Observatório Psicanalítico – OP 417/2023

Boa tarde colegas, 

Para dialogar com o tema publicado no

ensaio anterior sobre o tema Escravidão e Liberdade, da colega Teresa Rocha, publicamos o ensaio de nosso colega Jorge Bruce, da Sociedade de Psicanálise do Peru, apresentado na mesa do OP no último Congresso da Fepal quando conversamos sobre o bicentenário de independência dos países da América Latina.

Bem-vindo ao nosso grupo de e-mails, Jorge. 

Um forte abraço nosso, Equipe de Curadoria do OP

—-

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

O Desconhecido e o Novo

Jorge Bruce – SPP (Sociedade de Psicanálise do Peru)

O poeta Charles Baudelaire termina seu poema Le Voyage (A Jornada) com esta linha: “Ao fundo do desconhecido para encontrar algo novo!”.

Uma das características da herança colonial latino-americana que se repete em toda a nossa região, apesar da diversidade de histórias em cada país, é a presença de mecanismos que constituem variantes de negação: alucinação negativa, etc. Em todos esses esforços para exercer a vontade de não saber, o objeto que nos preocupa em termos de colonização e descolonização é a soma – no meu país são a maioria – de pessoas excluídas, marginalizadas, desvalorizadas desde o trauma da conquista até os dias de hoje. 

Apesar de estarmos comemorando nossos bicentenários – anos a mais, anos a menos – de vida republicana, esse processo de olhar e escuta seletivo continua atravessando os períodos de nossa história, como um vírus cujas variantes são infinitas e se adaptam de uma etapa histórica para outra.

No Peru, um dos exemplos mais recentes e dramáticos foi a atitude dos habitantes dos centros urbanos mais modernos em relação ao que acontecia nos Andes durante o conflito armado interno desencadeado pelos guerrilheiros do Sendero Luminoso. Esse confronto sangrento durou mais de uma década, de 1980 até a captura de seu líder, Abimael Guzmán, em 1992. 

A Comissão da Verdade e Reconciliação estimou que houve 69.000 mortos, a grande maioria deles camponeses das regiões de língua quéchua, ou seja, os mais carentes (como elemento para dimensionar esta tragédia, a guerrilha basca ETA assassinou menos de 1000 pessoas em cinquenta anos de violência.). Essas pessoas foram vítimas tanto da violência do Sendero – organização que afirmava defendê-los – quanto das Forças Armadas, que também disseram que o faziam em sua defesa. Enquanto isso, nas principais cidades do país, a vida continuava como se Ayacucho ou Huancavelica estivessem tão longe quanto o Afeganistão ou a Síria.

Abimael Guzmán faleceu recentemente na prisão, provocando um intenso debate sobre o que fazer com seu corpo.  O governo estava preocupado que seu túmulo se tornasse um local de peregrinação. Um sinal eloquente de que as coisas estão longe de se resolver. Nesta mesma semana, o presidente do Congresso fez um discurso na cidade de Piura: “Nossa frase é ‘um congresso para todos’.  Todos sem exceção à nível nacional. Lima e regiões unidas. Brancos e (sic) índios unidos. Pobres e ricos juntos. Não temos um discurso divisor de luta de classes”. É difícil ser mais contraditório em um único parágrafo, pronunciado em 2022, mas cujas ressonâncias remetem às repúblicas de brancos e índios, como eram chamadas no período da colônia espanhola.

Nós, psicanalistas latino-americanos, criamos nossa própria versão dessa estratificação discriminatória.

Durante décadas funcionamos (trabalhávamos, pensávamos) como se essa situação não nos preocupasse.  Armados em recintos murados de neutralidade, agimos em estrita observância das regras ditadas pelos centros de pensamento ocidentais do primeiro mundo.  Para todos os efeitos práticos, era – é – como se vivêssemos em qualquer capital do mundo psicanalítico: Londres, Paris, Nova York.  

Aplicados e, ao mesmo tempo, desconectados da realidade conturbada, para além dos bairros ricos onde nossos consultórios e instalações corporativas costumam se instalar. Desidentificados daquelas pessoas fora do nosso público-alvo, em virtude desses mecanismos de opacidade mencionados acima.

Nos últimos anos, houve uma mudança nessa forma de entender o mundo em que vivemos. A pandemia acelerou essa evolução que já estava em andamento. A devastação causada por essa tragédia levou muitos colegas a ajudar generosamente em iniciativas de serviço comunitário em uma escala nunca vista antes. Minha impressão é que, ao sair da cidade desenvolvida e entrar nessas áreas urbanas marginais, muitas vezes com nomes eufemísticos e esperançosos como El Porvenir, La Victoria ou El Milagro, esses mecanismos alienantes que perpetuam a colonização mental receberam um impacto que se reflete nas mesas dos últimos congressos da FEPAL. Termos como “racismo” e “classismo”, nunca antes evocados em nossos congressos e debates, adquiriram status de cidadania na psicanálise latino-americana.

No entanto, este encontro com o desconhecido – para nós – deve nos conduzir ao novo. O que quero dizer com isto? Minha hipótese é que não basta nos questionarmos e iniciarmos um intenso trabalho de desalienação e descolonização.  E informação e aprendizado, é claro. É necessário nos perguntarmos não apenas sobre o que temos negado ou escotomizado, desde que nosso método desembarcou em nossas costas. O que sem dúvida gera poderosas resistências e racionalizações das mais variadas peles. Estamos preparados para enfrentar essa tarefa que gera incompreensões e conflitos dentro de nossas instituições, em nosso próprio fórum interno? Será necessário repensar os nossos instrumentos de trabalho e tentar descobrir se são suficientes para enfrentar este desafio?

Um paciente de um bairro famoso por sua violência e miséria em uma cidade provinciana (onde moram os vencidos, no Império Romano), me contou sobre seu desconforto e aborrecimento ao ouvir um personagem famoso – um escritor ou um ator, por exemplo – falar sobre sua infância difícil. “Eles não têm ideia do que isso significa”, ele me explicou, embora ainda reconhecendo a verdade por trás da frase clichê: “pessoas ricas também choram”. Sua casa de infância tinha o chão de terra batida; alcoolismo, toxicodependência e prostituição eram comuns em seu ambiente. A poucos metros daquela que foi sua casa ainda existe um aterro que serve de playground, matadouro de animais e cemitério. Nas casas costuma-se colocar o crânio de uma caveira extraída daquele cemitério improvisado, para afastar os maus espíritos. Ele tem um grupo de WhatsApp onde alguns de seus amigos do bairro da época estão hoje em Lurigancho, principal prisão de Lima.

Essa pessoa conseguiu, com admirável tenacidade e talento, não só sobreviver a esse inferno, mas, depois de ter concluído um mestrado em uma universidade de prestígio (a mesma onde estudei), trabalha em uma organização internacional. No entanto, o ressentimento produzido por declarações como as de personalidades conhecidas leva-o a dizer-me: “Querem arrebatar-nos para as margens”. O que não o torna tolerante com seus colegas de infância. Pelo contrário. Ele sente uma profunda desconfiança em relação a eles e muitas vezes me diz que, longe de idealizá-los, os considera “ruins”, por ter sofrido tantos danos ao longo de sua vida.

As implicações transferenciais e contratransferenciais dessas associações seriam objeto de outra história.  Não pretendo responder a questões tão complexas nesta breve intervenção, como se nossos instrumentos de trabalho devessem ser revistos. Limito-me a afirmar: para fazer a viagem do desconhecido ao novo, será necessário abrir-nos à experiência de permitir que esses objetos denegridos, desvalorizados e negados entrem em nosso “neutro”, “puro”, “espaços ortodoxos”.  Não estou me referindo apenas aos nossos escritórios em bairros como Miraflores em Lima – é onde está o meu. Tampouco me refiro apenas às nossas instituições, reflexos fiéis da discriminação dos grupos excluídos. Não apenas por considerações racistas e de classe. Os grupos LGBTQIA+ também foram e continuam sendo “tolerados”.  

O fundamental é o trabalho de elaboração de nossos pensamentos, afetos e mecanismos forjados no cadinho da cultura colonial e sua violência discriminatória. O próprio Freud, como explica Edward Said em Freud and the Non-European, não ficou imune a esse vírus impregnado de eurocentrismo.  Por que nós?

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Politica e Sociedade; Instituições Psicanalíticas 

Palavras-chave: Herança colonial, Alucinação negativa, Racismo, Classismo, Identificação com o agressor ou com o objeto desvalorizado

Imagem: O “muro da vergonha”, que separa em Lima (Peru) uma urbanização de ricos de um assentamento humano (casas precárias onde vivem os pobres).

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no facebook:

https://www.facebook.com/100079222464939/posts/pfbid02MhXczLub5pZTzSzBKJLwT2xWsg2wZ9vYaDJH5AFLjGByviJWhEvcQXeRbLJVXcnHl/?mibextid=K8Wfd2

____________________________________________________________________________________

Texto original em espanhol 

Observatorio Psicoanalítico – OP 417/2023

Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo

Lo Ignoyo y lo nuevo

Jorge Bruce – SPP

El poeta Charles Baudelaire termina su poema Le Voyage (El Viaje) con este verso: “Au fond de l’inconnu pour trouver du nouveau!”

Una de las características de la herencia colonial latinoamericana que se repite por toda nuestra región, pese a la diversidad de historias de cada país, es la presencia de mecanismos que constituyen variantes de la negación: alucinación negativa (el borrado activo de una percepción), renegación, forclusión, borradura, etcétera. En todos estos esfuerzos por ejercer la voluntad de no saber, el objeto que nos concierne en lo que atañe a la colonización y descolonización, es la suma -en mi país son mayoría- de personas excluidas, marginadas, desvalorizadas desde que se produjo el trauma de la conquista hasta hoy. Pese a que estamos celebrando nuestros bicentenarios -años más, años menos- de vida republicana, este proceso de mirada y escucha selectiva, continúa atravesando los periodos de nuestra historia, como un virus cuyas variantes son infinitas y se adaptan de una etapa histórica a la otra.

En el Perú, uno de los ejemplos más recientes y dramáticos fue la actitud de los habitantes de los centros urbanos más modernos, respecto de lo que ocurría en los Andes durante el conflicto armado interno desatado por la guerrilla de Sendero Luminoso. Este cruento enfrentamiento duró más de una década, desde 1980 hasta la captura de su líder, Abimael Guzmán, en 1992. La Comisión de la Verdad y Reconciliación, estimó que se habían producido 69,000 muertes, en su gran mayoría campesinos de las regiones quechua hablantes, es decir las más carenciadas. Dichas personas fueron víctimas tanto de la violencia de Sendero -organización que decía defenderlos- como de las Fuerzas Armadas, quienes también decían que lo hacían en su defensa. Mientras tanto, en las principales ciudades del país la vida continuaba como si Ayacucho o Huancavelica estuvieran tan lejos como Afganistán o Siria.

Abimael Guzmán falleció hace poco en prisión, desatando un intenso debate acerca de qué hacer con su cadáver. Al Gobierno le preocupaba que su tumba se convirtiera en un lugar de peregrinación. Síntoma elocuente de que las cosas están muy lejos de haberse solucionado. Esta misma semana, la presidenta del Congreso dio un discurso en la ciudad de Piura: “Nuestra frase es un congreso para todos. Todos sin excepción a nivel nacional. Lima y regiones unidos. Blancos y (sic) indios unidos. Pobres y ricos unidos. Nosotros no tenemos un discurso divisionista de lucha de clases”. Es difícil ser más contradictorio en un solo párrafo, pronunciado el 2022, pero cuyas resonancias remiten a las repúblicas de blancos e indios, tal como se las denominaba en el periodo de la colonia española.

Los psicoanalistas latinoamericanos hemos pergeñado nuestra propia versión de esta estratificación discriminatoria.

Durante décadas hemos funcionado (trabajado, pensado) como si esa situación no nos concerniera. Pertrechados en recintos amurallados de neutralidad, actuamos en estricta observancia de las reglas dictadas desde los centros de pensamiento occidental del primer mundo. Para todo efecto práctico, era -es- como si viviéramos en cualquier capital del orbe psicoanalítico: Londres, París, Nueva York. Aplicados y, al mismo tiempo, desconectados de la realidad bullente más allá no solo de los barrios pudientes en donde suelen instalarse nuestros consultorios y locales societarios, sino también, en virtud de esos mecanismos de opacificación arriba citados, desidentificados de esas personas ajenas a nuestro público objetivo.

Se advierte, en los últimos años, un cambio en esta manera de entender el mundo en el que vivimos. La pandemia ha acelerado esta evolución que ya estaba en marcha. La devastación generada por esta tragedia llevó a que muchos colegas prestaran su ayuda generosa en iniciativas de servicio a la comunidad, en una escala nunca antes vista. Mi impresión es que al salir de la ciudad desarrollada e incursionar en esas zonas urbano marginales, que a menudo llevan nombres eufemísticos y esperanzados como El Porvenir, La Victoria o el Milagro, esos mecanismos alienantes que perpetúan la colonización mental, han recibido un impacto que se refleja en las mesas de los últimos congresos de FEPAL. Términos como racismo y clasismo, que antes jamás eran evocados en nuestros congresos y debates, han adquirido carta de ciudadanía en el psicoanálisis latinoamericano.

No obstante, este encuentro con lo ignoto -para nosotros- debería conducirnos hacia lo nuevo. ¿Qué quiero decir con esto? Mi hipótesis es que no basta con cuestionarnos e iniciar un trabajo intenso de desalienación y descolonización. Y de información y aprendizaje, claro está. Es preciso preguntarnos no solo acerca de lo que venimos negando o escotomizando, desde que nuestro método desembarcó en nuestras costas. Lo cual sin duda genera poderosas resistencias y racionalizaciones del más variado pelaje. ¿Estamos equipados para enfrentar esta tarea que genera malentendidos y conflictos en el interior de nuestras instituciones, en nuestro propio fuero interno? ¿Acaso es preciso repensar nuestros instrumentos de trabajo y procurar descubrir si son suficientes para enfrentar este desafío?

Un paciente proveniente de un barrio célebre por su violencia y miseria en una ciudad de provincia (donde viven los vencidos, en el imperio romano), me narraba su desazón y fastidio cuando escuchaba a algún personaje famoso -un escritor o un actor, por ejemplo- hablar de su infancia difícil. No tienen idea lo que eso significa, me explicaba, sin dejar de reconocer la verdad encerrada en la frase cliché “los ricos también lloran”. Su casa durante la niñez tenía piso de tierra; el alcoholismo, la drogadicción y la prostitución eran moneda corriente en su entorno. A pocos metros de su vivienda de entonces hay hasta hoy un terraplén que hace las veces de campo de juegos, matadero de animales y cementerio. En las casas es costumbre colocar el cráneo de una calavera extraída de ese improvisado cementerio, para conjurar los malos espíritus. Tiene un grupo de WhatsApp en donde algunos de los amigos de su barrio de entonces están ahora en Lurigancho (la principal prisión limeña).

Esta persona ha conseguido, con una tenacidad y talento admirables, no solo sobrevivir a ese infierno, sino que hoy, tras haber hecho una maestría en una prestigiosa universidad (la misma en la que yo estudié), trabaja en un organismo internacional. Sin embargo, el rencor que le producen declaraciones como las citadas de personajes conocidos, lo lleva a decirme: “Nos quieren arrebatar hasta la marginalidad”. Lo cual no hace que sea indulgente con sus compañeros de infancia. Por el contrario. Siente una profunda desconfianza hacia ellos y suele decirme que, lejos de idealizarlos, los considera “malos”, a fuerza de haber sufrido tanto daño a lo largo de su vida.

Las implicancias transferenciales y contratransferenciales de estas asociaciones serían materia de otro relato. No pretendo responder en esta breve intervención preguntas tan complejas, como las de saber si nuestros instrumentos de trabajo deben ser revisados. Me limitaré a plantear esto: para hacer la travesía de lo ignoto a lo nuevo hará falta abrirnos a la experiencia de permitir que esos objetos denigrados, desvalorizados y negados, ingresen en nuestros recintos “neutrales”, “puros”, “ortodoxos”. No me refiero únicamente a nuestros consultorios en barrios como Miraflores en Lima -ahí se encuentra el mío. Tampoco aludo tan solo a nuestras instituciones, fieles reflejos de la discriminación de grupos excluidos. No solo por consideraciones racistas y clasistas. También los grupos LGTBIQ+ han sido y siguen siendo “tolerados”. Lo fundamental es el trabajo de elaboración de nuestros pensamientos, afectos y mecanismos fraguados en el crisol de la cultura colonial y su violencia discriminatoria. El mismísimo Freud, tal como lo explicó Edward Said en Freud and the Non-European, no fue inmune a ese virus impregnado de eurocentrismo. ¿Por qué lo seríamos nosotros?

(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)

Categoría: Política y sociedad; 

Imagem: “el muro de la vergüenza”, que separa en Lima una urbanización de ricos de un asentamiento humano (casas precarias donde viven los pobres).

Palabras clave: Palabras clave: Herencia colonial. Alucinación negativa. Racismo. Clasismo. Identificación con el agresor o con el objeto desvalorizado

Colega, haz clic en el siguiente enlace para debatir el tema con los lectores de nuestra página de Facebook:

https://www.facebook.com/100079222464939/posts/pfbid02MhXczLub5pZTzSzBKJLwT2xWsg2wZ9vYaDJH5AFLjGByviJWhEvcQXeRbLJVXcnHl/?mibextid=K8Wfd2

Tags: Alucinação negativa | Classismo | Herança colonial | Identificação com o agressor ou com o objeto desvalorizado | Racismo
Share This