temos feito?” sobre as mudanças climáticas e seus efeitos catastróficos no mundo e em nossas vidas; Marcella Monteiro de Souza e Silva, OP 116/2019, “Brasília de cocar e margarida, visto por poucos”, sobre a Marcha das Margaridas, evento ocorrido neste mês de agosto, organizado por mulheres que reivindicam seus direitos e lutam contra o preconceito de gênero. Neste ano, milhares de mulheres vestidas de lilás coloriram as ruas em direção à Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em busca de visibilidade e reconhecimento social e político; Lucia Passarinho (SPBsb), OP 335/2022, “A importância do OP para nós, psicanalistas” nos fala sobre a importância do Observatório Psicanalítico enquanto dispositivo organizador de ideias que ajuda a elaborar e a interpretar os acontecimentos que nos afetam internamente e externamente: “O OP talvez seja o único lugar de que dispomos, enquanto psicanalistas filiados à FEBRAPSI para expressar o pensamento político, no sentido filosófico do termo, para a troca respeitosa e estimulante de ideias. Precisamos cuidar para que se mantenha assim”.

Concluímos este editorial, com as palavras de Virgina Ungar: “Como analistas, ajudamos a integrar essas experiências em um contexto narrativo, ao mesmo tempo que nos movemos em outra temporalidade, aquela que é necessária para que o processo de subjetivação possa acontecer. Quando se trata de um fenômeno coletivo, faz-se necessário, também, um discurso social sobre a verdade histórica dos acontecimentos traumáticos, bem como sobre sua negação e seu desmentido defensivo.”

Equipe Curadoria 

Beth Mori, Ana ValesKa Maia, Daniela Boianovsky, Gabriela Seben e Renata Zambonelli.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: biblioteca do Museu do Freud (Londres)

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Congressos de Psicanálise, Racismo,  Memória e Verdade.

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Categoria: Editoriais
Tags: Congressos de Psicanálise | Memória e Verdade | observatorio psicanalitico | Racismo
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