Observatório Psicanalítico – OP – 326/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Adeus a um amigo da psicanálise

Sergio Paulo Rouanet (1934-2022)

Ney Marinho – SBPRJ

Sergio Paulo Rouanet foi um escritor, filósofo, tradutor, diplomata, político (autor da Lei Rouanet, que nos ajudou a sair dos 21 anos de obscurantismo a que a ditadura nos condenou), acadêmico (membro da ABL) e … um grande amigo da Psicanálise. Foi uma pessoa vocacionada para a amizade, o entendimento, a tolerância, para todas as condições necessárias ao exercício da curiosidade intelectual, o que acima de tudo cultivava. 

Nesta breve homenagem de despedida, pretendo apenas dar um depoimento da satisfação que sempre tive em ouvi-lo, conversar e trabalhar com um verdadeiro intelectual, simples e curioso, apenas comprometido com a verdade. Sua experiência de análise pessoal foi fundamental, pelo que depreendi de suas discretas confidências, para uma relação profunda, afetiva e, sobretudo, de gratidão para com Freud e a Psicanálise. 

Li boa parte de sua vasta produção e gostaria de destacar alguns textos que julgo exemplares para ilustrar – bela palavra para um herdeiro da ilustração! – sua erudição e consistência na defesa de um humanismo, por muitos desprezado como obsoleto, mas, acredito que em vista do mundo que vivemos por demais atual, pelo menos como uma promessa de dias melhores. 

Rouanet, em nosso ambiente intelectual, foi um dos primeiros – ou pelo menos o mais veemente – denunciador do perigo da barbárie que se prenunciava. Seu ensaio: Iluminismo ou Barbárie, in Mal-Estar na Modernidade (1993), é profético. A rigor, nenhum de nossos pensadores falou com tanta clareza que tudo aquilo que pensávamos pertencer ou caminhar para um triste e obscuro passado – o racismo, a discriminação social, o ataque à mulher, à criança e … à cultura – poderia retornar com cruel força. Rouanet, ao contrário do que muitos podem pensar, não via a defesa da razão como um mero exercício cultural, erudito, saudosista, mas como a melhor trincheira de um profundo humanismo. Rouanet, e este é o ponto que desejo sublinhar nesta homenagem póstuma, era antes de mais nada um humanista. Tal afirmação pode despertar inúmeros questionamentos, dada a polêmica que cerca o termo humanismo. Mas acredito que posso prosseguir sem maiores esclarecimentos senão o depoimento pessoal e a referência à produção deste formidável intelectual que nos deixou com uma vasta obra, sempre voltada para a promessa, a visão, a busca de um mundo capaz de abrigar uma humanidade que ainda não se realizou. Rouanet não era um ingênuo e, como admirador de Freud e da Psicanálise, sabia tanto da criatividade como da destrutividade do ser humano. Contudo, como o criador da Psicanálise, nunca deixou de oferecer ideias, pensamentos, reflexões capazes de promover projetos, criar utopias (por que não usar esta tão mal vista palavra?). 

Nosso primeiro contato mais íntimo foi quando, como presidente, organizei um grupo de trabalho para estudar a Crise da Psicanálise, em nossa sociedade (SBPRJ), composto também por Leandro Konder, Wilson Lira Chebabi, Osvaldo Costa Rego e Roberto Martins. Leandro era um amigo em comum, ao qual Rouanet dedicava grande admiração – no que era correspondido, pois ambos, profundos conhecedores de Marx, dialogavam com grande fluência. Embora Rouanet não fosse um marxista, não escondia sua enorme admiração pelo filósofo, tendo produzido um formidável livro – Teoria Crítica e Psicanálise – sobre o diálogo dos primeiros psicanalistas e os filósofos marxistas da Escola de Frankfurt, preocupados com a barbárie nazista que se aproximava. Do nosso grupo surgiram vários trabalhos, alguns publicados na RBP (vol. XXXI) – Crises, Psicanálise (1997) – em rico debate com a colega Liana Albernaz. Sua participação em nossas atividades científicas foi frequente, tornando-se também, juntamente com sua esposa (a filósofa Bárbara Freitag), muito amigo de Luiz Fernando Gallego, nosso colega e crítico de cinema que sempre o convidava para os debates culturais. Sua aceitação era imediata, como sua generosidade em oferecer uma rica erudição sobre qualquer tema que se apresentasse. Uma frase sua desta época me chamou a atenção: “ … não temo pelo futuro da psicanálise, quando vejo tantos analistas, neste sábado de sol, no Rio de Janeiro, discutindo psicanálise com tanto entusiasmo e paixão” (frase semelhante ouvi, anos mais tarde, de Claudio Eizirik ao ver, no Congresso da FEBRAPSI em Campo Grande, a verdadeira multidão que lotava atenta o anfiteatro até tarde).  Sim, o racionalista Rouanet era movido pela paixão. 

Teria outros encontros para relatar, mas ficam para futuras memórias, embora não possa deixar de mencionar o último. 

Tratava-se do Congresso de Fortaleza (2017) quando, em atividade preparatória no Rio, planejei a ida de Rouanet para uma conferência – não sabia ainda da cruel doença que o acometera. De imediato aceitou, mas pediu que escolhesse um de seus trabalhos para alguém comentar; mencionou alguns, deixando à minha escolha. Fernanda e eu escolhemos: “O impacto da psicanálise na cultura e da cultura na psicanálise” (in Interrogações, Tempo Brasileiro: 2003), que Daniel Delouya comentou no evento programado. Lembro-me que, por ocasião do convite, conversei longamente com Bárbara, que estava estarrecida com a eleição de Trump, recordando sua infância na Alemanha pós nazismo, pós guerra, pós … tudo. O casal estava sempre atento ao mundo, aos perigos que nos cercavam, principalmente os que nos pareciam tão distantes. Isto é humanismo! 

Não poderia encerrar esta breve homenagem sem uma lembrança e uma, talvez desnecessária, reflexão – que  estimo que possa ser útil para os nossos colegas mais jovens.

A lembrança: quando, por iniciativa de Pedro Gomes (então presidente da SBPRJ), organizei nosso primeiro encontro com os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), no Instituto  de Psiquiatria da UFRJ, pedi a Rouanet que me indicasse um nome da ABL que pudesse expor o tema CPLP e, em especial, dar uma visão da África, tão desconhecida por nós, brasileiros, apesar de toda nossa herança. De imediato Rouanet me apresentou a quem considerava nosso maior africanista: Alberto da Costa e Silva. Foi um presente que nos deu. Um intelectual de seu nível, movido também por paixões, entre elas, a da nossa herança africana. 

Quanto à reflexão que me ocorreu ao pensar em escrever sobre Rouanet, e pela forte emoção com que recebi a notícia de sua morte, pode parecer banal, intelectual, ou óbvia. Contudo, gostaria de registrá-la: indaguei-me sobre o que nos aproximava como, da mesma forma que em certa ocasião, aproximou-nos o tema Razão e Psicanálise no pensamento de Maria Emilia Steuerman – autora de um marcante livro sobre a Racionalidade em Melanie Klein, de Marcia Cavell e de Wittgenstein, no acolhedor ambiente do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, com Danilo Marcondes, Luiz Carlos Pereira e o saudoso Carlos Alberto Gomes dos Santos, durante o meu doutoramento. 

Tenho a impressão de que é algo mais do que a busca de uma racionalidade. Não me refiro às caricaturas que banalmente fazem da racionalidade iluminista, positivista ou outras tantas. Mas, pergunto-me, o que pensadores, tão diferentes e rigorosos como Rouanet ou Wittgenstein, buscam? Não sei, mas a melhor resposta/conjectura que encontrei foi em um comentador de Wittgenstein – James Edwards – que, após uma longa e minuciosa investigação da busca por um sentido na vida – este seria o principal objetivo de Wittgenstein segundo Edwards -, chega à conclusão que somente o amor é capaz de sobrepujar a vontade e permitir “ … a profunda compreensão humana como um ato de graça, não um triunfo heroico”. 

Sempre saí dos encontros com Rouanet enriquecido, não de conhecimento ou erudição, embora estivessem sempre presentes, mas de um contato humano realmente amoroso, voltado para o que há de melhor em todos nós: a capacidade de amar, de se apaixonar por uma causa, uma ideia, um companheiro/a E, certamente, pela humanidade que existe em cada um, mesmo em nossos adversários.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Homenagem

Palavras chaves: Rouanet, Razão, Filosofia, Psicanálise, Humanismo

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Categoria: Homenagens
Tags: Filosofia | Humanismo | Psicanálise | Razão | Rouanet
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