Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
O aborto como um acontecimento feminino
Juliana Lang Lima (SBPdePA)
O tema é antigo, a discussão tampouco é recente. Volta e meia, lá está a questão para ser colocada na mesa novamente: podem as mulheres decidir sobre seus corpos? Para responder a essa pergunta, são usados argumentos de todos os tipos, dos religiosos aos moralistas, a maioria recheado de boas intenções. Acontece que nós, analistas, temos por ofício, além da escuta, levar a peste por onde passamos, como nos alertava Freud. Assim sendo, temos a responsabilidade do debate e da desconstrução. Tentemos, então, buscar uma visão específica sobre esse assunto: a das mais interessadas.
Em seu livro recentemente lançado no Brasil, Annie Ernaux define o aborto que realizou na juventude como “o acontecimento”. Em uma narrativa intensa, somos conduzidos ao sombrio que acompanha esse tipo de decisão, aos sussurros que recobrem as confidências, às fantasias que restam como sequelas psíquicas pós procedimento. Dentre as marcas que o aborto possa ter provocado na autora, é notável que ela pareça, por alguns momentos, se explicar por escrever sobre essa experiência, talvez pelo receio de considerá-la por demais visceral, imprópria para a boa literatura. Esse sentimento, inclusive, parece comum às mulheres que provocaram a interrupção da própria gravidez: para além do alívio (inconfessável) a necessidade da justificativa (ineficaz). Posturas incitadas pelo tribunal formado pelo cidadão de bem, que está sempre a postos para avaliar e classificar as atitudes das mulheres.
Voltemos, então, ao acontecimento, significante que exprime algo significativo, quiçá inesperado, indubitavelmente marcante. Um acontecimento difere de uma ocorrência. Nada fortuito, esse específico, o aborto, estigmatiza de forma perene aquela que a ele recorre. Não necessariamente pela dor, e certamente não só por ela, mas descontinuar uma gestação torna uma ausência para sempre presente.
É bom lembrar que tanto na França de 1963, local onde a escritora efetuou a interrupção de sua gravidez, como no Brasil de 2022, o aborto é proibido por lei, salvo raras exceções. Assim, aquela que antecipa de forma voluntária o fim da própria gestação é, diante da lei, uma criminosa. Nesse processo no qual insegurança, medo e culpa costumam andar de mãos dadas, a mulher carregará as consequências da violação de um tabu – se não no corpo, na alma.
No documentário “Clandestinas”, Renata Correa apresenta depoimentos de mulheres que abortaram, mesclando anônimas e famosas, com o intuito de demonstrar que estas são pessoas normais, vizinhas, amigas, colegas de trabalho… Ao descortinar o assunto, dando-lhe voz e vez, a roteirista convoca a uma discussão não permeada por um viés moralista, lembrando ainda que existem muitas diferenças dentro da clandestinidade para aquelas que provocam o aborto, do Cytotec à agulha de tricô, com direito a clínicas particulares cujos valores cobrados se aproximam a 10 salários mínimos.
De forma geral, aquela que aborta escandaliza a sociedade por trazer notícias de uma sexualidade profana, desvinculada da tarefa reprodução. O horror que o direito ao aborto provoca é amigo íntimo da idealização que se direciona às mães, ambos alimentados pelo temor infantil da rejeição. Afinal, se as mulheres abortam, e assim o fazem desde que o mundo é mundo, isso significa que há filhos que não são desejados. Ora, se nem todo filho é um alecrim dourado, vá que minha mãe também não tenha me querido tanto assim. Se ela pudesse interromper legalmente a gestação, será que assim o teria feito?
A escritora Rebeca Solnit, uma das fortes vozes feministas da atualidade, coloca ainda mais lenha nessa fogueira e aposta que manter o aborto na ilegalidade é uma ferramenta de manutenção de poder por parte dos homens, que gozam do privilégio da não gravidez, usando-o como instrumento de ganhos no mundo do trabalho. Afinal, sobre uma mulher em idade fértil sempre há de pairar a dúvida: e se ela resolver engravidar? (Ecos do capitalismo retumbam: como ficará sua produtividade após o advento da maternidade?)
E, com isso, voltamos ao início desse texto e ao direito de decisão das mulheres sobre seus corpos. Nesse ponto, recordamos a provocação de Spivak, “Pode o subalterno falar?”, ao que ela mesma responde que não, pois não encontra meios se se fazer ouvir. A saída? Que a mulher possa, de uma vez por todas, deixar esse lugar. E o patriarcado? Ah, ele vai cair!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e Sociedade
Palavras chaves: Gravidez, Aborto, Interrupção da gravidez, Corpo da mulher, Vozes feministas
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