Observatório Psicanalítico -Editorial maio/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 25

Maio/2022 

Em uma página de “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos narra a primeira vez que viu Nise da Silveira. Eram conterrâneos, nascidos em Alagoas. Sabiam um da existência do outro. O encontro presencial se deu, no entanto, em um período de confinamento. O cárcere imposto pelo regime do ditador Getúlio Vargas durou um ano e seis meses para Nise. Graciliano ficou dez meses entre grades. Ela foi libertada na noite de São João de 1936. Ele continuou preso até começo de 1937. As motivações para os encarceramentos eram kafkianas, absurdas, como são as ações que cerceiam as liberdades em governos autoritários.  

E, se a agitação do curso do tempo parece ter entrado em torvelinho, é porque maio de 2022 reacendeu o passado e com ele o susto e a dor diante do que pode um Estado sem limites. 

Em Sergipe, Genivaldo Jesus dos Santos é asfixiado e morto dentro do porta-malas de uma viatura policial, metamorfoseada em uma câmara de gás. No mesmo dia em que Genivaldo é assassinado, a inclusão do nome de Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é vetada pelo Presidente da República. Na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, uma ação policial torna-se uma operação de extermínio humano. 

Escrever é uma tentativa de restituir a força à palavra. Sobretudo quando o descalabro e a injustiça exibem imperiosamente as suas faces. 

Em maio recebemos dois ensaios que reafirmaram o valor da trajetória de Nise da Silveira. 

Em “Dra. Nise da Silveira, obrigado. Muito obrigado mesmo!” (OP-317/2022), Alirio Torres Dantas Júnior (SPRPE e SBPRJ) ressalta as realizações de Nise: “Criadora da Casa das Palmeiras e do Museu de Imagens do Inconsciente, foi pioneira do uso da terapia ocupacional e da reabilitação destas pessoas através das suas expressões criativas.” Se as estratégias thanáticas pulverizam a repulsa à vida, o ateliê criativo de Nise abriu condições para que um mundo novo se desvelasse. O pincel que deslizava nas telas e a modelagem dos blocos úmidos de argila davam vazão a expressões contidas. Mandalas, retratos, bustos e paisagens restituíam a dignidade humana às pessoas de Engenho de Dentro.  Como diz Alirio: “Para Nise, essencial era a pessoa e não as suas patologias. Quem sofre é digno de respeito e cuidados, não de pena, confinamento ou estigmatização.” 

Em “Nise da Silveira e a homenagem do veto!” (OP-318/2022), Hemerson Ari Mendes (SPPEL) destaca o conceito psicanalítico do Estranho relacionando-o ao episódio do veto. Para o autor, há uma “condensação de contraditórios”. Diz ele: “A biografia de Nise da Silveira está acima da opinião circunstancial de um governante, nada mais emblemático e significativo do que este veto, que talvez fosse considerado por ela como uma grande homenagem.”  Hemerson, ao final de seu criativo texto, deixa-nos com as palavras de nossa homenageada: “Corajosamente, ela sentenciou: ‘todo mundo tem um pouco de loucura’. Mas, também, ofereceu a solução: ‘vou lhes fazer um pedido, vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda’. No momento, fiquemos com a imaginação…” 

Foi no balancê da imaginação criativa do artista Gê Orthof que a psicanalista Silvana Rea (SBPSP)  navegou durante a deliciosa conversa que eles tiveram, acompanhados da mediação de Beth Mori (SPBSB), no sexto episódio de nosso podcast Mirante: “O Artista e seu Processo Criativo”. Aqui, no grupo de curadoria, também nos deixamos levar pela poética rede imaginária tecida por Gê. Quiçá a voz do artista seja possibilidade de soltura, e, entre a escolha e o acaso, seja possível criar futuros mais férteis e amorosos dos que por hora anunciam.  

A equipe de curadoria do OP está trabalhando na produção da segunda temporada do Mirante. Nessa nova fase contaremos com uma integrante muito especial: Wania Cidade (SBPRJ) estará conosco, apresentando a temporada sobre o racismo. 

Por falar em futuros ameaçados, o ensaio “A interminável lição de casa” (OP-315/2022), de Adriana Augusta (SPFOR),  questiona se “podemos ouvir os clamores das gerações que aí estão e das que não nasceram ainda”. O percurso da escrita da autora traz inquietudes acerca da precariedade que permeia o cenário da educação em nosso país: os efeitos nefastos da pandemia que tributou o ensino remoto e impediu ou interferiu negativamente na aprendizagem escolar; os ataques ao ensino laico pelos fanáticos religiosos que ocupam cargos de poder; o desamparo dos órfãos da pandemia. Soma-se às colocações do texto de Adriana a recente aprovação do ensino domiciliar, “homeschooling”, pela Câmara dos Deputados. Caso o trâmite finde vencedor, será ainda mais difícil a socialização e a partilha de uma vida coletiva que possibilite enxergarmos uma trajetória comum. Como resistiremos? Quais possibilidades ainda não pensadas poderão pavimentar a estrada do futuro? 

No mês em que o homem mais rico do mundo esteve no Brasil, e em meio às especulações acerca da compra do Twitter, Eduardo Rocha Zaidhaft (SBPRJ) nos presenteou com o ensaio “Café com Musk ou café sem Musk? Considerações sobre a expropriação da informação no meio digital” (OP-314/2022). Com um foco na complexa questão das tecnologias de interface entre cérebros e máquinas de inteligência artificial, a escrita de Eduardo abriu perspectivas sobre a potencialidade da psicanálise no cenário de digitalização da vida cotidiana. No campo de forças sub-reptício que impacta a liberdade de escolha e de ação, a psicanálise evidencia uma fissura nos projetos totalitários do tecnofeudalismo: “uma dimensão negativa, absencial, formulada sempre segundo a lógica a posteriori.” 

Seguindo por essa seara de questionamentos, em “Ameaças ao pacto civilizatório e a mentira sabidamente mentirosa” (OP-316/2022), Luciana Saddi  (SBPSP) dialoga com as contribuições de Roberto Schwarz e Fabio Herrmann, e destaca a existência de três tipos de mentalidade que atualmente agridem o pacto civilizatório:  “as ideias fora do lugar”, o “regime do atentado” e o “regime da farsa”.  As virulentas tentativas de impor um falso sentido único de realidade vilipendiam a palavra, maculam a verdade, irrigam a arrogância. O tecido social é agredido para tornar-se um aglomerado de indivíduos sem ligação e minados no fluxo do pensamento crítico. Tomando como exemplo a recente relação entre armamento e produção cultural, Luciana aponta para a mistura de ideias fora do lugar e regimes de farsa e atentado. Como iremos descosturar a trama das mentiras sabidamente mentirosas? Eis um de nossos desafios. 

“O colapso da maternidade romântica” (OP-312/2022)  foi o tema escolhido por Juliana Lang Lima (SBPdePA). Em nossa cultura, o mês de maio é também o “mês das mães”. Porém, a mãe é alvo de idealizações no exercício de seu papel. A opressão dessa idealização é colocada em análise, e Juliana pontua: “Mas, na passagem de diva para divã, podemos tornar mais complexa a questão. Ao não topar assinar as cláusulas subjacentes desse maternar, tais como dispostas hoje no laço social, as mulheres de agora estão reivindicando, como as do Salpêtrière, liberdade sobre seus corpos e seus desejos.”  

Estamos chegando perto da conclusão de nosso Sódepois 25, e o caminho de fechamento se dá com o festejo das palavras de Daniel Delouya (SBPSP) dirigidas ao nosso queridíssimo Freud. Em “Parabéns, Sigi” (OP-313/2022), Daniel pega em nossa mão e nos leva ao encontro de um “Sigi” que só os íntimos conhecem. O Sigi filho de Amalia. O Sigi menino tecelão de memórias: “Assim como recordou a criança feliz que você foi nas ruelas de Freiberg, cidade que deixou antes de completar três anos de idade, e a qual não parou de visitar até o final de sua adolescência. Descobertas que se fazem sempre depois, de algo inatual, mas que está presente, que faz toda a diferença, que faz sofrer, que faz viver e que somente o ato da fala pode tirar seu proveito para a vida.”  […] “O que significam afinal os aniversários? Talvez a ideia seja reafirmar o ‘seja bem-vindo’ dos inícios, ‘você faz uma diferença’, ‘fique conosco’…”  

Todo aniversário é um convite ao recomeço. Tempos brutos como o que enfrentamos, envolvendo-nos perigosamente como os tentáculos de uma água viva, talvez possam receber novas inscrições. Não somente para ativar o alerta diante do perigo, mas como uma proposição de movimento para desvios criativos. Quando “mitos thanáticos” procuram fazer do mundo ruína, é preciso que outras mensagens e atitudes se espraiem, como as que Nise da Silveira deixou como legado. O que é investido amorosamente hoje aparecerá, ainda que “sódepois”. 

“Last but not least”: a equipe do Instagran continua exercendo um primoroso trabalho. Rafaela Degani, Ian Favero Nathasje e Gabriela Seben (SBPdePA),  divulgam os ensaios publicados pelo Observatório Psicanalítico e as conversas dos episódios do Mirante. Sigam-nos! 

Também no Instagram republicamos textos. Em maio a terça cultural contou com os seguintes ensaios: “Vamos à exposição, digo, imposição do Santander Cultural?” (OP-24/2017), de Catherine Lapolli (SPPEL); “Germano Almeida, o contador de histórias” (OP-59/2018), por Anna-Maria de Lemos Bittencourt (SBPRJ); “Delegado Espinoza: seu nome é Luiz Alfredo”, (OP-156/2020), escrito por Liana Albernaz de Melo Bastos; “Psicanálise e Cultura: Clínica do Mundo” (OP-114/2019), por Leda Hermann. 

O nosso #tbt (throw back thursday) relembrou: “O último dos Juma” (OP-228/2021), de Mário Campos Bauleiro (SBPRP);  “O fuzil e o guarda-chuva” (OP-68/2018), por Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ);  “A inconfidência dos generais, a dignidade do filósofo e a responsabilidade do psicanalista” (OP-64/2018), de Ney Marinho (SBPRJ) e “Dizem que sou louco” (OP-212/2020), escrito por Liana Albernaz de Melo Bastos (SBPRJ). 

Que Junho traga mais alegrias do que tristezas. É o que desejamos! 

Equipe de curadoria, 

Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Editorial

Palavras-chave: observatorio psicanalitico, editorial, escrita psicanalítica, Nise da Silveira, arte.

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Categoria: Editoriais
Tags: arte | editorial | escrita psicanalítica | Nise da Silveira | observatorio psicanalitico
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