Observatório Psicanalítico – OP  336/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

O que é democracia?

Luís Carlos Menezes – SBPSP

Sobre o podcast Mirante do Observatório Psicanalítico voltado para esse tema, com a participação do cientista político Luiz Felipe Miguel e da psicanalista Cecília Orsini, coordenado pela Beth Mori.

Escrevi, no calor do momento, uma mensagem para a Cecília, que fez a gentileza de me enviar na hora mesmo esse podcast. Estimulado por ela e pela Beth, o estou enviando para o OP, como uma participação ao vivo nessa animada e sofisticada conversa entre eles.

Olá, Cecília, muito bom ouvir vocês: se a democracia é um processo, ouvi-los foi vê-la acontecendo, sendo praticada com lucidez, sensibilidade e inteligência. Admirei sua maneira fluente e clara de pensar e de se exprimir. Acompanhei com muita sintonia com vocês e, na sua fala, destacou-se para mim a crítica contundente à análise regulamentada na formação de novos psicanalistas e a maneira como você usou, com muita pertinência e sagacidade, a concepção psicanalítica do desamparo em diferentes frontes sociais  que vêm avançando em nossas sociedades na Europa, nos EEUU e na América Latina: o já secular combate tanto pelos direitos civis das mulheres, como pelo respeito devido a elas e à sua sexualidade nos costumes, nas mentalidades; as muitas dimensões do racismo que vamos descobrindo à medida que avançamos; o reconhecimento social da diversidade de orientações sexuais e de identidade de gênero e… a grande questão das imensas e terríveis desigualdades sociais resultantes da divisão do trabalho e dos ganhos.

Essa percorre a história da humanidade, mas tomou contornos próprios como objeto de questionamentos fundamentais desde os séculos XVIII e XIX, com as grandes revoluções sociais de cunho humanista e centradas na formidável mudança do ritmo e das modalidades de expansão econômica do que saltava aos olhos de todos, encantados ou revoltados, sob o nome de capitalismo. Estávamos na era industrial, era a nossa modernidade e o nosso tempo, com seus grandes avanços na capacidade produtiva, carecendo, no entanto, de progressos na distribuição dessa grande e crescente riqueza que vai sendo disponibilizada.

Os ganhos materiais inclusive de bens de primeira necessidade como a alimentação, vestuário, capacidade para construir habitações com água potável e esgotos, possibilidade de aprendizado compatível com o patamar de conhecimentos em que nos encontramos, são largamente suficientes para todos e, no entanto, persiste a pobreza em grande escala, incluindo populações em condição de miséria extrema, às quais faltam alimentos no dia a dia, como temos visto em nosso país, o que é inacreditável e inaceitável em meio a tanta abundância!

Fui sensível também ao que disse, no início, o Luiz Felipe, referindo-se a Althusser, sobre a possibilidade de se pensar ideologias como matrizes ou sistemas referenciais possibilitadores de pensamento e, mais adiante, mencioná-las, ao contrário, como portadoras de pensamentos prontos, dando às coisas sobre as quais se trata de decidir nas percepções que possamos ter no campo da vida social e política, um sentido pré-estabelecido, que, entendo, é até limitante ao primeiro sentido, sendo favorecedor de conformismos às coisas como elas estão ou aos discursos que se tornem limitadores de pontos de vista diversos. 

A meu ver, é importante manter, no mínimo, essas duas versões de ideologia, assim como a possibilidade de poder transitar entre elas.

A segunda versão estaria no terreno do que Freud discute sobre o tema das Weltanschaung (visões de mundo), com destaque, para o seu conceito, importantíssimo para mim, de Denkverboten, algo como “proibição de pensar”, operante automaticamente quando, em nosso pensamento, nos aproximamos de qualquer percepção ou ideia que tenha a ver com um terreno de realidades que comporte qualquer dúvida ou questionamento para determinada certeza intocável dos que partilham da mesma visão de mundo. Por exemplo, a angústia do crente ao se aproximar de qualquer consideração que possa pôr em dúvida a divindade que se encontra no centro do sistema de crenças de sua comunidade religiosa, o mesmo acontecendo quando o que estiver em questão for um sistema fechado de premissas de um discurso ou de uma comunidade política.

Sou de opinião que mencionar, num tom de descaso, as democracias atuais como “liberal burguesas”, incluindo aí a nossa, no Brasil, democracia tão maltratada e objeto de ameaças cotidianas nesses quatro anos, felizmente, ao mesmo tempo defendida pela grande maioria da população, penso que esse descaso na qualificação da democracia merece cuidado.

Eu, pessoalmente, convivo com isso – o descaso – há uns bons sessenta anos e, de fato, as agruras, os absurdos da realidade social antes mencionados, a desconsideração gritante com o bem público na gestão do Estado, o cinismo e a insensibilidade dos dirigentes são revoltantes em nossa democracia, mas sei a diferença enorme, digo enorme, quando ela cessa da noite para o dia, como vi acontecer, aos dezenove anos. 

Essa belíssima discussão que vocês fazem aqui e que vem acontecendo de outras formas por toda parte, com avanços valiosíssimos no sentido de reduzir o sofrimento de muitos e de trazer avanço social, simplesmente poderia não estar ocorrendo, senão na clandestinidade, abafada e com alto risco para seus participantes: é assim quando os direitos do cidadão são suspensos. O “processo democrático” para!

E sei que, na nossa democracia, há uma grande parte das pessoas que continua sendo maltratada pelo Estado, ou mesmo sofrendo assassinatos frequentes pela violência social, tanto pelo banditismo ao qual estão expostas como pelas forças policiais, quando estas intervêm descuidadamente contra a população pobre, policiais que são desse mesmo meio social. Mas, ao menos isto é divulgado constantemente, há movimentos políticos que tomam corpo, há espaço para a ação política. Tudo está por ser feito, mas sem democracia, fica bem mais difícil, bem difícil!!

O mesmo vale para os regimes pretensamente de “esquerda”, como os tiranos – à exemplo de Daniel Ortega, na Nicarágua, que, há algumas décadas, foi guerrilheiro contra a opressão social, ou como as burocracias ditatoriais hegemônicas, totalitárias, que constituem grande parte da tragédia política do século XX a nunca serem minimizadas. Não vejo em que a covardia do pensamento que evita de pensá-las e de se interrogar sobre elas seria diferente do negacionismo dos massacres nazistas.

Sejamos tenazmente críticos com os descaminhos, em todos os níveis de nossa realidade com suas profundas chagas sociais, em “nossa democracia”, tratada de “meia democracia”, mas não a percamos em nome do que se apresente como uma “democracia total”.

Melhor ficarmos com a formulação de Luiz Felipe de que a democracia é um processo. Que nada o interrompa! Como conquista recente da civilização só existe numa minoria de países. Nada a garante a priori.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: Democracia, Capitalismo, Desigualdades sociais, Tiranias, Cidadania.

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Tags: Capitalismo | Cidadania | democracia | Desigualdades sociais | Tiranias
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