Observatório Psicanalítico – OP 380/2023

Bom dia colegas,
 
Hoje, dando sequência aos textos dos candidatos da América Latina ao BOARD da IPA, publicamos o ensaio do nosso colega Sérgio Nick da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), um dos candidatos a nos representar no Board da IPA. Agradecemos Sérgio por ter respondido prontamente ao nosso convite de escrever sobre um acontecimento da atualidade para o OP.
 
Forte abraço, equipe de Curadoria
 
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Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Sobre traumas e sua transmissão

Sergio Eduardo Nick (SBPRJ)

Triste e desapontada, Ana deita-se no colo de sua avó Clara e lhe pergunta: “Vó, por que que mamãe fez isso?” Clara, tanto ou mais triste, responde: “Não sei, minha netinha. Tem coisas que são mesmo muito difíceis de entender”. Clara cai em profundo silêncio, pensando no que teria motivado a sua filha. Vem à sua mente seu tataravô, homem que originou tamanha mudança nos rumos de sua família quando largou a família e foi para a capital. Até então, a família dele vivia de forma simples como comerciantes naquela pacata cidadezinha mineira. Foi a morte repentina da matriarca, vítima de uma moléstia desconhecida, que o levou a tentar a sorte na capital. Seu pai, deprimido, deu para beber desde cedo pela manhã e não dava conta de sustentar a família. Como não tolerava tamanha tristeza e devastação, aceitou um convite da madrinha e foi estudar em Belo Horizonte. Ele montou um belo e próspero negócio de representação comercial, constituiu família, e nunca mais fez outro contato com sua família de origem que não fosse o envio mensal de sua contribuição financeira ao pai. Não o convidou nem aos irmãos para o seu casamento, nem deu notícias do nascimento dos filhos. Houve um rompimento violento com suas origens. Clara lembra de seu avô dizer, referindo-se ao pai: “Era homem forte e resoluto. Nada o parava. Só não gostava que lhe perguntassem sobre sua família. Dizia que sua família era a esposa, os filhos e seus netos!”

Vemos, na história acima, um exemplo de como um ato ocorrido tempos atrás numa família pode emergir várias gerações depois sem que um elo entre eles possa ser facilmente estabelecido. O ‘não-dito’ se transforma em memórias, afetos, e comportamentos que não passam através de uma história contada, mas através de repetições e vivências cujos elos com o passado foram se perdendo pelo caminho entre gerações. Quando a vovó da minha história, absorta em seus pensamentos, relembra aquilo que um dia ouviu, ela na verdade não é capaz de ligar conscientemente o ato de sua filha com a neta ao que ocorreu com o seu tataravô. Acreditamos que vovó Clara fez esta ligação em seu devaneio, o que nos permite inferir o laço transgeracional entre um fato e outro.

Enquanto estudiosos das transmissões psíquicas transgeracionais, nós, psicanalistas, ficamos especialmente atentos àquilo que foi negado, ou, como gostamos de nominar, forcluído. São as memórias que não podem ser representadas nem conversadas no âmbito familiar, pois houve uma interdição causada por reações mal elaboradas a um fato traumático. Entendemos que essas memórias habitam o universo imaginário de uma família como algo não dizível, rememorável apenas através de atos ou sintomas psíquicos. São os fantasmas transgeracionais que se sucedem às criptas após a primeira geração.

Ana tenta recorrer à sua avó para tentar entender o porquê de sua mãe tê-la abandonado assim sem explicações. Sua indizível dor só encontra algum alívio no colo de sua avó, que parece conhecer algo dessa dor, apesar de tampouco saber nominá-la ou explicá-la. As reminiscências de Clara, ao associar a dor da neta à saga de seu tataravô, podem ser compreendidas no âmbito dessas dificuldades com o apego que marcam a sua família desde algumas gerações. Ao não suportar o luto pela perda de sua mãe, o tataravô de Clara busca “começar sua vida emocional do zero!” (aqui começaria a interdição, que dá lugar ao ‘não-dito’ que atravessa várias gerações nessa família). O fato de seu pai não ter demonstrado muita capacidade para tolerar esse luto (ele “deu para beber”) tampouco o ajudou a transpor este marco em sua vida que não fosse através deste brutal rompimento com o passado. Mas o que acontece não é simplesmente apagado. Essas marcas se mostram presentes no caráter, nas expressões e comportamentos, e só podem ser entendidas mediante um profundo mergulho na história familiar.

Ana, sua mãe e sua avó Clara tem uma história para contar. Poderíamos imaginar que um déficit de apego, entranhado em Clara, tenha se expressado em uma forte dificuldade de sua filha apegar-se à Ana? Podemos pensar que as três repetem um script familiar que se origina gerações atrás, quando da trágica morte da tataravó de Clara? Clara o teria transmitido à filha pela dificuldade de um apego mais profundo a ela. Tal entrave ao apego é transmitido à neta de forma mais contundente pela reedição do trauma transgeracional através de uma inexplicável separação.

Pensamos que um bebê, ao chegar ao mundo, será inundado de significantes e significados pelo meio que o circula. Quanto maior e mais diversa for a sua exposição a essas diferentes transmissões, mais rico poderá se tornar o seu psiquismo. Mas nem sempre essa riqueza se traduz em saúde mental.

Pode-se sugerir que havia nessa família um traço mórbido, muitas vezes não observável ou considerado como uma forma de ser e de agir: a falta de apego ou a dificuldade de manter ligações emocionais profundas.

Para Szejer, desvendar o “não-dito” é condição essencial para a cura dos sintomas psíquicos do bebê.

Assim como a morte da tataravó de nossa história foi vivida como um abandono irreparável, impossível de ser digerido psiquicamente, a ausência da mãe de Ana acaba por ser vivida por ela da mesma forma: algo sem explicação, impossível de ser adequadamente metabolizado psiquicamente. Destaco que apenas a sua avó é detentora de uma memória, que lhe surge como um devaneio naquele momento de encontro amoroso com a sua neta, capaz de dar sentido ao trauma inexplicável para Ana. Ao perguntar à sua avó o que aconteceu,  Ana abre um espaço para que ela e sua avó possam reparar um fato traumático ocorrido várias gerações atrás.

Como vocês podem deduzir do exemplo dado, Ana e sua avó, diferentemente do que fez o tataravô, se encontram ternamente, conversam, e aceitam que aquela dor seja dizível. É uma esperança de redenção deste trauma para esta família. Quando Clara diz à Ana “Não sei, minha netinha. Tem coisas que são mesmo muito difíceis de entender”, ela não desmente as sensações vividas por Ana, tampouco as explica de forma a dar um sentido ao ininteligível. Clara simplesmente dá lugar à emergência dos sentimentos de tristeza e abandono vivenciados por Ana, e se oferece como um ombro amistoso e acolhedor àqueles sentimentos. Destaco isso por conter, neste ato, a possibilidade de uma diferente elaboração do luto. Se um antepassado não pôde lidar com o luto a não ser através do rompimento com o passado, Clara oferece à Ana uma outra opção: um espaço afetivo onde as dores e as tristezas podem ser experimentadas, ditas e digeridas. Ademais, ela dá lugar à possibilidade de dúvidas e falta de explicações próprias àquele fato.

Este ensaio, extraído de um texto meu publicado em um dos livros do “Projeto Cuidado”, buscava mostrar a importância das relações avós-netos na constituição do psiquismo. Neste projeto, do qual participo já faz muitos anos, fomos construindo um forte enlace entre a Psicanálise e o Direito, onde variadas questões são discutidas e mudanças no arcabouço jurídico vão sendo conquistadas. Destaco o reconhecimento, pelo STF, do Cuidado como um valor jurídico, podendo hoje ser objeto de ações na Justiça quando se observa a falta de cuidados a uma criança ou adulto.

Mas se trago esse exemplo singelo de transmissão transgeracional, o faço também como um chamamento aos colegas que trabalham nas comunidades, na política e nos espaços públicos. O OP tem sido um lugar de denúncias de situações traumáticas mis. Ao dar nome a elas, buscamos evitar a formação de ‘criptas’, ou ao menos oferecer um espaço onde elas possam ser elaboradas.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Instituições psicanalíticas 

Palavras-chave: Psicanálise, Direito, Transgeneracionalidade, Luto

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Tags: Direito | luto | Psicanálise | Transgeneracionalidade
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