Observatório Psicanalítico – OP – 317/2022

 Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Dra. Nise da Silveira, obrigado. Muito obrigado mesmo!

Alirio Torres Dantas Júnior (SPRPE e SBPRJ) 

A Dra. Nise da Silveira foi uma psiquiatra e psicanalista junguiana que se notabilizou por combater a segregação e o estigma dos pacientes psiquiátricos. Criadora da Casa das Palmeiras e do Museu de Imagens do Inconsciente, foi pioneira do uso da terapia ocupacional e da reabilitação destas pessoas através das suas expressões criativas.

Nise da Silveira viveu defendendo e praticando a liberdade e a solidariedade como as bases fundamentais de seu trabalho terapêutico. Aquela solidariedade verdadeira que nasce do respeito ao outro e da empatia com seu sofrimento. Foi inovadora, revolucionária e corajosa. 

O veto do capitão à inscrição do nome dela entre os heróis da Pátria é uma injustiça à obra generosa e transformadora da Dra. Nise. E representa uma afronta acintosa ao direito dos enfermos mentais E às melhores práticas de uma psiquiatria que, para além do seu tratamento, zele de forma humana e carinhosa pelo bem-estar do paciente, com ou sem sintomas. Para Nise, essencial era a pessoa e não as suas patologias. Quem sofre é digno de respeito e cuidados, não de pena, confinamento ou estigmatização.

Formada pela Faculdade de Medicina da Bahia, esta alagoana franzina foi a única mulher entre seus 157 colegas e uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Brasil. Quando ela iniciou na psiquiatria, havia 3 formas de tratamento: a lobotomia, o eletrochoque e a malarioterapia. E um destino para os pacientes, o de viverem  confinados num depósito insalubre de doentes mentais, com alto número de óbitos e nenhuma alta médica. Lugares malcheirosos, sujos, indignos de acomodarem seres humanos. Em visita ao Brasil para uma série de conferências, creio que em torno de 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou vários hospitais e, chocado com o manicômio de Barbacena,  comparou-o aos campos de concentração, denominando-o “holocausto brasileiro”.

Nise colocou-se, de imediato, ao lado dos pacientes e contra as instituições. Contribuiu de tal maneira para o desenvolvimento da terapia ocupacional, que seu nome confunde-se com ela. Antes restrita a serviços de limpeza, a TO virou uma forma de tratamento fértil com o uso de diversas atividades. Combateu os tratamentos “heroicos”, como ainda é chamado o eletrochoque – na suposição que há algo heroico na violência – e humanizou o ambiente hospitalar. Como fruto do seu trabalho, foi criado o Museu das Imagens do Inconsciente com a exposição de trabalhos dos pacientes. Mas não se enganem. Ela não foi marchand nem patrona das artes. Estas obras são o resultado de um trabalho terapêutico rigoroso e muito consequente, valorizando a expressão criativa como meio de acesso ao mundo interno. Tanto melhor que, em muitos casos, como o de Arthur Bispo do Rosário, tenha havido criações de grande valor estético. É a comprovação de que o “louco” está vivo, tem potencial e criatividade, e, sobretudo, tem capacidades.

Mas o que mais me encanta em seu trabalho é a sua luta intransigente contra a noção de que aquele que sofre de perdas cognitivas ou mesmo de quadros psicóticos graves – em razão do seu próprio sofrimento – seriam, a priori, incapazes de explorar suas potencialidades e criatividades. Este resgate do paciente psiquiátrico se estende para qualquer pessoa que sofre. Incapaz é quem não sofre, porque este é incapaz de sentir. De sentir desejo, empatia, amor, respeito… São o que podemos chamar de  “normopatas”, uma espécie de “eunucos psíquicos”: funcionais, geralmente são arrogantes e narcísicos, mas incapazes de viver experiências emocionais e trocas intersubjetivas. Pessoas assim devem ser mantidas longe de quem sofre da alma.

Ao vetar a inscrição da Dra. Nise Magalhães da Silveira no livro dos Heróis e Heroínas da pátria, o nefasto capitão que, infelizmente, ainda ocupa a presidência, mostra sua esdrúxula pretensão de se equiparar à homenageada. Triste engano! Seu veto reacendeu nosso amor e admiração por Nise. E aumentou nosso asco por ele. Enquanto ela continuará a ser uma heroína, ele está próximo de voltar ao lixo da história, de onde não deveria ter saído.

Este indivíduo, me recuso a chamar este traste de pessoa, é incapaz de sentir empatia com os outros, sentindo suas dores, demandas ou anseios. A empatia é necessária a um presidente que precisa traduzir os anseios da sociedade, e por isso mesmo, ele é incapaz para o exercício da presidência. Este psicopata traduz apenas seus próprios anseios, com uma irritante repetição. E a história só se repete como farsa. Ele é, portanto, um farsante, um ridículo farsante. O vergonhoso presidente necessita, cada vez mais, nos impor sua caneta e sua arrogante presença. Parece que o quadro dele se agrava.

Caso pessoas como Nise não tivessem influenciado as gerações que vieram, não teríamos alcançado inúmeros avanços no tratamento dos “doentes mentais” – nome feio para as pessoas que sofrem da alma psíquica – na psiquiatria, psicologia, enfermagem, terapia ocupacional.

Sua principal herança, que por si só a torna uma heroína da pátria e da humanidade, foi a destruição ou a humanização dos asilos psiquiátricos, a terrível prisão a que Pinel condenou os paciente, segundo Henry Ey. Foi um processo lento, mas firme. Tudo indica que começou em Recife, mas isto não tem nenhuma importância ou verdade. O que importa é que o processo começou com Nise, nossa heroína.

Persistiu com coragem, influenciou seu tempo e permanece viva. Em tempos sombrios, de estímulo ao embuste, ao preconceito e à mentira, tempos de violências, injustiças e ameaças, homenagear Dra. Nise é uma forma de resistência. É uma expressão da teimosia de quem persiste no caminho, persevera na luta e permanece na busca de um país melhor e mais justo, que promova a liberdade e a dignidade para todos, não importa a quem tivermos que enfrentar. Este foi seu exemplo. Esta é a minha esperança. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: Homenagens 

Palavras-chave: Nise, heroína, psiquiatria, esperança, inconsciente 

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook: 

https://www.facebook.com/252098498261587/posts/pfbid0rj5s3isESkVgKFc5u87NyfW51WFvyyqCLiZh3pLRtq9NZDeatXNZk27HbF6EiK3Cl/?d=n

Categoria: Homenagens
Tags: esperança | heroína | inconsciente | Nise | psiquiatria
Share This