Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Ideologia de gênero?
Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ)
Já nos orgulhamos de estar no topo da lista do futebol mundial. No Brasil de 2022, nossos recordes são outros e nos causam vergonha. Dentre eles, o de sermos o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Em 2021, foram 140 assassinatos de pessoas trans. Deste total, 135 tiveram como vítimas travestis e mulheres transexuais e cinco vitimaram homens trans e pessoas transmasculinas.
A recepção que a filósofa Judith Butler teve, ao desembarcar em S. Paulo, em 2017, por parte de grupo de extrema direita, prenunciava o que estava por vir, no país inteiro, de forma avassaladora, neste e em outros campos: a intolerância, o desrespeito, o extermínio de tudo que não se ajusta a uma forma única e totalitária de pensamento.
O aumento da violência contra a população trans foi anunciado, em 2019, com a exclusão da população LGBT da estrutura organizacional do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo atual e com o ataque sistemático ao pensamento crítico das teorias de gênero. “O que está posto é uma disputa política de quais identidades de gênero e sexuais têm direito à existência, quais serão objeto de politicas públicas. De certa forma, é um tipo de reedição dos debates que marcaram a história do Brasil sobre quais sujeitos merecem habitar o Estado-Nação, quais serão objeto de cuidado pelo Estado e quais devem ser eliminados.” (Bento, 2019)
Numa manobra inversionista – e psicanalistas chamam isto de projeção – a extrema direita passou a nomear de ideologia de gênero o que contesta a sua ideologia de gênero. Presente nas subjetividades, esta ideologia de gênero heteronormativa não é, no entanto, produto nacional. Correspondendo a um ideário que tem no topo da pirâmide o homem branco, heterossexual e da elite econômica, ela se enraíza em muitas culturas.
O filme chilleno “Uma mulher fantástica” (disponível na Netflix), do diretor Sebastián Lelio, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2018, protagonizado pela atriz trans Daniela Veja, e que foi objeto de debate de “Psicanálise e Cinema” da SBPRJ em abril de 2022, nos permite levantar algumas questões.
A personagem principal, Marina, é uma mulher trans que tem um relacionamento amoroso com um homem mais velho, Orlando, que fora casado e tinha filhos. O drama se inicia com a morte súbita de Orlando decorrente do rompimento de um aneurisma. A história contada no filme acontece em alguns poucos dias: da comemoração de seu aniversário com Orlando com a promessa de uma viagem à proibição de sua presença nos ritos fúnebres com o “apagamento” de sua existência na moldura da família pequeno burguesa.
Com a morte de Orlando, desaparece o reconhecimento e amor à Marina. Ela se torna suspeita e deve ser punida, não pelo que ela fez, mas pelo o que ela é. O ódio que o gênero de Marina provoca em muitos – a família, o médico, a polícia – aponta para a desestabilização que o seu existir, em um corpo não normatizado, traz para a fixidez das identidades sociais ao deslocá-las de um lugar de certezas.
Desde Freud, sabemos que a bissexualidade é constitutiva do humano, que o objeto é o que há de mais variável na pulsão, que nossa sexualidade se sustenta nas fantasias sexuais inconscientes; desde as teorias feministas sabemos que gênero é uma construção social, que não se confunde com o corpo biológico. Mas para a manutenção de uma dada ordem e estabilidade institucionais, também sabemos, desde Foucault, que os corpos precisam ser controlados, domesticados e, se escapam, exterminados.
A violência está na desumanização, na humilhação, na suspeição, no silenciamento do corpo transgressor. Submetida a isto, Marina resiste. Seu percurso retratado no filme tem um propósito ético. Antígona dos nossos tempos, ela quer se despedir do seu amado antes da cremação. E quer sua herança, a cachorra Diabla que Orlando lhe dera.
Diabla é a ligação entre a morte e a vida. É com ela que Marina corre. É neste ir para a frente que o luto se faz e que a vida recomeça. Então, na cena final, o palco se abre e Marina canta seu amor na ária “Sposa son disprezzata” (Giacomelli/ Vivaldi).
A arte trans-forma a morte abrindo caminhos para a vida. Com os nossos múltiplos modos de ser, existimos e reexistimos. São estas as trans-formações que, pondo em xeque as formas totalitárias, criam os espaços da democracia.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
A seguir, encontram-se os links dos textos-referência:
https://outraspalavras.net/
Categoria do ensaio: Cultura
Palavras-chaves: Identidades de gênero, Sexualidades, Transfobia, Ideologia de gênero e Genocídio
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