Observatório Psicanalítico – OP 416/2023 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Estive lá no Congresso Escravidão e Liberdade: Travessia do corpo e da alma

Teresa Rocha​​​​​​​ (SBPRJ)

TESTEMUNHEI: que o V Congresso de Psicanálise da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em Salvador de 27 a 29 de abril foi mais uma realização para aprofundar o diálogo da psicanálise com a cultura no Brasil, em Portugal e nos países de língua portuguesa da África. Sala cheia, com cerca de 300 participantes, brancos e negros, psicanalistas jovens e velhos, profissionais de outras áreas do conhecimento, presentes e de forma remota, todos unidos com o compromisso da saúde do corpo e da alma em sua articulação com a cultura, como sugerido pelo tema. Algumas boas e bem articuladas apresentações, outras menos. É assim em qualquer encontro científico. Não seria esperado que o debate fosse plácido, posto que tanto a escravidão quanto a liberdade trazem, em si, uma enorme rede de tensão.

TESTEMUNHEI: uma organização cuidadosa e bem-intencionada, mas com falhas na distribuição do tempo, no manejo e na mediação dos diálogos, funções que, usualmente, servem de continência ao diálogo, ainda mais de temas tão delicados. Falhas na infraestrutura favorecem que a emergência das forças contraditórias e da ambivalência inerente à condição humana não encontrem ambiente favorável às resoluções, condição para a pulsionalidade tomar formas de pensamento mais integrado de diálogo. No entanto, essas falhas não comprometeram a importância e o sucesso do encontro. São experiências que podem servir de aprendizado.

TESTEMUNHEI: alguns debates mais produtivos do que outros, alguns mais elucidativos e outros menos. Certo ser imprescindível no diálogo psicanalítico contarmos com análises sociológicas, históricas, antropológicas, das ciências políticas etc., mas sabemos ser complexa essa articulação para que não se perca o campo do saber psicanalítico. O espaço do nosso ofício precisa ser preservado para manter a problematização da teoria, da técnica e da escuta à singularidade do outro, para que assim possamos ter mais consistência na articulação com outras esferas do saber.

TESTEMUNHEI: a dificuldade de manter o diálogo psicanalítico sobre os sofrimentos do corpo e da alma decorrentes da violação de direitos humanos, oriundos de uma organização social injusta, racista e excludente que corrói o tecido social, colocando grande parte da população brasileira na naturalização da invisibilidade.

TESTEMUNHEI: a dificuldade de estender diálogos dessa natureza dentro do espaço democrático como o proposto pelos Congressos da CPLP. Precisamos lutar para contar com mais espaços como este para avançarmos nas imprescindíveis transformações sociais, principalmente no mundo atual em que a democracia está grave e persistentemente ameaçada. Seria ingênuo imaginar um mar de calmaria quando o propósito foi encontrar os caminhos de participação fecunda da psicanálise no combate ao que nos adoece, seja pela guerra seja pelo sistema perverso de organizações sócio-políticas.

TESTEMUNHEI: a dificuldade para encontrar a articulação entre a consciência das condições sociais e políticas excludentes, decorrentes da pobreza e do racismo, e a poderosa ferramenta libertária da psicanálise. Sabemos que a dificuldade de diálogo sobre condições sociais e políticas excludentes se encontra tanto no espaço amplo das instituições sociais quanto nas instituições psicanalíticas. No campo psicanalítico precisamos, mais e mais, nos debruçar nos alicerces das instituições psicanalíticas de língua portuguesa e trabalharmos juntos com os colegas de todo o continente latino-americano. Assim iremos nos deparar com os equívocos e com a descoberta e o valor de caminhos já percorridos.

TESTEMUNHEI: a importância de valorizar o saber e possibilidades psicanalíticas sem perder de vista que as dificuldades ultrapassam suas possibilidades. Isso, no entanto, não significa impotência de ação. Podemos cada vez mais lutar para que as ferramentas psicanalíticas sejam uma força argumentativa no sentido de o Estado assumir sua responsabilidade constitucional de proteção de seus cidadãos através de políticas públicas efetivas. Podemos valorizar e expandir práticas psicanalíticas para além dos consultórios e nos lançarmos no desafio de trabalhar em territórios variados. Podemos expandir ações afirmativas de inclusão nos Institutos de formação psicanalítica para acolher os que, historicamente, foram mantidos alijados e inibidos de serem psicanalistas. Podemos reforçar a necessidade de espaços de investigação como este em que agora estamos, para compreender a diversidade cultural e racial e o impacto da história colonial da América Latina e no continente africano. Podemos reforçar a aproximação com colegas de diferentes regiões do mundo para aprendermos todos na construção dessa luta transformadora, conscientes das possibilidades e limites do ofício psicanalítico.

TESTEMUNHEI: que precisamos continuar avançando na investigação do impacto da invisibilização na construção das subjetividades. Como avançar para que a teoria e a prática psicanalítica não exerçam a opressão de uma escuta contaminada por valores morais e preconceitos dos psicanalistas?

TESTEMUNHEI: a existência de diferentes modos de lutar diante de um cenário sócio-político excludente de homens e mulheres africanos da diáspora e indígenas escravizados por uma lógica econômica de exploração do homem pelo homem, por homens e mulheres brancos que se assentaram na ilusão de serem “amigos do rei”, dentro do sistema colonial.

TESTEMUNHEI: haver um grupo de pessoas que estão atentas e desejosas de desmontar essa lógica de organização social. Daí a importância de termos a presença de brasileiros negros e brancos, africanos e portugueses. Estivemos ali por 3 dias, colonizados e colonizadores, para investigar a complexa rede que nos une para lutar pela causa comum. Precisamos dos corações e mentes de todos dispostos a se aliarem nessa luta.

TESTEMUNHEI: haver formas de luta em que a interdependência dos diferentes aspectos da existência e dos laços sociais se sobrepõe à divisão. Na primeira, a noção de que tudo está interligado, tudo influencia e tudo atua reciprocamente. Na segunda, as formas de luta correm o risco de acentuar aquilo mesmo que se quer combater.

TESTEMUNHEI: que lutar para encontrar o caminho da psicanálise na problemática racial, na inter-relação com o preconceito, a discriminação e o racismo não deve tratar apenas de alcançar um fim. A lógica de que os fins justificam os meios influi diretamente tanto no modo como fazemos política como no mundo que queremos. O modo de conviver com os outros não é o modo que nos constitui? Se aceitamos que o conflito é constitutivo do laço social, como lidar com ele sem que seja pela via da cisão, nós de um lado e eles de outro? Como preservar a potência de luta sem fortalecer hierarquias e posições que acabam caindo na noção de que algumas vidas valem mais do que outras ou de que algumas têm direito de defesa e outras não? Como lutar fora da lógica de guerra em que há distinção entre vidas que valem mais do que outras? Como lutar por justiça e equidade de forma que a própria luta espelhe o objetivo? Como construir espaços de convivência e gentileza e, assim, construir relações de cooperação? Como lutar pela democracia a não ser por meios democráticos?

TESTEMUNHEI: a possibilidade de avaliação de um ato cometido por mim como racista por ter questionado e não aceitado a polarização. Sim, reajo a qualquer tentativa de obstrução de diálogo. Calar só é concebido por mim como estratégia de sobrevivência. Minha concepção de luta busca escapar da lógica de guerra, no sentido de cisão entre bons e maus, entre negros e brancos, entre nós e eles. A polarização é terreno fértil para o exercício da violência e violência gera violência.

TESTEMUNHEI: tensões polarizadas extremadamente numa dinâmica grupal que, por um lado, não permitiram a evolução para uma integração e, por outro, propiciaram o surgimento de vozes que revelaram a própria tensão do grupo. Nessas situações, a cisão revelada distensiona a cena e os outros componentes frequentemente se calam e tendem a responsabilizar essas vozes como causadoras da tensão. A polarização revelada expôs uma possível fragilidade grupal de lidar com temáticas complexas como liberdade e escravidão dentro da psicanálise e suas instituições? Como fazer para avançarmos no tratamento institucional deste tipo de polarização? Como estimular a capacidade de elaboração do grupo para tornar uma experiência polarizada em fator de crescimento, tornando um mau negócio em bom, como diria Bion?

TESTEMUNHEI: em mim mesma a força para continuar lutando contra qualquer forma de racismo, de qualquer opressão e submetimento. De acordo com esse princípio antirracista, testemunho de corpo e alma presentes a continuidade do trabalho que realizo há décadas com populações vulnerabilizadas e marcadas pela violência de uma ordem social discriminatória, racista e excludente.

TESTEMUNHO hoje aqui que a psicanálise no Brasil e na América Latina possui grande potência transformadora, posto que sempre soube beber nas fendas do espírito libertário preconizado por muitos dos primeiros psicanalistas.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Politica e Sociedade; Instituições Psicanalíticas 

Palavras-chave: psicanálise, luta, polarização, silêncio, diálogo. 

Imagem: Abdias do Nascimento.  Oxum no seu labirinto. 1975. 158×82 cm. Óleo e acrílica sobre tela. 

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Tags: diálogo | Luta | Polarização | Psicanálise | Silêncio
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