Observatório Psicanalítico – OP 396/2023

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

No dia em que Rita Lee morreu eu quase chorei

Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)

Por volta do meio-dia da terça-feira, 09/05, fiquei sabendo, a caminho do consultório, da notícia mais do que previsível. Segurei um soluço, mas não pude conter a lágrima que brotava. Afinal, eu precisava estar em condições de atender e ser interpelado pelas demandas dos pacientes que ainda chegariam.

Rita Lee era da minha geração, poucos anos mais velha. Por coincidência, fui colega na quarta série ginasial do Arnaldo, seu namorado e um dos dois irmãos Baptista que, com ela, formaram o grupo dos Mutantes. Arnaldo, na época, era um aluno repetente, do time dos que curtiam eventuais brechas para bagunçar e zoar professores. Não tínhamos muito em comum. Na foto da classe, no final do ano, a diferença era flagrante. Ele fazia uma careta que antecipava a alcunha de Lóki, com que viria a ser conhecido posteriormente. Já eu, aparecia com a cara meio insossa de um dos CDFs da turma. Só vim a notar a relação dele com Rita no Festival de Música da TV Record de 1967, em São Paulo, quando eles abrilhantaram a apresentação da belíssima composição de Gilberto Gil, “Domingo no Parque”, que ficou em segundo lugar, muito valorizada pelo inspirado arranjo do maestro Rogério Duprat. Eu, que era um dos babacas apoiadores da dita essencial pureza de uma música popular brasileira livre de guitarras elétricas e fã das letras politizadas e de cunho social  do tipo “Disparada” de Geraldo Vandré – cujo valor não se discute, é claro – tive que me render à riqueza da sonoridade inventiva na performance de Gil/Mutantes e aplaudir a novidade que desembocaria no movimento da Tropicália. Ainda neste mesmo festival, Caetano Veloso, outro líder do mesmo movimento, apresentou “Alegria, Alegria”, quarta colocada, cantada por ele e um grupo de rock argentino Beat Boys. Ambas as músicas resistem ao tempo com um frescor bem mais forte do que “Ponteio” – quem se lembra? – de Edu Lobo, a campeã do Festival.

Quanto aos Mutantes, eles causavam impacto imediato pelas indumentárias nada convencionais, com uma pegada irreverente, provocativa e engraçada – bem na linha pour epater le bourgeois, ou seja, chocar “essas pessoas da sala de jantar” – que foi uma de suas características marcantes, graças, em grande parte, ao talento criativo de Rita como a principal figurinista e cabeça do grupo. Em 1968, no Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, ela apareceu vestida de noiva, com um vestido que lhe fora cedido pela atriz Leila Diniz, utilizado anteriormente em novela da Globo.

Na noite de 10/05 eu já estava mais apaziguado com a perda, quando caí na besteira de assistir uma entrevista de Donald Trump para a CNN. Na véspera, ele havia sido condenado pela justiça americana a indenizar com 5 milhões de dólares uma jornalista americana, que o processara por estupro. Com a infalível expressão abjeta estampada no rosto, o veterano garotão do topete amarelo-laranja disse que a história era absurda, que sua acusadora era uma louca de pedra e logo desviou a conversa na direção de sua campanha para presidente nas eleições de 2024. Perguntado, recusou-se, mais uma vez, a reconhecer a derrota para Biden, dizendo que a eleição de 2020 foi fraudada, que só os idiotas não perceberam isto e que os Estados Unidos estão muito mal nas mãos do seu incompetente adversário. Insistiu em assinalar que a fronteira com o México está vulnerável à entrada maciça de imigrantes ilegais, gente desqualificada, que só traz problemas para o país. Defendeu a invasão do Capitólio, que representou, no seu enviesado entendimento, a legítima revolta das pessoas bem-intencionadas, que, simplesmente, não conseguiam se conformar com a fraude eleitoral. As semelhanças com a situação brasileira são óbvias. Não aguentei por muito tempo a entrevista. O velho bufão, com sua revoltante cara de pau, merecia ouvir um “Por qué no te callas?”. Me bateu de novo a tristeza pela morte de Rita e a sensação de como o destino pode ser injusto: enquanto ela, aos 75, nos deixa órfãos de sua inteligência e verve apimentadas, o contumaz misógino e machista de 76 anos de idade, condenado por crime de abuso sexual, continua a representar a extrema-direita americana e está se lançando, todo lampeiro, como o principal candidato do Partido Republicano para o ano que vem.

O detalhe a ressaltar é que eu vinha lendo, aos poucos, a autobiografia de Rita, como que acompanhando o seu definhar e à espera do desfecho inexorável. As poucas e assustadoras fotos que surgiram ultimamente na internet mostravam sua figura debilitada, uma máscara facial que não disfarçava a implacável devastação produzida pelo câncer. Um contraste total para quem a conheceu na época dos Mutantes e, depois, quando decolou em uma bem-sucedida carreira solo, contando com a parceria do seu companheiro de vida e de música, Roberto de Carvalho. Aliás, diga-se de passagem, os irmãos Baptista jamais apareceram com algum sucesso após terem dispensado Rita do grupo.

Sem ser especialmente bonita, era uma mulher charmosa e atraente, que chamava a atenção pelo alto astral, pela esfuziante vitalidade com que dominava o palco e contagiava a plateia. Irradiava amor à vida e suas tiradas espirituosas e sarcásticas não poupavam ninguém, muito menos a si própria.

Nunca escondeu o problema com álcool e drogas, que lhe custou algumas internações psiquiátricas, após as quais voltava com renovada energia e retomava a sequência de shows e viagens.

Não era militante política, mas foi capaz, por sua atitude indômita, de nos transmitir um sentido de rebeldia e não conformismo, mesmo nos piores tempos da ditadura militar. Grávida do primeiro filho e sob a fabricada alegação de possuir maconha – provavelmente “plantada” em sua casa – foi presa injustamente. Um episódio que ela lembrava com genuína gratidão foi o fato da grande cantora Ellis Regina ter comparecido ao local da prisão, exigindo que Rita recebesse os cuidados médicos adequados à sua condição de gestante.

Não era feminista de carteirinha, mas abriu caminho, através de suas músicas, para se dar voz plena à sexualidade e ao desejo das mulheres, sem falsos pudores ou constrangimentos, tal como em “Mania de você”: 

“Meu bem, você me dá água na boca

Vestindo fantasias, tirando a roupa

Molhada de suor de tanto a gente se beijar

De tanto imaginar loucuras.

A gente faz amor por telepatia” ….

 

Ou ainda em “Lança perfume”:

“Vem cá meu bem

Me descola um carinho

Eu sou neném

Só sossego com beijinho

Vê se me dá o prazer

De ter prazer comigo

Me aqueça

Me vira de ponta cabeça

Me deixa de quatro no ato…

Me enche de amor, de amor” …

Como bem disse Caetano, Rita Lee era a mais completa tradução de São Paulo, a cidade onde nasceu, cresceu e viveu. Seu último show foi em 2013, no Vale do Anhangabaú, na comemoração do aniversário de Sampa. Na ocasião, cantou enrolada na bandeira paulistana e foi ovacionada pelo público presente. Depois disto, recolheu-se para uma vida mais dedicada à família, aos bichos e à escrita. Pode-se dizer que ela não economizou nada, viveu intensamente. 

Azar nosso, que não teremos mais a oportunidade de desfrutar do talento da rainha brasileira do rock.

Ao finalizar sua autobiografia, ela arriscou algumas profecias para o que aconteceria após sua morte. Entre elas, a de que possivelmente a homenageariam, colocando seu nome em uma rua sem saída. Humor cáustico na veia até o fim.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria:  Cultura; Homenagens

Imagem: foto de Rita Lee do livro de sua autobiografia 

Palavras-chave: desejo, humor, irreverência, sarcasmo, sexualidade

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Categoria: Cultura | Homenagens
Tags: desejo | humor | irreverência | sarcasmo | sexualidade
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