Observatório Psicanalítico – OP 347/2022

 
 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Confusão de línguas: pintou um clima, pintou um crime na presidência.

 Luciana Saddi (SBPSP)

Recentemente causou surpresa vídeo em que o presidente Bolsonaro, 67 anos, conta que passeava de moto quando viu uma ou duas meninas de 14 anos, refugiadas, supostamente venezuelanas, arrumadas. Acrescenta que “pintou um clima” entre ele e uma das garotas e, então, ele entrou na casa da menina. Lá havia por volta de 20 garotas, todas arrumadas. Concluiu que estavam arrumadas para “ganhar a vida”. O vídeo causa estranhamento difícil de traduzir em palavras. O espectador percebe que há algo muito errado, mas não consegue imediatamente apontar a fonte do estranhamento, difuso, relativo à pedofilia. No campo da pedofilia, como assim? Ele fala que pintou um clima em relação a uma menina de 14 anos e entra na casa dela? Soa abusivo. Ele vive passeando de moto? Parece que é uma de suas maiores ocupações. Mas quem em sã consciência impediria o presidente de entrar em sua casa? 

Uma menina de 14 anos jamais. A verticalidade da situação também chama a atenção. Ele um homem poderoso, ela uma menina refugiada. O que esse senhor foi fazer na casa da adolescente depois de “pintar um clima”?

Aparentemente, ao contar esse caso, a intenção seria de alertar o eleitor para o que aconteceria no futuro do país, caso não fosse reeleito. O adversário Lula se fosse vitorioso, transformaria o Brasil em Venezuela e nossas meninas, por força da pobreza, em prostitutas. No entanto, provavelmente por vício machista, não percebeu que, no mínimo, estava prevaricando, pois, ao ser testemunha de suposto crime, nada fez para proteger as vítimas nem denunciou a situação, imaginada, de exploração sexual de menores. Naturalizou a violência e assentiu como natural o abuso sexual de menores. Aquelas meninas estavam ali se arrumando para “ganhar a vida” e para dar ao presidente a honra de fazer um alerta ao país. Nada mais a declarar. Como se fosse um juiz com o veredito definitivo. Nem passou pela cabeça do presidente que meninas não “ganham a vida”, meninas são exploradas sexualmente. O presidente deveria denunciar imediatamente o crime que imaginou testemunhar ou anunciar na entrevista que providências seriam tomadas para proteger as meninas. 

Seria o momento de chamar a ministra da mulher, família e direitos humanos para lhe perguntar quais ações estavam sendo desenvolvidas em prol das menores e de divulgar a grandeza das ações desse ministério desaparecido das mídias. Deduz-se da conduta do presidente que a prostituição de menores em condição de vulnerabilidade social é inconteste, lamentável, e não um crime. Elas “ganham a vida”. O machismo naturaliza situações de violência e abuso. Além disso, relatou a triste e fantasiosa história das meninas venezuelanas se gabando, se deliciou com o “clima” entre ele e a garota. Envaidecido por se imaginar tão atraente e por salvar o país de funesto destino. O herói do Brasil que impede as mocinhas brasileiras de se tornarem prostitutas. Ele que previu tal futuro, também seria o único a salvar o país de tamanha desgraça.

Os traços de fantasia sexual com cunho pedófilo contidos na entrevista são evidentes. A projeção é uma das características desse tipo de pensamento. Um mecanismo de defesa que imputa à vítima o próprio desejo e depois a culpa pelo abuso. Acusam a vítima de provocação sexual para culpá-la pelo assédio e estupro. E para se desculpar pelo crime. Por isso, pedófilos e abusadores referem-se a “pintou um clima” como quem falaria “a menina é assanhada”, “ela estava pedindo”. O “pintou um clima” se define como operação linguística e mental que procura colocar a menina e o presidente em patamar idêntico. Como se ambos sentissem as mesmas emoções românticas ou sexuais. Embora, o chamado “clima” esteja com certeza somente na cabeça do abusador. E não na da vítima. Eis um exemplo do que Ferenczi chamou de confusão de línguas. A língua da paixão, a linguagem do adulto, interpreta os atos e brincadeiras infantis na esfera da sexualidade adulta. Já a língua da ternura, linguagem da criança, não alcança nem entende a sexualidade adulta. A criança se move no âmbito da conquista terna, mas recebe a resposta violenta e invasiva da paixão sexual. 

Uma menina se arruma para ficar bonita. Qual garota nos dias de hoje não gostaria de ficar bonita? Um adulto afirma que se a menina está arrumada, e quer ficar bonita, é prostituta. Não ocorre em nenhum momento ao presidente, pela mentalidade machista e patriarcal, que beleza, estar arrumada é um ato que visa integridade física e mental para as jovens. 

Sabemos que a beleza tem inúmeros significados e se refere à diferentes posições psíquicas. Desde a promoção de sentimento de harmonia e coesão, ao assegurar a vitória primazia dos bons objetos frente a destrutividade interna até a mitigação da desordem, restauração da coesão e da vitalidade do Eu. Nem sempre uma mulher bonita ou bem arrumada está se apresentando como objeto sexual, muito menos uma adolescente. No entanto, para o homem que jacta-se de ser predador, dentro da mentalidade machista e patriarcal, se uma menina se arruma, ela é prostituta. Ela está no mundo para o servir, para servir aos homens. E, aqui, nem consideram tratar-se de abuso. 

A prostituição é alternativa de sobrevivência, realidade irremediável, que deve ser aceita como fatalidade. Portanto, ao imaginar que as meninas estavam se prostituindo para “ganhar a vida”, o presidente se gaba de um clima entre ele e uma das meninas e usa a situação para propaganda política. A menina é usada várias vezes. Primeiro como objeto sexual. Depois quando apaga a possibilidade da garota pensar e sentir diferente dele e, ainda, como propaganda eleitoral. Seu constrangedor papel é ficar calada, aceitar o julgamento e esperar passar, como se fosse um estupro, no caso, estupro simbólico. O governo, então, organiza teatro típico de filmes americanos. Convoca ministros, generais e até a primeira dama para novamente assediar não só as meninas, mas também seus pais com a intenção de maquiar, esconder, arrumar a situação machista, que naturaliza a violência e o crime, criada pelo presidente. Situação de não proteção às menores, de não denunciar e nem de promover a investigação da exploração sexual infantil. Violadas pela imaginação do presidente, abusadas pela propaganda eleitoral do governo, são novamente violadas pela ação de contenção de danos a mando do presidente. Joguetes da cobiça, da fúria libidinosa, expostas de forma desonrosa, sem direito à privacidade da infância, configurando-se abuso psicológico de menores. Adolescentes e famílias são silenciadas. O Governo posta fotos das meninas constrangidas e de seus familiares ao lado de Bolsonaro sorridente. O sorriso falso do presidente não disfarça o erro. E como se não bastasse tanto abuso, abusam da inteligência dos brasileiros ao tentar dar novos significados para “pintou um clima”. “Pintou um clima” quer dizer que surgiu uma oportunidade no jargão militar? Oportunidade para o que? Para entrar na casa de uma garota arrumada de 14 anos? Acontece que “pintou um clima” foi dito numa circunstância sexual, na qual havia a ideia de “ganhar a vida”. 

A frase remete à cena de uma menina arrumada para se prostituir. Prostituição com menores de idade significa exploração sexual infantil. “Pintou um clima” está muito longe da inocência. O contexto sexual a denuncia. E a história de declarações machistas a confirma. Em abril de 2019 Bolsonaro disse em café da manhã com jornalistas que o Brasil não pode ser país do turismo gay, em seguida acrescentou: “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Na época a fala machista e homofóbica foi duramente criticada. O convite pernicioso oferecia as mulheres brasileiras como se fossem objetos sexuais do presidente. Convite feito com desdém, talvez com orgulho, não mente.

O Brasil ocupa o 2º lugar no ranking de exploração sexual infantojuvenil. Estima-se que somente 10% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes sejam notificados. Segundo a Unicef, cerca de 250 mil crianças estão prostituídas no país. O tema nos constrange, os dados são de 2010. A violência contra a infância e contra a mulher é parte intrínseca do modelo sociocultural do país que naturaliza a discriminação. Os valores machistas e patriarcais são os fundamentos desses crimes. Bolsonaro expressa tais valores e até os exalta sem nenhum constrangimento ou vergonha.

Sobre o tema abordado nesse post Cecilia Orsini (SBPSP) e eu fizemos (roteiro e direção) um filme curto para WhatsApp e redes digitais.

https://www.instagram.com/reel/CkI30xFvmbL/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

https://fb.watch/gzQq5lBEVa/

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: Remix Paintings, de Georg Baselitz (2007)

Categoria: Política e sociedade 

Palavras-Chave: Violência sexual, Machismo, Pedofilia, Prostituição, Adolescência

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Tags: adolescência | machismo | Pedofilia | Prostituição | Violência sexual
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