Observatório Psicanalítico – OP 395/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Comitê da IPA para as questões raciais: Compromisso de manter o poder hegemônico do colonizador?

Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA)

“A língua, que é nutrida por sensações, paixões e sonhos, aquela pela qual se exprime a ternura e os espantos, a que contém, enfim, a maior carga afetiva, é precisamente a menos valorizada. A língua do colonizado não possui dignidade nenhuma no país e nos concertos dos povos” (K. Munanga, 2020). 

Este ensaio nasce de um interrogante polissêmico, que vem me assombrando há algum tempo, ou melhor, desde a circulação em nosso meio, da decisão da IPA pela formação de um comitê, para se ocupar da problemática racial, na sua inter-relação com o preconceito e a discriminação. Acredito que tal aquisição se efetivou depois de inúmeras argumentações, provavelmente polêmicas, realizadas por homens e mulheres brancas, sobre a relevância dessa temática. Sinistro processo, tínhamos dúvidas quanto a sua pertinência? Evidentemente parabenizo a todos que trabalharam  para a realização desse projeto, que mesmo tardiamente, possa vir a cumprir um papel de reparação pela dívida histórica que temos, como sujeitos e psicanalistas, majoritariamente brancos, com o povo negro e com os povos originários em todos os continentes: da África às diásporas. 

Porém, condizente com nossas ambivalências, que transitam entre a branquitude crítica e acrítica (L. Cardoso, 2017), logo em seguida entra em cena a “lei do colonizador”: é necessário falar inglês, a dita língua universal, para fazer parte desse Comitê. A língua do colonizado não possui dignidade nenhuma no país e nos concertos dos povos. Será? Podemos pensar em concertos dos povos através da linguagem exclusiva do invasor de corpos, almas e territórios? O contraditório revelando nossas posições claudicantes – o branco como indicação, o negro como contraindicação. 

Seguindo nessa melodia, ao som dos tambores que evocam o poder da ancestralidade do povo negro, convido-os para refletir sobre este contexto, no qual se insere com extrema naturalidade a suposta universalidade da língua inglesa e se queremos persistir na perpetuação dessa prática, que compreendo com mais uma manifestação dos postulados coloniais e seu racismo estrutural. Estranho paradoxo, montamos um comitê para trabalhar o racismo, a discriminação e o preconceito e começamos com – racismo, discriminação e preconceito – a reativação da hierarquia dos povos, elemento central no processo de racialização, que o branco europeu, protótipo do civilizado, efetivou e, pelo que parece, prossegue se efetivando sobre os povos não europeus. O apartheid, agora simbólico, segue escrevendo e reescrevendo a mesma história – exclusão em nome da inserção. 

Refletindo sobre esse cenário deparo-me com o pensar de Mbembe (2018, p. 202), quando fala do fascínio que leva à sujeição do colonizado pelo que vem do colonizador: a erótica da mercadoria. Seguindo essa proposição, compreendo que essa captura transforma, entre outros elementos, a língua do colonizador numa mercadoria a ser adquirida pelo colonizado, no seu desejo de vir a ser tão humano como ele, e assim acessar todas as benesses que o ser branco e o pertencer ao norte global, por si só, comporta. Entretanto, o a posteriori não tardará em  revelar a falácia dessa aspiração. Tal vivência continua, possivelmente, sendo reeditada, no tempo presente, a partir de nossa memória da colônia: o dispositivo fantasmático do potentado se assenta, portanto, em dois pilares. O primeiro é a regulação das necessidades e o segundo é a regulação do fluxo do desejo, entre eles a mercadoria, notadamente as formas de mercadorias que o colonizado admira e das quais deseja desfrutar (Mbembe, 2018, p. 204). A língua do colonizador, como dispositivo fantasmático do potentado, adquire o status de objeto fetiche. 

Em consonância com esse roteiro emergem mais alguns interrogantes: a língua dos demais povos permanece sendo uma língua de segunda linha? Quem tem que se adaptar a falar outra língua somos nós, ou é a vez do colonizador descer de seus lugares de privilégios e se dispor a trabalhar na língua daquele que se recusa a ocupar o lugar de colonizado? Vamos permanecer calados, recusando nossa própria língua, diante dessa lógica que retrata a força dos princípios coloniais com sua vertente racista nos cenários de nossa instituição maior: Associação Psicanalítica Internacional? Tempo de dar voz à força insurgente do Caliban – ruptura com o opressor – que nos habita?

Registro, a título de mais uma ilustração, que segue no mesmo tom – sentir-se, ou melhor, ser colocado como estrangeiro em sua própria casa – a não inclusão do português como uma das línguas oficiais dos nossos congressos internacionais. O que tememos em escutar uma outra língua – uma das marcas das diferenças entre os povos – mesmo com todos equívocos de uma tradução? Quais equívocos tememos? As inevitáveis denúncias, que as narrativas do colonizado, num jogo de luz e sombra, ousar revelar? Nós, psicanalistas, corroboramos a ideia DE que as línguas maternas são precisamente as menos valorizadas? Ou temos que suportar que toda tradução implica em traição, porém, a serviço de uma maior fidelidade à língua dos novos interlocutores? Traição a quem, ou ainda, a que?         

Retomemos nossa temática, nosso país alberga a maior população negra fora do continente africano, temos uma psicanálise consistente e transformadora – entretanto ainda excludente – nosso trabalho com a problemática racial em termos teóricos e clínicos se faz fecunda e tem descerrado caminhos para construções de ações afirmativas, de cunho reparatório, em prol da presença de negros, negras e indígenas em nossos institutos de formação. Cabe destacar, também, a presença de autores negros que estudam a temática do racismo/branquitude, nos programas de ensino, propiciando a abertura para novos modelos identificatórios, que tem revitalizado o pensar crítico da psicanálise. Este processo tem certo grau de pioneirismo que deve ser escutado, num trânsito fecundo entre a ternura e os espantos, mais além de nossas fronteiras. Se possível, em nossa segunda língua mãe, que no caso dos afrodescendentes, revela e encobre, por um lado, a presença da destrutividade da língua originária, quando do sequestro de África de nossos antepassados; e por outro lado, carrega várias marcas das línguas de origens africanas, que fez Lélia Gonzalez cunhar a expressão pretuguês (1988). É nesse sentido que ressignifico as palavras de Munanga (2020) e as compreendo como indicativo maior do seu poder transformador, a magia das palavras (Freud, 1890), quando nutrida de uma genuína carga afetiva: a língua, que é nutrida por sensações, paixões e sonhos, aquela pela qual se exprime a ternura e os espantos, a que contém, enfim, a maior carga afetiva. A língua investida pelo povo negro, em seu transcurso diaspórico, reafirma, entre sonhos e paixões, a máxima que diz: nada sobre nós, sem nós.   

Contudo, corremos o risco, caso não possamos transpor essa lógica segregacionista – da língua única, que remete ao perigo de uma única história (Adichie, 2019) – de termos um comitê de brancos, representantes do eurocentrismo, ou ainda, de americanos (estou me referido à América Latina/Sul Global) identificados com tal legado – reedição do mito do branco salvador – falando, do alto do seu saber, sobre o problema do negro. A perpetuação da geopolítica do conhecimento. Em tal cenário mítico existirá espaço para falar, pensar e se responsabilizar pela gênese, pela direção e pela manutenção do racismo, que implica o mundo brancocêntrico, do qual a psicanálise está intimamente vinculada? Tenho o temor de uma reedição, agora, em nosso território, do assenhoar-se do negro como objeto de estudo do branco. É necessário explicitar que para trabalharmos o racismo, com perspectivas decoloniais, temos que tomar a negritude como norte e a branquitude como alvo. 

Diante desse sinalizador evoco Fanon: “peço que me considerem a partir do meu desejo. Eu não sou apenas aqui-agora, enclausurado na minha coisidade. Sou para além e para outra coisa. Exijo que levem em consideração minha atividade negadora, na medida em que persigo algo além da vida imediata; na medida que luto pelo nascimento de um mundo humano, isto é, de um mundo de reconhecimento recíproco”(1952/2008, p. 181). Minha língua, minha fala, minha oralidade desenham minha existência para mim e para o outro, clamando pela consideração pelo meu desejo e pela atividade negadora, posta na desintoxicação semântica (Munanga, 2020. p. 51) factual e subjetiva da palavra negro, forjada pelo colonizador das diferentes temporalidades.     

Encerro essas considerações com a esperança DE que possamos nos engajar num universo plural, que possamos escutar as várias línguas, em defesa da luta por uma psicanálise antirracista, onde o preconceito não encontre morada e as discrimações sejam balizadas por reconhecer a importância das diferenças e a letalidade das desigualdades com sua hierarquização de valores: pelo nascimento de um mundo humano, isto é, por um mundo de reconhecimento reciproco. Que o pensar democrático da psicanálise freudiana, sua isegonia (liberdade igual de fala para todos), que deveria estar vigente em nossas instituições, contribua para realizar no tempo presente, em seu enlace com o passado e o futuro, as aspirações do povo negro.   

À guisa de convite para avançarmos nessa reflexão – sobre o assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização que não nos pertence: o mais radical do infamiliar/Unheimliche no Eu – aponto um recorte do pensamento de Fanon, que está presente, no capítulo de abertura, O negro e a linguagem, do livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”:

Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia da tal língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização (1952/2008, p. 33).

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Instituições Psicanalíticas; Vidas Negras Importam 

Imagem: Capa do Livro “Racismo e Psicanálise: A Saída da Grande Noite”, de Augusto Maschke Paim e Ignacio A. Paim Filho. Editora Artes & Eco. Criação de Luísa Zardo.

Palavras-chave: racismo, colonização, idioma,  segregação

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Tags: colonização | idioma | Racismo | segregação
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