Hoje publicamos o ensaio de um dos candidatos à presidência da IPA, nosso colega Bernard Chervet, da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP).
Agradecemos ao Bernard por ter respondido prontamente ao nosso convite de escrever sobre um acontecimento da atualidade para o Op.
Forte abraço,
Equipe de Curadoria
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Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Como está evoluindo a psicanálise? O enigma da libido.
Bernard Chervet – (SPP) Sociedade Psicanalítica de Paris
A vida psíquica é a principal preocupação dos psicanalistas. A IPA une seus membros pela atenção deles à clínica e por uma forma de pensar o mundo que leva em conta o funcionamento psíquico. A missão da IPA é manter um espírito de pesquisa a fim de fazer a psicanálise evoluir em contato com novas clínicas, eventos mundiais e outros campos culturais.
Quando eu era estudante, vivi o tempo em que todos os campos da cultura eram considerados como sendo da alçada da psicanálise. Isto levou a psicanálise a ser fortemente acusada de “psicanalismo”; uma espécie de colonialismo. A recusa de reconhecer a psicanálise como uma ciência da vida psíquica tem usado esta distorção para reforçar a si mesma.
Desde então, uma melhor diferenciação dos respectivos campos foi restabelecida, e novas demandas clínicas surgiram. Elas atualmente são sobre maternidade, paternidade, e o gênero de adultos, crianças e adolescentes.
Ocorrem regularmente eventos que nos obrigam a reconsiderar o nosso trabalho, e a reconsiderar as relações entre nosso trabalho e o contexto no qual estamos trabalhando. Assim, a recente pandemia nos obrigou a pensar no trabalho psicanalítico on-line e na função da percepção dentro das sessões. Nasceram também reflexões sobre a distinção entre o corpo somático e o corpo sensível, o corpo sensual e erógeno; assim como sobre a criação do corpo como resultado da catexia libidinal na presença e na ausência de outro.
Da mesma forma, guerras e regimes totalitários nos confrontam com os limites das possibilidades de praticar análise. Nossa preocupação é continuamente desafiada pelas mudanças climáticas, pela fome mundial, pela migração de populações inteiras, pelo esgotamento de recursos e pela extinção de espécies. A elaboração da qualidade traumática se tornou fundamental para os psicanalistas. O desafio de manter a saúde mental e continuar a desfrutar a vida sem se refugiar na negação é uma das missões da psicanálise em relação à civilização.
Desde então, a psicanálise se engajou em debates com outros campos da cultura, em particular a neurociência e a biologia, mas também com a física, a epigenética, a filosofia, as artes, etc. Assim, surgem certas questões: o que os outros campos culturais podem trazer para a psicanálise? Por que a psicanálise deveria se interessar por outros campos da cultura? Não é apenas uma questão de curiosidade e prazer em aprender.
Dentro da Sociedade de Paris, criei uma unidade de pesquisa, a Comissão para Pesquisa e Desenvolvimento em Psicanálise. Nessa unidade, recebemos especialistas de outros campos culturais que não o nosso, seja ciência, arte, literatura, história, sociologia, política, etc. Esses especialistas são diversos, tanto em termos analíticos como regionais.
No Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, também incluí no programa convidados que não são psicanalistas e que vêm falar conosco sobre suas próprias pesquisas e suas metodologias.
Além do prazer do conhecimento, é o processo de pesquisa em psicanálise que não pode ocorrer sem essa proximidade e esse desvio. É uma forma de integrar uma determinada qualidade de vida das pulsões que necessita de diferenças externas para serem processadas dentro da psique. A metapsicologia não pode evoluir sem fazer tais desvios através dos outros campos da cultura.
Fazer desvios é inerente ao desenvolvimento da vida mental. É o que acontece durante o período de latência entre as duas etapas da operação de après-coup.
Como Freud, não deixamos de nos referir a outros campos da cultura e de voltar à metapsicologia por esse caminho. Apenas para mencionar de passagem o alcance e a diversidade dos campos aos quais nos referimos, eles variam entre termodinâmica, química, física e medicina, linguística, arte, literatura, pintura, mitologia, poesia, sociologia, antropologia e política e, é claro, neurologia e biologia.
Freud utilizou o esquema de sinapses para representar a associação livre, e depois representou a interação das topografias com esquemas muito semelhantes a áreas cerebrais. Ele as abriu em uma regressão ao infinito, que Bion retomou por meio da regressão a O. Em “Além do Princípio do Prazer”, ele se debruça sobre a biologia da regeneração a fim de enriquecer o ponto de vista econômico da metapsicologia, e para explorar a delicada questão da regeneração libidinal da mente.
Esses desvios, através dos outros campos da cultura, são de fato a forma pela qual os processos psíquicos são estabelecidos desde a infância e que depois continuam a partir de nosso interesse pela cultura. Winnicott tem continuamente conectado o brincar e a cultura. Foi assim que o neto de Freud transpôs para a bobina de madeira, o cordel, seu braço e seu “Fort-Da” os processos psíquicos que lhe permitiram construir sua função materna na ausência de sua mãe. Durante este desvio via brincadeira, a criança pesquisadora faz descobertas sobre o espaço, a matéria, o corpo, a força, etc.
É também assim que emergem os conceitos científicos do mundo externo. Lembramos a famosa declaração de Freud: “O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, de nosso aparato psíquico. A psique é estendida, nada sabe sobre ela”.
Esta transposição se torna transferência na sessão e permite o estabelecimento da alteridade dos objetos. Ela ocorre muito cedo em direção ao Nebenmensch, o ser humano com o qual a criança se identifica desde o nascimento. Não há, portanto, existência, conhecimento ou ciência sem transferência.
A transposição está envolvida nos próprios fundamentos da mente utilizada por todo pesquisador. Ela cumpre primeiro uma função psíquica anti-traumática. Esses desvios, através da materialidade externa, compreendem uma limitação na tendência das pulsões para a extinção e assim favorecem o registro das pulsões dentro da mente.
Esta regeneração libidinal ocorre durante o processo dos sonhos. Ela nos escapa totalmente, independentemente de sermos biólogos, neurologistas, psicanalistas ou artistas.
O trabalho de sonho é um banho de rejuvenescimento, que todos conhecemos de uma forma muito subjetiva, uma verdadeira maravilha ao acordar.
A psicanálise aproxima-se de outras disciplinas através desse enigma desses processos gerando algo que escapa tanto à biologia como à psicanálise. A psicanálise chama esse algo de libido. Todos nós conhecemos essa libido através da nossa vida corporal, sensual e erótica.
A biologia não tem sido capaz de a individualizar. A psicanálise refere-se a ela através do seu reconhecimento da conversão corporal, sem ser capaz de reificar ou objetivar o que é essa libido que é exaltada durante os nossos encontros românticos. Esse é o mais profundo enigma científico da psicanálise, um enigma que a biologia e os psicanalistas esperam resolver. Reich caiu em uma armadilha ao querer dominá-la e fazer do “orgone” o seu negócio, o que, por sua vez, precipitou-o em seu triste destino.
É sobre esse enigma aberto pela investigação do estimulante e assustador infinito, que vou terminar as minhas observações. O enigma da nossa ciência chama-se libido. Os seus sotaques biológicos são cantados pelos poetas. Elusiva, está na base do nosso desejo erótico e dos nossos sopros de amor.
“A nossa pálida razão esconde-nos o infinito”, escreveu Rimbaud.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Tradução: Lina Schlachter Castro (SPFOR)
Imagem: O autor utilizou fotografias de James Webb (telescópio espacial) que tinham acabado de chegar à Terra no dia 25 de dezembro. E adicionou fotografias pessoais de um grupo de relógios antigos (embaixo à direita).
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Transposição, Cultura, Função antitraumática, Generatividade, Libido
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Texto original em inglês
Psychoanalytic Observatory – OP 381/2023
Essays on sociopolitical, cultural, and institutional events in Brazil and in the World
How is psychoanalysis evolving? The enigma of the libido
Bernard Chervet – Psychoanalytic Society Paris (SPP)
Psychic life is the main concern of psychoanalysts. The IPA unites its members through their attention to the clinic and by a way of thinking about the world that takes psychic functioning into account. The IPA’s mission is to maintain a spirit of research in order to make psychoanalysis evolve in contact with new clinics, world events, and other cultural fields.
When I was a student, I experienced the time when all fields of culture were deemed to fall within the purview of psychoanalysis. This led to psychoanalysis being heavily accused of “psychoanalysm”; a kind of colonialism. The refusal to recognize psychoanalysis as a science of psychic life has used this distortion to reinforce itself.
Since then, better differentiation of the respective fields has been re-established, and new clinical demands have emerged. This currently concerns motherhood, parenthood, and the gender of adults, children, and adolescents.
Events regularly occur that oblige us to reconsider our work and to reconsider the relations between our work and the context in which we are working. Thus, the recent pandemic has forced us to think about psychoanalytic work online and about the function of perception within the sessions. Reflections were born also on the distinction between the somatic body and the sensible body, the sensual and erogenous body; as well as on the creation of the body as a result of libidinal cathexis in the presence and in absence of another.
Similarly, wars and totalitarian regimes confront us with the limits of the possibilities of practicing analysis. Our concern is continually challenged by climate change, world hunger, the migration of entire populations, the depletion of resources, and the extinction of species. The elaboration of the traumatic quality has become fundamental for psychoanalysts. How to sustain mental health and continue to enjoy life without taking refuge in denial is one of the missions of psychoanalysis toward civilization.
Since then, psychoanalysis has engaged in debates with other fields of culture, in particular neuroscience and biology, but also with physics, epigenetics, philosophy, arts, etc. So, certain questions arise: What can other cultural fields bring to psychoanalysis? Why should psychoanalysis be interested in other fields of culture? It is not only a matter of curiosity and pleasure in learning.
Within the Paris Society, I created a research unit, the Commission for Research and Development in Psychoanalysis. In this unit, we receive specialists from other cultural fields than ours, be it science, art, literature, history, sociology, politics, etc. These specialists are diverse, both analytically and regionally.
In the Congress of French-speaking Psychoanalysts, I have also included in the program guests who are not psychoanalysts and who come to speak to us about their own research and their methodologies.
Beyond the pleasure of knowledge, it is the process of research in psychoanalysis that cannot take place without this proximity and this detour. It is a way of integrating a particular quality of the life of the drives that need external differences to be processed within the psyche. Metapsychology cannot evolve without making such detours through the other fields of culture.
Making detours is inherent to the development of mental life. It is what happens during the period of latency between the two stages of the operation of après-coup.
As Freud, we don’t cease to refer to other fields of culture and come back to metapsychology via this path. Just to mention in passing the scope and diversity of the fields to which we refer, ranging from thermodynamics, chemistry, physics and medicine, linguistics, art, literature, painting, mythology, poetry, sociology, anthropology and politics, and of course neurology and biology.
Freud used the schema of synapses to depict free association, and then he represented the interaction of the topographies with schemas closely resembling the cerebral areas. He opened them on a regression to infinity, which Bion was to take up by means of the regression to O. And in “Beyond the Pleasure Principle”, he looks into the biology of regeneration in order to enrich the economic point of view of metapsychology and explore the delicate question of the libidinal regeneration of the mind.
These detours via the other fields of culture are in fact the way in which psychic processes are established from childhood and which then continue in our interest in culture. Winnicott has continually linked play and culture. This was how Freud’s grandson transposed onto the wooden reel, the string, his arm, and his “Fort and Da” sounds the psychic processes that enabled him to build up his maternal function in the absence of his mother. During this detour via play, the child researcher makes discoveries about space, matter, the body, force, etc.
This is also how scientific concepts of the external world emerge. We remember Freud’s famous statement: “Space may be the projection of the extension of the psychical apparatus. No other derivation is probable. Instead of Kant’s a priori determinants of our psychical apparatus. Psyche is extended, knows nothing about it”.
This transposition becomes transference in the session and allows for the establishment of the otherness of the objects. It takes place very early on towards the Nebenmensch, the fellow human being with whom the child identifies from birth. There is therefore no existence, knowledge, or science without transference.
The transposition is involved in the very foundations of the mind that is used by every researcher. It fulfills first an anti-traumatic psychic function.
These detours through external materiality realize a restraint on the tendency of the drives towards extinction and thus favor the registration of the drives within the mind.
This libidinal regeneration takes place during the dream process. It totally escapes us, irrespective of whether we are biologists, neurologists, psychoanalysts or artists.
Dream-work is a bath of rejuvenation, which we all know in a very subjective way, a real wonder on awakening.
Psychoanalysis draws closer to other disciplines through this enigma of these processes generating something that escapes biology as much as psychoanalysis. Psychoanalysis calls this something the libido. We all know this libido through our bodily, sensual, and erotic life.
Biology has not been able to individualize it. Psychoanalysis refers to it through its recognition of bodily conversion without being able to reify or objectify what this libido is that is exalted during our romantic encounters. This is the deepest scientific enigma of psychoanalysis, an enigma that biology and psychoanalysts hope to solve. Reich trapped himself by wanting to master it and make the “orgone” his business, which in turn precipitated his sad fate.
It is on this enigma opened up by research to the stimulating and frightening infinite, that I will end my remarks. The enigma of our science is called libido. Its biological accents are sung by the poets. Elusive, it is at the foundation of our erotic desire and our whiffs of love.
“Our feeble reason hides the infinite from us,” wrote Rimbaud.
(The published texts are the responsibility of their authors)
Image: The author used photos from James Webb (space telescope) that had just arrived on earth on December 25th. And added personal photos of a group of old watches (bottom right).
Category: Psychoanalytic Institutions
Key words: Transposition; culture; antitraumatique function; generativity; libido
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