Observatório Psicanalítico – OP  338/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Elizabeth Roudinesco e o (im) possível diálogo entre a psicanálise e os estudos de gênero.

Manola Vidal – membro convidado da SBPRJ 

A partir da compreensão de que o conhecimento é construído através do diálogo entre pares sobre diferentes posições,  pergunto-me como a psicanálise brasileira poderia dialogar com as teorias de gênero a partir do impacto e mal-estar, sofrido por alguns, com a recente publicação por Elizabeth Roudinesco do livro “O eu soberano: Ensaios sobre as derivas identitárias”. 

Mesmo não sendo gênero um conceito trabalhado no corpo da teoria psicanalítica, encontra-se na clínica de forma a provocar um posicionamento que problematiza a pretensão de uma neutralidade e coloque o psicanalista nas questões de seu tempo. O conceito da identidade igualmente não possui na  psicanálise uma existência própria, ou seja, não possui um aporte teórico, pois o sujeito da psicanálise não existe a priori, está sempre aberto a novas identificações, é sempre a posteriori que se constitui. Desta forma, a autora se refere tanto à interseccionalidade que utiliza do conceito de gênero enquanto categoria de análise, quanto às políticas identitárias como premissas de um projeto fundamentado na abolição da diferença anatômica e biológica dos sexos, isto é, da abolição não só da dicotomia natureza e cultura, mas de todo o projeto iluminista do qual aproxima Freud. Convoca, no quadro do Estado de Direito, que ao projeto de coerção identitária seja imposto um limite severo.

Construir um posicionamento em relação a uma psicanalista francesa, historiadora, cuja produção intelectual é reconhecida mundialmente impõe constrangimento. Ultrapassar este constrangimento somente é possível acreditando que os recursos da própria psicanálise podem ser utilizados no diálogo com diferentes campos do conhecimento. Desta forma, podemos dissipar as ilusões que se dissimulam na colonialidade, principalmente através da transcendência que, de um lugar fora do universo, paradoxalmente se pretenda julgar universalmente. Tal qual a ilusão do universalismo europeu contido na produção das subjetividades colonizadas.

A partir do pressuposto que a teoria da sexualidade para a psicanálise e a teoria de gênero para a sociologia se originam em campos de conhecimento distintos, não podendo ser igualados, temos que o diálogo se torna necessário justamente a partir das questões sobre a identidade e a interseccionalidade. 

Roudinesco aborda a questão da identidade através do paradoxo trazido pela imagem mítica do barco de Teseu, que partiu de Atenas rumo a Creta e que teve suas peças substituídas durante o percurso. A troca das peças nos apresenta um paradoxo sobre se o navio que chega a Creta é o mesmo que partiu de Atenas. Roudinesco utiliza este mito realizando uma analogia entre os excessos da inflação identitária e as peças do navio que ficam à deriva no mar. As derivas identitárias seriam consequência, por um lado, de um esvaziamento do coletivo social que territorializou os sujeitos através da segmentação pela raça, sexo, gênero e etnia, e por outro, pela submissão da psiquiatria à esta liberdade emancipatória. Neste sentido, iguala a descriminalização da homossexualidade e as lutas emancipatórias (antirracistas e feministas) em sua compreensão do coletivo de minorias que compõe o excesso identitário.

Intrigante também é sua compreensão sobre o que denomina como sendo uma mutação do transexualismo em identidade transgênero, ou transidentidade. Esta mutação teria sido possível pela despsiquiatrização da homossexualidade, efeito de uma submissão demagógica à pressão de grupos identitários e uma tentativa de reparação da incúria de sua localização como “significante maior” de todas as perversões. 

A partir da década de 1970, as noções de transtorno (disorder) e de disforia (mal-estar, sofrimento), engendrariam o que na década de 1990 seria uma explosão de infinitas variações identitárias decorrentes da criação de doenças imaginárias. A espantosa expansão das nomenclaturas psiquiátricas teria produzido como resposta uma vasta proliferação dos estudos identitários. A partir desta consideração, Roudinesco exemplifica determinada transformação do diagnóstico do transtorno de personalidade múltipla. Caracterizada pela coexistência, num mesmo sujeito, de várias personalidades separadas umas das outras, cada qual assumindo alternadamente o controle das maneiras de viver do indivíduo, teriam sido as mulheres mais frequentemente diagnosticadas com este transtorno na década de 1970. Porém, segundo a autora, na década de 1980, e mais ainda na de 1990, se constatou sua proliferação que, com o passar do tempo, foi sendo transformada de patologia à reivindicação identitária. O transtorno de personalidade é substituído pela questão do gênero em sua relação com a opressão masculina. As mulheres não seriam mais diagnosticadas pela psiquiatria, mas seriam vítimas da opressão masculina patriarcal. Tal derrocada da psiquiatria permitiu que fossem transformadas em identidades múltiplas as orientações sexuais vistas outrora como patologias e, consequentemente, o gênero transformou-se num conceito maior, com o objetivo não somente de esvaziar a diferença entre os sexos (no sentido anatômico), mas também de redefinir todos os tipos de disposições sexuais, sociais e políticas.

 A interseccionalidade, outra possibilidade de construção do diálogo, se refere a interdependência entre as categorias de raça, gênero e classe social e, em sua metodologia, utiliza frequentemente das histórias de vida. 

No subtítulo “disseminando o Gênero”, do capítulo 2, Roudinesco se aproxima de duas questões: as políticas de inclusão e o que denomina como pedagogia queer, em que ambas recebem um tratamento semelhante. Acredita que com a aparição dos disability studies, a noção de espécie humana teria sido desconstruída por uma retórica identitária que nega a biologia ao afirmar que toda diferença nada mais é que uma identidade socialmente construída e subjetivamente vivida como discriminação. Denuncia que o ideal da inclusão seria contrário às conquistas científicas da medicina, ou do direito social ao aborto. Afirma que o mundo maravilhoso da felicidade identitária estaria mais próximo ao pesadelo de não se reconhecer as tragédias biológicas como tragédias. Um mesmo retrocesso seria o da educação queer, definida pela autora como uma prática de esconder das crianças seu sexo anatômico, explicando que desta forma poderiam escolher seu gênero. 

Podemos observar neste momento, a criação, de uma caricatura pedagógica através da qual o objetivo seria “tratar as crianças como imbecis e encher suas cabeças de sandices”. Tanto a inclusão das deficiências, como a pedagogia quer, negariam a biologia da espécie humana através de um apocalipse identitário com histórias de vida que não cessariam de valorizar a vivência de vítimas, promovendo uma espécie de catecismo. Atribui tais prevalências – a de inclusão das deficiências e do gênero sobre o sexo – a manifestações de reivindicações coercitivas que transformaram os movimentos emancipatórios em seu oposto.

Sabemos que Roudinesco não está só. Estudos que realizam levantamentos na mídia francesa sobre movimentos políticos de extrema direita reacionária demonstram a construção da imagem de uma ameaça transidentitária, epidêmica, a partir da utilização da transfobia como uma arma de pânico moral. O uso político da relação entre as transidentidades na infância-adolescência utilizou filmes como “La nouvelle vie de Stella et Alex”, “Pettite Fille” e “Il est ele”, que são instrumentalizados de forma sensacionalista para a disseminação da ideia de existir uma ideologia de encorajamento da transição. Assim, o Manifesto para Todos (La Manif Pour Touts), através de seus representantes, se posicionou na mídia francesa afirmando, dentre outras coisas, que as transidentidades não são um fato biológico ou científico, mas uma ideologia disseminada por ativistas que busca converter o maior número possível de pessoas, e como tal não tem de ocupar um lugar nas escolas. 

Assinando este manifesto estão o Observatório dos Discursos Ideológicos sobre gênero na infância e adolescência (L’observatoire de la petite sirene), e a associação Juristas pela infância (Jourists pour l`enfance). Publicações como La fabrique d Lénfant- transgenre de Eliacheff e Masson e La dysphorie de genre, de Melman e Lebrun, contribuem para o trabalho deste Observatório no combate à ideologia de gênero e reversão ou retirada dos direitos sociais e políticos da população LGBTQI+. O excesso identitário seria então um fenômeno de arregimentação ideológica se opondo ao direito à autodeterminação.  

Assim, a teoria de gênero, confundida com a ideologia de gênero, termo cunhado pelo Vaticano por ocasião da inclusão da categoria de gênero na quarta conferência mundial sobre a mulher, produz semelhanças que não são mera coincidência. No Brasil atual, projetos vinculados ao Programa Escola sem Partido entendem  a ideologia de gênero como uma ideologia antifamília, uma tentativa de transformar os jovens em gays e lésbicas.

O livro de Roudinesco nos oferece mais uma posição pessoal, se destacando de suas outras publicações, do que uma obra histórica ou psicanalítica. Neste sentido, nos permite reconhecer que contêm, em sua proposta, uma impossibilidade de a psicanálise dialogar com as teorias de gênero a partir dos conceitos de interseccionalidade e identidade.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Cultura

Palavras-chave: Derivas Identitárias; Elizabeth Roudinesco; Teorias de Gênero

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Categoria: Cultura
Tags: Derivas Identitárias; Elizabeth Roudinesco; Teorias de Gênero
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