Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Projeto “SOS Brasil”: a psicanálise e o resgate das clínicas públicas de Freud
Susana Muszkat e Raya Angel Zonana (SBPSP)
Em janeiro de 2021, um Brasil tomado pela pandemia de Covid 19, sob um governo negacionista e mortífero, assistiu a um agravamento da pandemia em Manaus. Junto a isto, a falta de oxigênio para os doentes em estado crítico nos hospitais provocou um aumento no já altíssimo número de mortes por Covid 19. A situação criada pelo Estado, de calamidade pública pelo colapso do sistema de saúde e funerário e uma imensa orfandade totalmente desassistida, com famílias inteiras destruídas e desestruturadas, sensibilizou um grupo de psicanalistas.
Idealizado por Alicia Beatriz Dorado de Lisondo e com o apoio da Febrapsi, surgiu o projeto SOS Manaus. Diante da urgência, uma nova maneira de atendimento se estabeleceu, com um número limitado de 3 a 8 sessões online. Este formato tinha como intenção dar um sopro de ar para bebês, crianças, adolescentes e os adultos cuidadores em estado de urgência.
Aos poucos, a partir dos atendimentos, foi se delineando um panorama que, infelizmente, não causou espanto.
A pandemia evidenciava um país pleno de desigualdades socioeconômicas: uma massa de sujeitos em precária situação de vida, em condições de saúde e educação que permitiram uma enorme penetrabilidade de um vírus por si só muito transmissível. Assim, as questões que foram se desvelando nos encontros dos psicanalistas com a população excediam a pandemia. Eram questões anteriores a esta, de sofrimento psíquico causado pela vulnerabilidade socioeconômica de uma população extremamente carente.
O que ocorria em Manaus era a ponta de um iceberg que atingia a maior parte da população do Brasil, situação que perdurava mesmo após o abrandamento da pandemia.
Os problemas de desigualdade social são constitutivos do Brasil, tendo início com a chegada dos portugueses em 1500. Desde esse momento, os povos originários passaram a ser tratados como seres inferiores diante da suposta superioridade civilizatória do colonizador.
Com proporções superlativas, tanto em suas dimensões geográficas quanto em suas crises políticas e socioeconômicas, o Brasil teve, desde o início de sua formação, um projeto extrativista, no qual a metrópole portuguesa parasitava junto aos bens da colônia o trabalho dos povos originários. Além disso, retirou da África uma população para escravizá-la, desumanizando-a. A estes povos nunca foram facilitadas condições de bem-estar social. Pelo contrário, as pessoas escravizadas eram vistas como objetos de posse de seus senhores. Deles, assim como da terra brasilis, só se valorizava o que se podia retirar em benefício do colonizador. Este foi o projeto traçado para este país e o caldo cultural em que o Brasil se formou. Foi um dos últimos países da América Latina a estabelecer universidades, e o último a abolir a escravidão.
Neste panorama, a desigualdade social e econômica se perpetua de forma estrutural.
Podemos dizer que o Brasil é um país em permanente estado de crise, e que teve sua situação agravada, a partir de 2018, por um governo que chega ao poder com práticas que denotam um projeto de desconstrução da área social, da educação e da saúde. Neste cenário, a pandemia encontra um terreno propício para se disseminar e aprofundar a gravidade da situação.
O projeto SOS Brasil visou esta população mais precarizada, de pouco acesso aos dispositivos de saúde, especialmente os de saúde mental. Uma população com menos recursos para lidar com as dores dos vários lutos que vivenciavam: mortes, pobreza, fome, falta de escolas para as crianças e adolescentes.
Os psicanalistas que se dispuseram ao trabalho no “SOS Brasil”, também expostos às mesmas situações, tinham, no entanto, acesso a recursos pessoais subjetivos e objetivos que não impediam o sofrimento, mas permitiam condições de elaboração muito diferentes.
Assim, o conceito de mundos superpostos (Puget, 1982), fazia sentido, em parte: o vírus era o mesmo, mas as condições eram indiscutivelmente bem distintas.
Isto impulsionou os psicanalistas do Projeto a “saírem a campo”, a usarem os seus recursos para, em atendimentos online, oferecerem uma escuta que facilitasse, à maior parte da população mais vulnerável, algum grau de elaboração do adoecimento psíquico, buscando um sentido que transformasse a angústia difusa em um sofrimento nomeável.
Aos poucos, percebemos que abaixo da camada de dor causada pela pandemia, havia uma espessa e antiga camada de um mal-estar que permeava a vida desta população. Antigas vivências traumáticas nunca dantes sequer sussurradas vieram à tona. Tornou-se necessário que em muitos dos atendimentos, após as 8 sessões oferecidas pelo projeto, houvesse um encaminhamento para outro tipo de trabalho que pudesse sustentar o que havia ali se iniciado. A demanda por essa escuta psicanalítica com sua especificidade ganhava, e ganha a cada dia, mais sentido.
Cabe explicitar aqui o funcionamento criado para que o trabalho acontecesse. Os psicanalistas se dividiram em 4 eixos para atender faixas com diferentes demandas:
Eixo 1- Atendimento de bebês e pais
Eixo 2- Atendimento de crianças e famílias
Eixo 3- Atendimento de adolescentes
Eixo 4- Atendimento de adultos (pais e cuidadores)
Eixo 5- Atendimento a instituições
Como uma malha que pudesse conter o mundo subjetivo, formou-se um grupo para uma atenção ao “Corpo”. Passaram a fazer parte do SOS Brasil uma pediatra, um dentista, assistente social, osteopata, psiquiatra, fisioterapeuta, fonoaudiólogo. Uma rede de escuta se fez também entre os profissionais envolvidos no projeto.
O impacto diante de um mundo tão próximo e tão diverso, o desamparo que surgiu no contato com sofrimentos que, muitas vezes, excediam a capacidade de cuidados possíveis, os limites no trabalho com até 8 sessões – assim como ocorre em qualquer trabalho psicanalítico –, a sensação de impotência, abriram espaço para conversas tanto em pequenos grupos, os ateliês, como para reuniões com os coordenadores dos mesmos.
Em encontros quinzenais nos ateliês, os psicanalistas deixam emergir as dúvidas e incertezas que estes atendimentos suscitam. A discussão dos casos possibilita que a angústia diante das situações que surgem possa ser elaborada e usada como motor de trabalho e acolhimento. O mesmo ocorre nas reuniões de coordenadores. Assim, nestas escutas sucessivas cria-se um tecido de sustentação que permite tramas mais coesas.
A nova configuração deste atendimento e o desejo de aprofundar conhecimentos em trabalhos psicanalíticos breves ou em situações emergenciais, levou o grupo a fazer contato com colegas que têm vivência nestas formas de abordagem psicanalítica. A partir disso, em encontros mensais, psicanalistas de várias partes do mundo como Yolanda Gampel, Giana Williams, Monica Cardenal, Patrícia Schoueri, Heli Morales, Fernando Gomez, nos oferecem seu trabalho, sua experiência.
Em cada um destes encontros, a partir da apresentação de um caso, uma fértil discussão propõe questionamentos, amplia os horizontes do trabalho e sustenta a continuidade do projeto.
Porém, com frequência, uma questão ainda paira sobre a clínica extensa.
Será este tipo de trabalho, um ato psicanalítico? Já que não segue a clínica standard (Roussillon, 2019) e sim uma clínica ampliada que se espraia para muito além do tradicional consultório com seu divã?
Pensamos que esta “dúvida” é fundamental para nos mover a continuar psicanalistas, atentos a manter uma escuta sustentada pelo trabalho com o inconsciente e baseada na transferência/
Foi a partir do sofrimento e dos traumas que marcaram os sobreviventes da 1ª Guerra Mundial que Freud instigou os psicanalistas a criarem as clínicas públicas. Não estaríamos agora em uma situação semelhante? Diante de um arrefecimento da pandemia e da mudança do momento político, o que podemos fazer com os escombros para uma reconstrução, se o que sabemos fazer é psicanálise?
A escuta psicanalítica é um ato político, um ato de mudança. Como em um jogo de dominó, cada sujeito que se dispõe a ser escutado “carrega” outros com os quais se enlaça no espaço social que habita.
O que se move com a escuta psicanalítica é o mundo inconsciente que permeia a malha social e promove mudanças. Assim, tanto o sujeito que passa a ter acesso à escuta psicanalítica, como o analista disposto a este trabalho, sofrem um processo de transformação que se traduz em deslocamentos dentro da sociedade. Neste sentido, algo necessariamente novo se produz no campo da psicanálise. Desde Freud, a teoria psicanalítica se estrutura inserida no mundo, dentro e a partir do espaço e do tempo (Zeitgeist) a que pertence.
Dessa forma, não como uma resposta, mas como uma possibilidade de pensamento em expansão, entendemos que o Projeto SOS Brasil trabalha com “toques” que permitem a uma grande parte da população excluída do acesso à saúde mental, um maior contato com seus sofrimentos e com seus próprios recursos para elaborá-los.
Este texto, escrito por 2 psicanalistas e coordenadoras de ateliê do projeto SOS Brasil, Susana Muszkat e Raya Zonana, busca refletir um modelo de trabalho em que mais de 60 psicanalistas e profissionais de saúde estão envolvidos. A IPA na Comunidade e no Mundo reconheceu nesta exposição o valor do projeto, outorgando-lhe o 1º lugar na categoria Saúde, observando que:
“Ficou claro para nós que se trata de um estudo cuidadoso e profundo de atenção à Comunidade na situação da Covid, como trata-se também de um modelo de trabalho psicanalítico extra-muros (outreach).” (Harvey Schwartz, 23/02/23)
Entendemos que a psicanálise só se faz possível em uma via de mão dupla, em que a transformação atinge tanto os pacientes como os psicanalistas, e assim, claro, a própria sociedade.
OBS: O texto acima é uma adaptação do texto original que inclui, entre outros temas alguns modelos de atendimento mostrando o modus operandi e o alcance do dispositivo, fato bastante valorizado pela IPA ao outorgar o prêmio.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: psicanálise online, clínica extensa, escuta psicanalítica, sofrimento psíquico.
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