Observatório Psicanalítico-Editorial outubro/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 30 – Outubro/2022

Quero a utopia, quero tudo e mais

Quero a felicidade dos olhos de um pai

Quero a alegria muita gente feliz

Quero que a justiça reine em meu país

Quero a liberdade, quero o vinho e o pão

Quero ser amizade, quero amor, prazer

Quero nossa cidade sempre ensolarada

Os meninos e o povo no poder, eu quero ver (…)

(Coração Civil, Milton Nascimento e Fernando Brant)

Desde tempos longínquos somos uma espécie que conta histórias. Dos primeiros gestos aos corpos que dançam. Das narrativas orais ao redor do fogo aos grupos de leitura. Do balbucio às canções. Contando histórias nos reconhecemos e relembramos quem somos. Pelo fluxo das partilhas nutrimos as engrenagens da memória, do sonho, da imaginação, reacendemos a esperança. 

Brasil, 1981. Milton Nascimento e Fernando Brant compõem uma ode à utopia: a música Coração Civil. O peso dos anos de chumbo fazia ruir a ditadura em nosso país. Nos anos seguintes as ações pelas “Diretas Já” estariam nas ruas clamando por democracia. Em 1988 a Constituição Cidadã é promulgada. Entrávamos em um novo tempo, prenhe de desejos de mudança, do resonhar as coisas boas que o homem fez e faz. A letra de Coração Civil pede pela inspiração no sonho de amor Brasil, fala sobre São José da Costa Rica. Os poetas referiam-se ao pacto de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também exaltavam o país que abolira as Forças Armadas para investir na educação e na saúde da população: “Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?”, canta o coração de Milton Nascimento, nosso aniversariante do mês de outubro. 

O hino pacifista anuncia a quem cabe o poder numa democracia: ao povo compromissado com as novas gerações. Querer “a utopia e tudo e mais” é o que permite mirar além, é um chamado para abraçarmos a vida com afinco. Nossa História Brasileira recente tem sido atravessada pelo vilipêndio da palavra, por gestos que rebaixam a condição humana, agridem a floresta e seus habitantes, ferem nosso olhar com objetos que simbolizam não o amor, mas a desagregação. Não se faz laço social usando granadas, fuzis, bloqueando  estradas com atos truculentos ou armando a população com revólveres e lixo fake. Para a maioria dos eleitores brasileiros esse tipo de representação social não tem mais lugar. Nossa primeira utopia talvez seja essa: um trabalho de substituição do que nos simboliza como país, como povo brasileiro. Dar ao imaginário coletivo o presente de representações de pertencimento e amálgama. Como o artista Banksy, trocar a imagem das granadas por flores, as ofensas por abraços, e os livros serem a nossa munição. 

Em outubro o OP recebeu ensaios que tocaram a melodia da utopia e desenvolveram reflexões sobre o contexto das eleições. 

“O Brasil é uma promessa! Respeitemos nosso sonho de ser um país do futuro”, nos diz Ney Marinho (SBPRJ) no ensaio POR QUE A PAZ? “Compaixão e verdade” (OP-346/2022). Seu depoimento, acompanhado de sua imagem sendo “levado” para o quartel da Polícia Militar em março de 1965 emociona quem lê e vê, e reforça a pergunta sobre o mundo que queremos viver e deixar para os nossos filhos e netos. Nossa responsabilidade: “por um mundo melhor que permita o pleno exercício da criatividade. Utopia!” A equipe de curadoria do OP faz coro à fala de Ney, de Milton, de Brant: queremos a utopia que contribua na construção da alegria, que faça muita gente feliz em uma sociedade igualitária, regida pela paz. 

Por conseguinte, a paz é filha da justiça. Nosso Grande Grupo OP recebeu de Bernardo Tanis a sugestão do filme Argentina, 1985, cuja narrativa versa sobre o julgamento das juntas militares que governaram o país após o golpe e foram responsáveis pelo desaparecimento, tortura e morte de milhares de pessoas. O destaque dado por Bernardo ao discurso do promotor, em sua potência de experiência emocional mobilizadora, reverbera indagações sobre as palavras justas que ainda não foram proferidas no Brasil. Diz o promotor: “o sadismo não é uma ideologia política, é uma perversão moral.” A paz não pode ser assentada no campo do esquecimento. Ela viceja no palco da memória para que haja reparação, bem como para que o terror não se repita. Nunca mais. 

Celso Gutfreind (SBPdePA) em “Espaço psíquico-político ou uma interpretação psicológica das eleições” (OP-342/2022) traz o resultado do primeiro turno eleitoral nas esferas legislativa e executiva e explana que será necessário mais psicanálise para lidarmos com o desnorteio do presente e com as incertezas que virão. “Seria, então, preciso conhecer causas irremediavelmente doloridas, narcísicas, tanáticas, no rastro de uma consciência difícil de adquirir, como em uma psicanálise que não seda, não cura, pelo contrário: tão somente (tão somente?) aumenta a possibilidade de percepção para lidar melhor com o que já estava doente e poderá continuar, embora, a partir da consciência e de seus nomes, tende a encontrar alternativas estruturais para o enfrentamento (não a extinção).” Diante do que padece, aprender a tecer uma nova história.  Mesmo que seja difícil, ainda que utópica.  

Kátia Barbosa Macêdo (SBPG) em seu ensaio “Caetaneando” para superar a dualidade: de Freud à Vaca Profana (OP-345/2022), pontua o desamparo humano e a busca por soluções ilusórias, como se dá na idealização de um grupo ou de um líder, tal como Freud desenvolve no texto sobre a psicologia das massas ou no conceito de posição esquizoparanóide de Melanie Klein.  A autora deslinda com o auxílio da teoria psicanalítica a letra da música Vaca Profana, de Caetano Veloso, na busca de relacioná-la com a situação de polarização no Brasil. Na cadência musical da oferta do leite mau e do leite bom a autora constrói um caminho de possibilidade de integração. 

Quantas palavras moram em nosso léxico sem que percebamos o que está sendo dito? As nomeações científicas e populares dadas às plantas, sobretudo às consideradas “daninhas”,  instigaram a artista Giselle Beiguelman a produzir as obras da exposição Botannica Tirannica, que esteve em cartaz no museu Judaico de São Paulo. Nas palavras da artista: “a botânica clássica antropomorfiza o mundo vegetal e faz das plantas um espelho do homem”; “o modo como se nomeia o mundo é o modo como se criam as divisões, os preconceitos, e se consolida o pensamento binário”. Por isso, afirma a artista, “a nomenclatura é um ritual de apagamento” (explicações conceituais retiradas do release da exposição).

A exposição Botannica Tirannica esteve presente no argumento do ensaio de Luiz Meyer (SBPSP), intitulado POLÍTICA IDENTITÁRIA, TAXONOMIA, ESTRUTURA (OP-341/2022). O autor inicia agradecendo a escrita de Manola Vidal (OP-338/2022), que versou sobre o livro de Elisabeth Roudinesco: “O Eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias”. Meyer defende que a mudança na taxonomia identitária em nada afeta o chamado “Império”. Segundo o autor: “A realidade se mantém, a mudança ocorre somente na aparência.”  Para ele não se altera uma infraestrutura agindo sobre a superestrutura. E diz: “Ao Império pouco se dá se passarmos a chamar de Vênus Calipigia a exuberante Bunda-de-Mulata”.

“Maria-sem-vergonha”, “Catinga-de-mulata”, “Malícia-de-mulher”, foram algumas das nomeações que a artista confrontou nos núcleos destinados a problematizar o machismo e o racismo. No OP estes temas estiveram presentes em outubro. Os direitos das mulheres em nosso podcast e as denúncias de racismo no show em Porto Alegre do cantor Seu Jorge motivaram a escrita de dois ensaios. 

“Cada mulher que está ouvindo o programa sabe da resistência em sua própria vida”, disse-nos a doutora Verônica Ferreira, nossa convidada do 4º episódio da 3ª Temporada do Mirante. O tema “Direito das Mulheres e Psicanálise”, da temporada sobre “Democracia e Psicanálise” também contou com a participação da psicanalista Juliana Lang Lima (SBPdePA), e a mediação de Beth Mori.  Um dos pontos destacados por Verônica Ferreira foi sobre a necessidade da compreensão da experiência feminista numa perspectiva ampliada. A democracia para as mulheres se faz nas ruas e também em casa. Na conversa, as lutas para a efetivação da igualdade, os desafios contemporâneos e os sofrimentos das mulheres foram explicitados. Para Juliana, o feminino na psicanálise é um conceito polêmico, e defende que a passividade possa ser compreendida como continência. Pontua que a relação da psicanálise com o feminismo é tensa, assumindo uma posição de soberba, como se a psicanálise não precisasse do feminismo. As duas ressaltaram a sexualidade feminina como um tabu, assim como a questão do aborto. Apesar dos preconceitos que turvam a compressão da importância do feminismo, a fala de Verônica traz uma iluminação sobre o que é ser feminista:  “é olhar para o mundo com força e alegria”. Oxalá, Verônica e Juliana, que assim seja!

Em “Racismo na Terra dos Lanceiros Negros” (OP-344/2022), Ignácio Paim (SBPdePA) aponta para “as singularidades do racismo à gaúcha – território de lembranças encobridoras.” Condensando os tempos em suas repetições o autor relembra e indaga se o que aconteceu no clube Grêmio Náutico União seria uma “reedição, na vida cotidiana, do massacre dos Lanceiros Negros?” Quem foram eles? Na História do Rio Grande do Sul, na Revolução Farroupilha, os Lanceiros foram combatentes negros assassinados por ordem dos comandantes brancos. Diz Paim: “Talvez devido ao fato que este cidadão, que ama a sua raça, ousou desafiar o lugar que estava destinado, desde a diáspora forçada da África, para si e para seu povo: o do subalterno.” Novamente a ligação da possibilidade da alegria em nosso país se dá na efetivação da justiça: “Tal intento requer tomadas de posição que signifiquem um trabalho coletivo em benefício de ações reparatórias pelos danos irreparáveis que o racismo praticou, e segue praticando, na vida da população negra.”

Fábio Brodacz (SPPA) no texto “Jorge e o Pacto – Breve reflexão sobre o Brasil de negros e brancos” (OP-343/2022)  afirma que “O negro é bem vindo na sociedade branca enquanto serviçal. Não precisa, nem deve, pensar. Basta cumprir o seu papel e ficar no seu lugar e assim vivemos todos em paz. A sociedade branca, comodamente servida pelo negro, não enxerga o racismo.” Reconhecermo-nos na branquitude implicará na percepção de um mal-estar que inevitavelmente surgirá no dia a dia. Na manutenção de um cubículo como quarto de empregada doméstica à ausência de negros em nossos consultórios e sociedades de psicanálise. Reconhecer os nossos privilégios brancos é o começo do caminho para assumirmos uma posição responsável diante do racismo. Será o primeiro passo para relatos inaugurais, para um amanhã receptivo a uma sociedade verdadeiramente inclusiva. 

Por quais caminhos pensar a utopia, imaginar a paz, torná-la realidade em nosso século? A médica Érika Pellegrino e a psicanalista Maria Elisabeth Cimenti (SBPA) compartilham experiências e possibilidades de futuro no 5º Programa da 3ª Temporada do Mirante, que tem como tema “Psicanálise e Direito à Segurança Planetária”. Nesse episódio a memória de tragédias ambientais e vivências pessoais são entrelaçadas. A fértil conversa entre Beth e Érika, mediada por Beth Mori, leva-nos como em uma viagem por territórios desconhecidos e inquietantes.  Altamira no Pará, os refugiados de Belo Monte, a escuta das famílias expulsas de seus lugares de origem, os jovens e os enfrentamentos em um mundo de incertezas, o lugar do psicanalista diante da iminência de um colapso ambiental e do sofrimento de populações vulnerabilizadas que não chegam em nossos consultórios. Foram muitos e relevantes os aspectos que nossas convidadas trouxeram. Entre eles há uma narrativa de Érika ao lado de uma Samaúma, a árvore-rainha da floresta. Talvez esse seja um começo para hoje, reaprendermos poeticamente a escutar a música do vento, a conversarmos com as árvores, a cultivarmos o respeito pelos animais. Quiçá celebrarmos novas alianças multiespécies. Conseguiremos? Utopia, eis a questão.

Para nós, psicanalistas, as transformações só estarão ativas se nos colocarmos nesse lugar de mudança. Reativando a nossa ancestralidade de escuta e como contadores de histórias. Como sonhadores. As linhas de convergência entre a prática psicanalítica e o processo artístico talvez sejam mais amplas do que imaginamos. Será nossa tarefa desenvolvermos uma ética e uma estética para o presente visando o futuro? Quem são os nossos parceiros? No podcast sobre a segurança planetária Beth Cimenti ressaltou o ativismo ambiental da juventude, representado na pessoa de Greta Thunberg. No filme Argentina, 1985 os dois promotores têm na juventude a sua base de apoio e trabalho. Para além de nossos consultórios, precisamos ampliar a escuta para o que dizem os jovens.

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva como o próximo presidente do país dará espaço a um pacto da empatia? É o que desejamos. Retornamos a Ney Marinho: “Nossas mesquinhas diferenças nos impediram de ver o risco que corríamos e a que expúnhamos nosso povo e país. Penso que uma verdadeira compaixão – sentimento que pede grande maturidade – possa aproximar-nos de atuais adversários, não como inimigos, mas como interlocutores. Deste diálogo poderá surgir verdades que não poderíamos alcançar falando somente com nossos iguais.” 

Rafaela Degani, Ian Favero Nathasje e Gabriela Seben (SBPdePA) formam o trio que cuida do Instagram, divulgam os ensaios publicados pelo Observatório Psicanalítico e os episódios do Mirante. Sigam-nos: @observatorio_psicanalitico 

Em outubro a terça cultural contou com os seguintes ensaios: “INTERVENÇÃO: o mar não quer dizer grande coisa (OP-71/2018), de Luís Carlos Menezes (SBPSP); “O aborto como um acontecimento feminino” (OP-327/2022), escrito por Juliana Lang Lima (SBPdePA); “A pele de Moise pelo avesso” (OP-249/2022), de Vanessa Corrêa e Gizela Turkiewicz (SBPSP). O nosso #tbt relembrou: “Viva la muerte, abajo la inteligencia! ou O eterno fascismo (OP-70/2018), de Ney Marinho (SBPRJ); “A estupidez vem à tona” (OP-107/2019), de Júlio Hirschhorn Gheller (SBPSP); “Ataques à imprensa, ciência, grupos sociais e instituições: aonde nos levará o bolsonarismo? (OP-144/2020), de Helena Daltro Pontual (SBPSP). 

Reiteramos que o OP está aberto à participação, como uma folha a aguardar palavras. Continuem a escrever, a escutar e falar no Mirante, a sonharem conosco. As histórias que contamos dizem quem somos e a verdade prevalecerá no teste do tempo. Um dia de cada vez, e avante para fazermos acontecer a utopia!

Equipe de curadoria,

Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Banksy: Flower Thrower, 2007.

Categoria: Editorial 

Palavras-Chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, Democracia, Utopia, Paz.

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Categoria: Editoriais
Tags: democracia | observatorio psicanalitico | Paz | Psicanálise | Utopia
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