Observatório Psicanalítico – Editorial Julho/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 39

Julho/2023

Muita coisa se perde no fogo. Uma das primeiras lições dos pais às crianças é que não se deve tocar nas hipnóticas chamas das velas, nem encostá-las em objetos. Há um risco sempre iminente no manejo do fogo: ele pode se alastrar. “O que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta? Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!”, diz Mário Quintana, em seu poema “Inscrição para uma lareira”. Labaredas desencadeiam mudanças velozes. Por outro lado os pequenos fogos representam um convite à conversa, iluminam compreensões na troca de ideias entre pessoas dispostas a pensar, ainda que esses fogos mantenham o seu poder de queimar e gerar dor. Se algo se perde nas chamas, também é possível dizer que muito se ganha. 

Chamas brotaram das conversas em torno da fogueira no Observatório Psicanalítico durante o mês de julho de 2023.  Ao todo 9 textos foram publicados e instigaram intensos debates em nosso grupo de e-mails. Foi também em julho que lançamos a 4ª temporada do podcast Mirante, com o tema: o sexual na pólis. Da implosão do submersível Titan em águas profundas ao que emergiu nas discussões sobre o machismo estrutural, conjugaram-se ao nosso colóquio no mês passado: problematizações acerca da inteligência artificial; o ceticismo científico e os ataques à psicanálise; a ineligibilidade de Bolsonaro; o lançamento do livro dos lugares; a chama revolucionária do teatro na despedida de Zé Celso Martinez; a colonização da América Latina, com destaque para como esta aconteceu na Colômbia. 

Trazer a Colômbia no atual contexto institucional psicanalítico é aportar em Cartagena. A calorosa atmosfera de cores e sabores de Cartagena recepcionou o 53º congresso da IPA, intitulado: “Mind in the line of fire”, durante os dias 26 a 29 de julho. A psicanálise, desde o seu nascedouro, transita “na linha de fogo”, está sujeita ao itinerário de projéteis e objetos desgovernados. Em outras palavras: está em nosso cerne a não evasão diante dos desafios do mundo que nos confronta, do que deságua em nossa clínica como sofrimento psíquico, inevitavelmente entremeado aos acontecimentos ambientais, sociopolíticos e culturais de nosso tempo. 

Colegas de várias sociedades brasileiras estiveram presentes no Congresso. A mescla de idiomas que reverberou nos espaços de encontro do congresso internacional de psicanálise ganhou nessa edição mais um motivo para comemoração: o português finalmente é uma língua oficial da IPA! Outro momento festivo foi o da entrega dos prêmios. Aqui no OP noticiamos e publicamos textos escritos pelos representantes dos projetos premiados: projeto SOS Brasil (Saúde), Bolsas sociais/raciais adotados pelas sociedades SBPRJ e SBPdePA (Discriminação, preconceito e racismo), Maria Lucrécia Zavaschi e Zelig Liberman da SPPA (Educação) e o Observatório Psicanalítico (Cultura).  Beth Mori, coordenadora do OP, esteve em Cartagena para receber o prêmio com sua peculiar energia esfuziante, representando as equipes de curadoria, tanto a atual quanto as anteriores que contribuíram com o OP desde o seu começo em 2017. 

Cartagena é uma cidade com ruas repletas de graffitis e encantadores casarios arquitetados em arco, com varandas entremeadas de vegetação florida. Para os fãs de García Márquez um passeio por Cartagena surge como um convite para adentrar nos tempos universitários de Gabo, quando ele era um jovem escritor atento aos movimentos dos viajantes, nas chegadas e partidas no porto da cidade.

Contudo, tal como ocorre em inúmeras cidades latino-americanas, avançar em Cartagena é encontrar o que escapa ao encanto turístico. O que ocultam as camadas de uma bela cidade? Lá também estão a pobreza, a violência, o racismo, o machismo, a precarização do trabalho como realidades erguidas sob o peso dos escombros de um passado colonial presentificado. Fernando Orduz, da SCP – Sociedade Colombiana de Psicanálise em “Colon-izar” (OP 413/2023), reacende palavras e suas heranças. Ao elaborar uma rota em retrospecto o autor ressalta as marcas deixadas pelo processo de colonização, perceptíveis numa miríade de violências. Destaca como os impérios trabalham, despojando os colonizados “dos seus pertences, das suas identidades, dos seus objetos, despojam o outro da sua língua ou do seu corpo, do seu corpo-oralidade, do conhecimento da sua língua e dos seus gostos… a língua materna é despojada para que a língua do colonizador possa emergir, e nisto nós, machos, destacamo-nos com o nosso ímpeto imperial penetrante.” 

Como desfazer as marcas de colonizações? No Brasil, por ora, serve-nos de alento a decisão do TSE que sentenciou a inelegibilidade por 8 anos de Jair Bolsonaro. Seu governo, empenhado no projeto de esfacelamento da democracia brasileira, utilizou da estratégia do ódio e da mentira como modus operandi político, como destaca  Valton de Miranda Leitão – SPFOR no ensaio “A função política do ódio” (OP 407/2023).  Sabemos, no entanto, que a inelegibilidade do ex-presidente não é o suficiente para freiar o avanço da extrema direita. Estamos atualmente lançados na linha de fogo de uma guerra cultural, com realidades paralelas forjadas a todo instante. Para além da democracia representativa, é fundamental o investimento contínuo em um letramento político, no plano mais abrangente da pólis. 

É ficção tudo o que chamamos realidade? O recente lançamento da Microsoft, ChatGPT, possui a incrível capacidade de imitar características humanas e em pouquíssimo tempo conquistou cerca de 100 milhões de usuários. Kátia Barbosa Macêdo, da SBPG, problematiza o impacto da tecnologia da inteligência artificial nas relações de trabalho e nos vínculos sociais no ensaio “Inteligência Artificial e trabalho: de coadjuvante a protagonista” (OP 410/2023).  Atualmente, a ampliação dos recursos da IA convoca reflexões sobre os limites éticos de seu uso e divide opiniões. A aparição de Elis Regina recriada por inteligência artificial, dirigindo uma Kombi e cantando “Como nossos pais”, música de autoria de Belchior, em um comercial da Volkswagen, motivou a escrita de “Esse novo que nunca chega” (OP 411/2023).  Malu Gastal – SPBsb discorre sobre o fluxo de emoções desencadeados pelo comercial, que une as imagens de Elis e de sua filha Maria Rita. Memórias afetivas da autora são colocadas em paralelo ao encantamento diante das imagens e o posterior mal-estar gerado pela recriação da imagem de uma pessoa morta como se viva estivesse. Vale salientar que o Conar abriu um processo de representação ética contra a propaganda e a cantora Madonna colocou em seu testamento uma cláusula proibitiva de recriação de sua imagem por inteligência artificial após a sua morte. 

Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais? Em “O tempo do lugar dos pais” (OP 412/2023) Celso Gutfreind – SBPdePA mais uma vez nos presenteia com sua escrita poética. “O Livro dos Lugares – dos pais na análise da criança – do bebê na análise do adolescente”, segundo o autor, conversa com os velhos Freud e Winnicott, além dos mais jovens como Golse e Lebovici. Mas é com o sopro de Quintana nos ouvidos que Celso nos convida a ler o livro e deixarmos que a obra nos enlace e que fale por si. “Sugiro que acrescentem uma música de fundo, qualquer uma de sua preferência. Porque é da música que viemos, é com música que somos feitos, e o lugar dos pais precisa antes soar um bocado no tempo até que a criança possa cantar por ela mesma e construa a espontaneidade de seguir soando e crescendo, crescendo e desfrutando o que lhe cabe, antes de reencontrar no final o silêncio do começo.” 

Da música à ciência, do ceticismo científico ao bombardeio na linha de fogo. Denise Salomão Goldfajn – SBPSP e SBPRJ, no texto “Velhas e novas bobagens: o ceticismo científico deve ser levado a sério?” (OP 414/2023)” desenvolve argumentos críticos com relação ao livro “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi. Os autores do livro denunciam uma série de práticas sem base científica nas quais incluem a psicanálise. Na oportunidade, contestam a adoção dessas práticas em políticas públicas de saúde, o que argumentam ser um desperdício do dinheiro do contribuinte. Em seu texto, Denise Goldfajn questiona pontos desses ataques e apresenta caminhos de acesso aos trabalhos compilados pelo comitê da IPA, que contém pesquisas conceituais, empíricas e estatísticas sobre a psicanálise em diversas partes do mundo. Seu texto traz ainda outra questão interessante: o casal criou um instituto dedicado a promover a ciência com o objetivo de formulação em políticas públicas. Talvez seja importante indagar sobre os interesses que mobilizam os ataques, de por que é utilizada a estratégia de atacar o outro para fazer um elogio de si. Na esteira do tema, em nossas redes sociais,  o #tbt relembrou o texto: “O sonho das ciências e a ciência dos sonhos” (OP 50/2018) de Liana Albernaz de Melo Bastos, da SBPRJ.

Em nosso grupo de e-mails – GG as reações iniciais às afrontas à psicanálise proferidas no livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi começaram a gerar faíscas quando as contestações e críticas foram dirigidas unicamente à figura de Pasternak e uma tirinha humorística foi dedicada a ela. “Natália Pasternak e Carlos Orsi, que formam um casal -, a primeira parece ter sido o alvo de toda ira. Seria isso devido ao fato de ser mulher?” indagam Cristiane Schlindwein, Giuliana Chiapin, Ian Nathasje, Juliana Lang Lima, Míriam Alves, Rafaela Degani, Vera Viuniski (SBPdePA) no texto “Mentes abertas” (OP 415/2023). O grupo, estudioso da sexualidade feminina a partir da obra de Freud, pontua: “Quanto ainda persiste em nós a ideia de uma mulher invejosa, ressentida e inferior por não possuir um pênis? Ainda que a teoria freudiana seja lida e compreendida por seu evidente viés simbólico, não há como negar que ainda hoje acaba sendo fácil desqualificar e atacar uma mulher. De louca a histérica, com linguajar científico ou vulgar, o ataque de gênero está sempre prestes a se manifestar.” Ao final, a profusão de emails e o intenso debate que tomou corpo, possibilitou que emergisse um mal-estar perante a questão do machismo estrutural e que pudéssemos como grupo buscar elaboração. 

Na linha do que permanece da estrutura patriarcal, vale salientar que foi somente na terça, dia 01 de agosto de 2023, que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o uso da medieval e desumana tese da “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. “A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”, afirmou a ministra do STF, Carmen Lúcia. Nossas ancestrais foram queimadas em fogueiras, nossas irmãs são violentadas e mortas como se fossem posse de alguém. Nós, da curadoria, nos integramos às colegas que levantaram a voz no debate sobre o machismo estrutural. 

Seguindo essa linha de discussão sobre a liberdade das mulheres de ocuparem espaços antes cerceados, em nosso #tbt trouxemos de volta o ensaio de Beth Mori  (SBPSB) sobre Virginia Ungar, a primeira mulher a ocupar a presidência da IPA: “Uma Argentina à frente do grande divã freudiano” (OP 16/2017).  

A questão sexual, tão cara à psicanálise, estará contemplada na 4ª temporada do podcast Mirante com o grande tema “O sexual na Pólis”. O primeiro episódio foi ao ar em julho, intitulado “Dualismos e desconstruções: a psicanálise contemporânea frente ao sexual”. Como os dualismos de nossas teorias têm sido tensionados pelas forças que irrompem na cultura? Será necessário desconstruir algo do paradigma dualista para recepcionar a sexualidade na contemporaneidade? Para discutirem acerca dessas questões atuais convidamos a psicanalista Ana Paula Terra Machado e o filósofo Moysés Pinto Neto, que retorna ao nosso podcast. Será o caso da Psicanálise seguir dialogando com Derrida e promover a desconstrução de paradigmas sobre a sexualidade para melhor compreendermos as demandas da clínica atual? Ou até mesmo desconstruir parte do que entendemos ser o pensamento freudiano? Escutem a instigante conversa de Ana Paula e Moysés,  mediada por Beth Mori, no podcast Mirante, disponível nas principais plataformas. 

“Atravessamos as muitas camadas obscuras: agora, sim, compreendemos? É dessa extasiante sensação que precisamos, vida afora? Todos nós, e não apenas os ricos extravagantes?” pergunta  Carolina Scoz, da SBPCamp (OP 409/2023), no belíssimo e complexo ensaio “Dominar escuridões: a desventura do Titan como parábola trágica”. A autora parte da implosão do submersível Titan para construir uma narrativa que perpassa a profundidade do trabalho psicanalítico com nossos pacientes, os abismos da infância, os traumas, os aspectos míticos entranhados em nossos mergulhos individuais. “Por isso imagino que Titan seja o melhor nome possível quando se trata de batizar um invento feito para voltar até o lugar profundo onde nenhuma forma de vida consegue respirar, exceto quem se arrisca a embarcar nos pulmões metálicos do Titan, esse lugar fascinante de audácia e morte.” 

No mês de julho partiu o ícone do teatro dionisíaco brasileiro, o xamã das artes, Zé Celso Martinez. Um texto-homenagem foi escrito por Eduardo de São Thiago Martins, da SBPSP, em “Evoé Zé, puxa nosso pé” (OP 408//2023). Eduardo, que também é ator, nos traz um texto íntimo, de quem teve a oportunidade de ser inflamado pela mobilização afetivo-pulsante-criativa de Zé Celso. “Quem esteve com Zé, do jeito que fosse, penetrado por seu olhar ou pendurado nos andaimes de Bo Bardi, ou saltitando na praça carnavalesca, ou observando o passeio de seu cocar na avenida Paulista… quem esteve com Zé, não passou ileso. Suas células eram de amor e lava.” Querido Eduardo, também não passamos ilesas ao seu escrito, que reacende vulcões. Zé já puxa o nosso pé! Dancemos no embalo da canção das chamas! 

Ínfimo e imensidão. As origens do mundo e a abissal escuridão de onde viemos e para onde iremos… O fogo se alastra…

“A vida é um incêndio: nela 

dançamos, salamandras mágicas.

O que importa restarem cinzas 

se a chama foi bela e alta? 

Em meio aos toros que desabam,

cantemos a canção das chamas!”

(Mário Quintana, Inscrição para uma lareira) 

Um abraço dançante e caloroso da equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBSB), Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SBPSB), Gabriela Seben (SBPdePA) e Renata Zambonelli (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Um fogo que dança.

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Machismo, Congresso IPA, Ciência, Psicanálise.

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Categoria: Editoriais
Tags: Ciência | Congresso IPA | machismo | observatorio psicanalitico | Psicanálise
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