Observatório Psicanalítico – OP – 328/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Um país em guerra 

Sylvain Levy (SPBsb) 

No Brasil, cinco indivíduos detém mais renda e posses que 100 milhões de pessoas, cerca de 50% da população. No planeta Terra, 300 bilionários têm mais dinheiro que um conjunto de três bilhões de pessoas em todo mundo, e mais recursos que o PIB de 60% dos países. 

Isso não responde à pergunta “para que servem os bilionários?”, mas coloca um outro olhar sobre a violência no mundo. Que mundo é esse? Que mundo é esse que submete mais da metade de seus habitantes a situações de fome, pobreza, miséria e privações de toda natureza? 

O Brasil é o país que mais comete homicídios em todo o mundo. A liderança desse trágico ranking é sustentada por indicadores assustadores: em 2015, o país registrou 59.080 assassinatos, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade do governo federal. Ou seja, a cada dia mais de 160 pessoas foram vítimas de homicídios dolosos (com intenção de matar), de latrocínios (roubos seguidos de morte) e de lesões que acabam em morte. 

Para termos uma noção mais precisa da gravidade desses dados, em 2015 foram assassinadas no Brasil 15 vezes mais pessoas do que o total de mortes em 559 atentados terroristas ocorridos no mesmo ano: 3.830 pessoas, segundo a organização Peacetech Lab. Se considerados os dados de 2011 a 2015, foram assassinadas no país mais de 270 mil pessoas, total equivalente ao de mortes da Guerra na Síria no mesmo período. 

Essa violência nossa de cada dia está presente nos atos de racismo e sexismo, de perseguição aos diferentes, de feminicídio e de violência policial crescente. 

O Brasil tem vários mitos. Dos mais conhecidos,  “Deus é brasileiro” e “o brasileiro é um homem cordial”. Entretanto, esse mito do brasileiro como ser cordial pode ser contestado com a sociologia, com a história e com as estatísticas. 

Ao brilhante Sergio Buarque de Holanda é atribuída a expressão “homem cordial”, como a significar um comportamento padrão do brasileiro. Na verdade, essa concepção dos brasileiros nasceu de elogios de estrangeiros a virtudes como hospitalidade e generosidade, e credita-se a Ribeiro Couto, diplomata brasileiro na França, em carta de 1931, a primeira ideia a respeito. 

Em “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, Buarque de Holanda adotou a expressão como representativa de “um traço definido do caráter brasileiro, na medida em que permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano”. O “homem cordial” é, segundo essa definição, “a forma natural e viva que se converteu em fórmula”. No entanto não é justo associar a ideia do “homem cordial” a um comportamento de cordialidade como padrão nacional. Sergio Buarque acredita ser um sentimento existente no brasileiro, mas não como um comportamento, pois essas virtudes não são sinônimos de bons modos, muito menos de bondade ou amizade. No fundo, a nossa forma de convívio social é “justamente o contrário da polidez”. Ou seja, a atitude polida equivale a um disfarce que permite cada qual preservar sua sensibilidade e suas emoções e com essa máscara, “o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”. 

Em 2020, ano com as estatísticas mais recentes divulgadas pelo DATASUS do Ministério da Saúde, dos 1.556.824 óbitos que ocorreram no Brasil, 146.038, ou 9,3%, foram devido às chamadas causas externas (trânsito, acidentes, suicídios, agressões, etc) e dessas, 47.761 foram classificadas como agressões ou homicídios, ou seja, 3,5% do total geral de óbitos no país. Em apenas um ano, 33.994 dessas mortes foram ocasionadas por armas de fogo. Entretanto, essas estatísticas merecem um fator de correção, posto que em 2020 ocorreram 213.331 mortes por doenças viróticas, enquanto que em 2018, último ano sem pandemia, foram apenas 137 óbitos por viroses. Com essas correções de rota os dados de 2020 ficam muito próximos daqueles de 2018, correspondendo com o esperado crescimento vegetativo da população. 

Esses números da violência vêm decaindo ano após ano, mas não resta dúvida que ainda são abjetos. A título de comparação pode ser lembrado que os Estados Unidos, em todo período de guerra no Vietnã – de 1959 a 1975, perdeu pouco mais de 58 mil soldados.

Pesquisando por dentro dos números, constata-se que 2188 destas mortes foram classificadas como “Intervenção legal”, que tem até CID: Y 35. Num país que não tem pena de morte, matou-se mais que os Estados Unidos e a Inglaterra, aonde existem essa punição. Mas talvez o mais degradante seja verificar que 2049 brasileiros morreram, em 2020, por falta de alimento e excesso de privações. 

Vocês já ouviram falar na Guerra dos Bárbaros, entre índios e portugueses, ocorrida na Paraíba e Rio Grande do Norte? Na Revolta de Amador Bueno, em 1641, em São Paulo, ou na Revolução de Beckman, dos comerciantes no Maranhão, em 1684/85? 

Houve a Conspiração dos Suassunas, em Pernambuco, e outras mais conhecidas, como a Cabanagem, no PA, a Sabinada, na BA, a Revolta dos Vinténs, no RJ. A lista de guerras, lutas, levantes e rebeliões populares e sociais no Brasil alcança mais de cem ocorrências dessa natureza, do século XVI ao XX, das quais apenas 14 são guerras internacionais, contra inimigo externo. 

A história do Brasil é rica em eventos violentos fratricidas de brasileiros contra brasileiros, indígenas e portugueses. Circunstâncias que a educação escolar teima em esconder, orientada, quem sabe por quem, a divulgar o mito do brasileiro como homem cordial. 

O violento homem nada cordial que habita cada um de nós brasileiros pode servir de pista para entendermos os avanços de popularidade e de aceitação que vão marcando o governo e a pessoa de Jair Bolsonaro. A agressividade e violência intrínsecas e introjetadas em cada um de seu próprio jeito, leva parcela da população a se identificar com o presidente e com tudo que ele representa. 

Esse país está em guerra consigo mesmo e não se sabe o que fazem os bilionários e os outros grupos de elite para trazer alguma mudança a essa situação. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Concentração de renda, Brasileiro cordial, Mortalidade, Violência, Identificação 

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Tags: Brasileiro cordial | Concentração de renda | identificação | Mortalidade | violência
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