Observatório Psicanalítico – OP 382/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Preconceito, discriminação, racismo *

Magda Khouri (SBPSP)

No cotidiano da clínica psicanalítica somos constantemente convocados a refletir sobre os fenômenos que envolvem os sujeitos submetidos às diversas formas de sofrimento psíquico social. Quando se coloca em pauta como as questões raciais incidem na subjetividade, um novo campo se abre com indagações que nos levam a rever e ampliar a nossa escuta.

Situações de preconceito e discriminação em diversos segmentos da população são uma constante na realidade brasileira, entretanto há para os negros algo particular: uma cor e um corpo marcados historicamente. Trata-se de se considerar, na reflexão psicanalítica como nos processos clínicos, as complexas camadas da dor psíquica da escravidão, que se perpetuaram por tantos séculos e que se atualizam no dia a dia sob a violência do racismo.

Nessa linha de construir modos de compreensão dos efeitos psicossociais do racismo, vemos que se faz necessária uma diferenciação entre preconceito, discriminação e racismo.

No glossário de Eliana de Oliveira, em publicação do Instituto AMMA, “Psique e Negritude” (2008), a autora define preconceito como “um julgamento formulado sobre uma pessoa, grupo de indivíduos ou povo que ainda não se conhece ou não compreendemos. É um dado universal, ligado à psicologia humana, um dado inerente a todas as culturas e a todas as civilizações.”

A formação de um preconceito, em geral, dispensa o trabalho do pensamento, pois tende a cristalizar o senso comum e a acreditá-lo como verdadeiro. Baseia-se numa comparação social em que a pessoa se coloca como referência positiva e o outro, objeto de preconceito, é visto em situação de desvantagem ou inferioridade social, econômica, cultural ou biológica.

De acordo com Isildinha Baptista Nogueira, psicanalista e autora do livro “A cor do inconsciente: significações do corpo negro” (Editora Perspectiva, 2021), de alguma maneira o preconceito nos faz preservar nossa identidade, ajudando o sujeito a se perceber parte de um grupo, de um lugar, de uma etnia ou de um conjunto de valores.

A discriminação entra no terreno da segregação, portanto considerado mais perigoso. São ações promovidas com o objetivo de manter as características de um grupo de posição privilegiada e referência positiva. Eliana Oliveira descreve discriminação racial como “um comportamento coletivo observável, até mensurável ligado a certos modos de funcionamento social. Ela é produzida quando se recusa aos indivíduos ou aos grupos humanos, a igualdade de tratamento que tem direito de receber.”

Mais estruturado, o racismo é uma ideologia e um processo pelo qual grupos específicos, com base em características biológicas e culturais verdadeiras ou atribuídas, são considerados inferiores. Alguns resultados, aparentemente científicos, que fundamentam a crença da superioridade de um grupo sobre os demais, são usados como fundamento lógico para excluir os membros desses grupos do acesso a recursos materiais e não materiais. Trata-se do uso político de tal “inferioridade”, legitimando a perseguição e a consequente violência contra determinados grupos sociais.

Isildinha Nogueira, de forma precisa e sintética, conceitua os três termos. A autora parte da ideia de que para criar o caráter identitário temos como base o preconceito, acrescentando que o preconceito ajuda a diferenciar um grupo de outro. Quando esse viés da natureza humana se exacerba, entramos no campo da discriminação, e ao se fechar absolutamente caímos no racismo. A partir daí é o horror. O Holocausto não nos deixa dúvida acerca das consequências do racismo.

O racismo brasileiro, camuflado e silenciado, tem sido bastante eficiente em seus objetivos: como sabemos, uma das consequências é a auto rejeição e a rejeição do seu outro, expressa no desejo de branqueamento, fazendo da negritude uma ferida que nunca se cicatriza. Justamente pela nossa forma de racismo não se dar de maneira mais explícita, o pavor do negro nunca desaparece: além da marcada violência física e social que sofre diariamente, o negro traz no seu corpo o que provoca o ataque racista. Mesmo reconhecendo o absurdo de tais ameaças, uma angústia se fixa e, alheio à sua vontade, todo um processo inconsciente entrará em ação.

Quem se aproxima dos temas da negritude e da branquitude não escapa do efeito perturbador que eles provocam. São atravessamentos que só podem ser feitos no corpo a corpo da dupla analítica. Se o trabalho clínico criar condições para se escutar como acontecem os mecanismos de discriminação, quais as ideologias que a sustentam, há chances da pessoa tomar posse de sua história de um outro lugar.

Como escreveu Janine Puget, em “Subjetivación discontinua y psicoanálisis” (2015), somos todos testemunhos de cenas que nos afetam, “que vão deixando marcas nem sempre visíveis. Passar de testemunho para capaz de testemunhar permite, às vezes, transformar um posicionamento daquele que sofre para um ativo que nos permite fazer algo com o vivido”. Aí se configura uma função do psicanalista “quando uma interpretação toma a forma de testemunho.”  

Sem tocar no campo da branquitude, nada acontecerá. Cida Bento em “O pacto da branquitude” (Companhia das Letras, 2022) denuncia e questiona a negação e resistência, de nós brancos, um silêncio que mantém a desigualdade e, por sua vez, nossos privilégios. A lente branca é voltada para o outro, o negro, o indígena e a virada epistemológica é o branco olhar para si mesmo.

Esse discurso, compartilhado com o analista, possibilita uma mudança na posição do sujeito, e quiçá possa transformar, em ambas as partes da dupla analítica, as suas inserções no mundo.

*  Texto apresentado na reunião promovida pela diretoria científica e a comissão Virginia Bicudo da SBPSP, em 20/10/2022: “Ética e preconceito na clínica psicanalítica” , em conjunto com as apresentações dos trabalhos de Dora Tognolli, Eduardo de São Thiago Martins, Tiago da Silva Porto e Maria José Tavares, representando a CVB.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: s/t, 2019. Aguada de café e terra sobre papel, 29x42cm. Papel sulfite 180g. Luiz Lira: @l_lira_

Categoria: Vidas Negras Importam 

Palavras-chave: Escuta psicanalítica, Discriminação, Negação, Preconceito, Racismo

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Tags: discriminação | escuta psicanalítica | Negação | preconceito | Racismo
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