Observatório Psicanalítico – OP 346/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

POR QUE A PAZ? “Compaixão e verdade”

Ney Marinho (SBPRJ)

Queridas Beth Mori e demais companheiras do OP, Ana, Daniela, Rafaela e Renata.

Escrevo em resposta ao seu pedido para falar sobre a Paz, uma vez que vocês sabem que sou um velho e, muitas vezes, solitário defensor do movimento pacifista. Vários motivos – saúde, excesso de compromissos, entre outros – me impediram de responder antes à sua honrosa solicitação. Mas, dada a gravidade da situação que vivemos, juntei forças para superá-los e dar meu depoimento que, espero, mobilize nossos companheiros da aventura psicanalítica.

A paz é um fator decisivo para que possamos construir uma sociedade igualitária, não racista, ou seja, capaz de romper com nossa herança escravagista, e sobretudo, pacífica, respeitosa dos direitos de todos os que a compõem, de forma a não serem coagidos a seguir padrões que lhe sejam estranhos. Somos vários. Isto é a nossa originalidade e alegria!

O Brasil é uma promessa! Respeitemos nosso sonho de ser um país do futuro. Neste momento de intensa polarização entre um passado que reluta em se retirar e um futuro que teme assumir seu papel, não há opção: ou o progresso, ou o retorno a formas de dominação insuportáveis que levarão … ao confronto! 

A luta pela paz agora é a proposta do diálogo, da conversa civilizada que permite o livre trânsito de todas as ideias, dos pensamentos selvagens, da busca do entendimento, do respeito às diferenças, do reconhecimento do outro como um irmão de quem podemos discordar, mas que o respeito mútuo garante que seja com fraternidade. Sei que tudo isto pode parecer piegas, tolo, perante um mundo sofisticado e cruel que pretensamente – melhor diria pretensiosamente – sabe como a banda toca. Poderia encher este breve texto com cifras, números, citações, mostrando que em nosso mundo de abundância há dinheiro de sobra para acabar com a fome e a desigualdade! Trilhões de dólares são, anualmente, gastos na manutenção de arsenais nucleares para garantir o status quo. Somas que poderiam ser destinadas ao desenvolvimento de países que foram secularmente saqueados pelas grandes potências. Nada impede que possamos construir um mundo baseado em novas formas de relação humana – talvez, esta seja uma importante contribuição da Psicanálise, que nasceu com os sonhos e com o sonho de um mundo melhor que permita o pleno exercício da criatividade. Utopia! Belo nome, pois, nosso país foi o inspirador da Ilha em que Thomas Morus – um homem para todas as estações – se inspirou para escrever seu emblemático livro, dedicado a Erasmo de Rotterdan (um de nossos maiores humanistas). Quais os conflitos que nos esperam? Não sei. Mas vale o convite à aventura humana, psicanalítica, que nos indica um novo mundo, um universo em expansão. 

Evidentemente, este texto não é fortuito. O convite não foi por acaso. Estamos às vésperas de uma decisão histórica: Civilização ou Barbárie? Deixo aqui o meu voto, que tem nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva, sobrenome, Alckmin. Lula conseguiu o que parecia impossível, unir uma ampla frente – Marina Silva, Simone Tebet, Amoedo, entre tantos outros – capaz de assumir o compromisso de reconstruir nosso país assaltado pelo que há de pior em nossa história: a desigualdade, a herança escravagista, o culto à violência, a desmoralização da política como forma de convívio civilizado.

Espero que minhas palavras sejam lidas como um depoimento, mais do que como discurso, e que levem os amigos e companheiros da aventura psicanalítica a pensar o mundo em que queremos viver e deixar para nossos filhos e netos. Já escrevi dois trabalhos sobre a paz – Guerra e Paz, a aporia freudiana – e A Paz, nossa neurose dos domingos, ambos publicados pela Trieb (Revista da SBPRJ), e pensava em abandonar o tema, mas a conferência A Cultura da Paz, do então Presidente da ABL, Marco Lucchesi, em nossa sociedade, me animou a continuar estudando e desenvolver o tema sob o ponto de vista psicanalítico. 

Espero sobretudo que as futuras gerações não passem pelo que passamos: ter nossos sonhos pisoteados num quartel da Polícia Militar, futuro antro de tortura e morte. Não estamos condenados aos horrores de repetições macabras, podemos romper com o ódio e construir um mundo para todos. Isto eles não conseguiram matar. Os sonhos são imortais, como nos lembra Derrida falando de Marx (in Espectros de Marx), porque são imateriais.

Os recentes episódios no Rio Grande do Sul, como o ato racista contra Seu Jorge e as declarações e incitações de um deputado psicopata a queimarem estudantes que protestavam em defesa da Universidade, são mostras da política de ódio que se instalou por este governo irresponsável e cruel. Precisamos ficar alertas, pois as ofensas verbais são o prelúdio, a história nos ensina, de atos hediondos. O racismo que o colonialismo cultivou, para muitos historiadores, foi o precursor dos campos de extermínio. Aproveito para me solidarizar com os colegas gaúchos – Fabio, Ignácio Paim, Claudio, Celso e tantos outros – que foram enérgicos e veementes em reagir a estes atos que procuram naturalizar a crueldade e ofendem a melhor tradição gaúcha libertária, a qual precisa ser resgatada.

Ao terminar este texto fui tomado pelo sentimento de não ter transmitido o que desejava e até por uma indefinida ingratidão ou injustiça. Depois de algum tempo, ocorreu-me a lembrança de vários amigos e companheiros que não estão mais presentes e que muito lutaram – durante os 21 anos de ditadura – lado a lado, dia após dia, pela redemocratização e a construção de uma sociedade para todos, um estado de bem-estar social. Contudo, não bastaria uma mera homenagem a esses heróis desconhecidos. Aos poucos me dei conta que estava também incluído nesta injustiça, tinha sido ingrato com minha geração e comigo mesmo, faltou-me compaixão! Lembrei-me da bela página de Bion, em Cogitações (seu diário intelectual), Compaixão e Verdade. De fato, todos nós somos responsáveis pelo estado de barbárie que vivemos, pela falta de humildade que tanto protelou a ampla frente que agora se forma. Nossas mesquinhas diferenças nos impediram de ver o risco que corríamos e a que expúnhamos nosso povo e país. Penso que uma verdadeira compaixão – sentimento que pede grande maturidade – possa aproximar-nos de atuais adversários, não como inimigos, mas como interlocutores. Deste diálogo poderá surgir verdades que não poderíamos alcançar falando somente com nossos iguais.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: Ney Marinho sendo “levado” para o quartel da Polícia Militar (março de 1965)

Categoria: Política e sociedade

Palavras-Chave: Paz, Civilização, Barbárie, Racismo, Colonialismo

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Tags: barbárie | civilização | Colonialismo | Paz | Racismo
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