Observatório Psicanalítico – OP – 316/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Ameaças ao pacto civilizatório e a mentira sabidamente mentirosa

Luciana Saddi (SBPSP)

Em O mal-estar na civilização (1929), Freud examinou o irremediável antagonismo entre as exigências dos instintos e as restrições impostas pela civilização. Concluiu que a coerção pulsional cobra elevado preço do homem, induz à culpa inconsciente e infelicidade, e produz mal-estar permanente. Logo, é esperado que volta e meia surgissem ataques ao pacto civilizatório. Freud também anteviu perigosas formações políticas e sociais ligadas à agressividade humana. Naquela época o nazifascismo instalava-se na Europa tornando a atmosfera pesada e mortífera.

O processo civilizatório brasileiro criou formas próprias de mal-estar relativas à colonização, escravidão e patriarcado. Estruturas arcaicas compõem o lado avesso do tecido social e estão estampadas nos sofrimentos coletivos e individuais. Além do peso do passado que nos constitui, a modernidade trouxe mentalidades bastante características, ainda que inconscientes, impondo regimes de pensamento ou lógicas à sociedade. Vamos abordar três tipos de mentalidade, em grau crescente de violência e perigo para o pacto civilizatório no final do século XX e início do século XXI.

A primeira, conhecida da sociologia, é representada pelo conceito “As ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz. Fonte de referência para Schwarz, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis descreve a postura do antigo agregado de Iaiá Garcia que assumiu o ponto de vista dos senhores de escravos. Também caracteriza o grupo senhorial, dependente da escravidão, que incorporou referências ideológicas europeias oportunamente esvaziadas do sentido original. Celebra-se o paradoxal casamento entre liberalismo e escravidão. O liberalismo desprovido de caráter universal transformou-se em ideologia de segunda classe e passou a defender os interesses patrimoniais. Encenada a “comédia ideológica”, se atribui “independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio”, e pode-se acrescentar, cultura à ignorância e verdade à mentira. O governo Bolsonaro levou “as ideias fora do lugar” ao extremo. Hoje observamos o liberalismo e o reacionarismo, casamento improvável, sem medo de contradição.

A segunda lógica diz respeito ao agravamento da crise da realidade na pós-modernidade. É o que o psicanalista Fabio Herrmann denominou de “regime do atentado”. Em linhas gerais, na modernidade há progressivo enfraquecimento do contato do homem com a natureza. Outrora, o mundo era lugar de fazer, e esse fazer construía o seu sentido. Hoje, o mundo midiático e virtual impõe sentidos prontos ao homem, como se as coisas do mundo pensassem por ele. Na sociedade da informação não há distância entre ideias e coisas nem espaço para surgir um saber singular. Vive-se num mundo em que a ordem tradicional foi substituída por outra ordem, sem raízes nos fatos, constituída por interesses que jamais serão provados. Cria-se sentimento de irrealidade e desconfiança das coisas: nada é o que parece. A única confiança, prova de realidade e de continuidade cotidiana se dá nos atos. Atos em forma de ações autoritárias, porque os próprios atos perderam eficácia. As ações se transformam em sentidos em si. Apontamos para a lógica em que o ato prescinde de ser antecedido pelo pensamento e, ao contrário, é a sua realização que impõe sentido para o momento vivido pelo sujeito. Tal lógica pode ser resumida pelas palavras “causar” e “lacração”. E o governo Bolsonaro “causa” incessantemente à procura de “lacrar”. “Causa” em cada movimento, em cada declaração estapafúrdia. Atentados têm como lógica central realizar ação com o mínimo de dispêndio e o máximo de alcance. O governo não precisa sequer inaugurar uma obra, basta uma declaração absurda por dia. “Causo”, logo existo. A “Lacração” no governo Bolsonaro tomou o lugar da prova de realidade.

A terceira lógica, talvez a mais perigosa, o “regime da farsa”, indica outra vertente autoritária, agora, ligada ao pensamento. Fabio Herrmann analisa a opinião e a opinião pública. Afirma que, ao opinar, o homem pensa o mundo inteiro – o julga de cima para baixo, como se dele não participasse –  seguindo alguma ideologia simples, e assim, realiza ato de juízo positivo e global. A opinião funciona como jogo de aniquilação das diferenças, semelhante ao absoluto provisório radical. Em grau razoável de autoritarismo trata-se de opinião pessoal, em grau mais elevado, preconceito. Delirante, quando levada ao extremo. À contrapartida social temos a opinião pública, em grau mais extremo formações ideológicas socialmente assentadas. É quando apenas uma ideia cobre todo o campo ao englobar sujeito e mundo. O nazismo, por exemplo.

A partir da investigação psicanalítica da opinião, pode-se afirmar a existência de um processo autoritário que visa transformar o mundo inteiro num sistema organizado por leis precisas. Impor uma versão da realidade. O processo não é recente, ocorreu em qualquer período histórico. A novidade, hoje, é a difusão absoluta e capilar de ideias fabricadas por meio de sistemas de comunicação em massa e redes sociais. Penetra em cada poro do cotidiano e assalta a realidade em razão da qualidade da realidade virtual, mais dócil e maleável que a realidade natural.

O processo autoritário se mostra melhor na Política. É sua característica pretender organizar o mundo como um todo. A moralidade autoritária invade todos os sistemas de governo, não apenas os totalitários. Na economia vemos o processo em curso modelando a realidade. O capitalismo, ao penetrar em todos os cantos do mundo, altera os modos tradicionais de produção e troca. A globalização é seu expoente.

O processo autoritário, que se inicia na opinião, revela descrença na relação entre palavra e fato. Duvida do vínculo entre representação e coisa. Transforma ideia em fatos. Fatos, em argumentos. Incapaz de construir mediações críticas para elucidar ideias, invalida qualquer proposição objetiva. Fake News sobre vacinas ou sobre cloroquina, por exemplo, trazem a marca da “mentira conveniente” e apontam para a lógica da farsa.  

Caracterizada por enunciados rígidos e imediatistas, certezas absolutas, incapacidade de investigar – nessa forma de pensamento – a realidade se comporta como algoritmo. Questões complexas resolvidas de forma simples, à procura de bode expiatório. Não há como não lembrar das falas de Bolsonaro.

Assim, a dúvida razoável, nesse mundo em que tudo é construído e nada é provado, pode ser transformada em: nenhuma verdade merece crédito. Recobre-se o mundo de ilusão. Nega-se a possibilidade de conhecê-lo. Os fatos tornam-se irrelevantes.

Desqualifica-se a pesquisa e ergue-se um sistema fechado em que toda a sentença vale pela intenção ou por um suposto ideológico. A questão é impor à convicção geral uma crença, ou melhor dizendo, uma mentira. Mas, quando tudo é mentira, o processo autoritário se agrava e se transforma em “regime da farsa”. O homem da farsa é incapaz de pensar. Portanto, a opinião é a semente do “regime da farsa”, ato autoritário disfarçado de pensamento. E a opinião pública, a base de sustentação dos processos autoritários.

Quando o homem comum emite opinião, ele sente que recupera a potência de autor único e insubstituível de grandes realizações. Lembremos da quantidade de opiniões absurdas emitidas com arrogância pelos membros do atual governo e difundidas em redes sociais. Assim, opiniões/atos bárbaros podem receber apoio geral, pois foram transformados em enunciados simples, desligados das relações entre causa e consequência. O pensamento social se isola em cada indivíduo. As redes sociais operam com essa lógica, o mundo em que vivemos também. Aqui a linguagem verbal está reduzida a imagens impactantes que agravam e ampliam a incapacidade de pensar. Isolados, sem perceber o tamanho da própria impotência, nos iludimos ao acreditar que nossas ações são frutos de nosso pensamento e que temos potência ao opinar sobre o mundo. A cada opinião, a cada botão de like ou dislike, acredita-se que somos capazes de pensar individualmente, com liberdade, e na verdade, acrescentamos pequenos tijolos na construção da farsa autoritária.

Tomemos como exemplo as notícias da aprovação da “Lei Rouanet” para produção de livro sobre a história das armas no Brasil, requisitada pela Taurus, que durante o governo Bolsonaro apoiou R$ 2,6 milhões em projetos da Rouanet.  Como também o anúncio de R$1,2 bilhão da Rouanet para conteúdos pró-armas.

Observamos a combinação, em um só lance, de “as ideias fora do lugar”, “regime do atentado” e “regime da farsa”, afinal, a relação entre armamento e produção cultural parece improvável se não absurda – deveria ser enquadrada em produção industrial, jamais em bem cultural, ainda que objeto humano. A festa dada na ocasião e fotos orgulhosamente provocativas de Bolsonaro, seu filho Eduardo, o secretário de cultura Mario Frias, bem como de André Porciuncula, representante da Industria de armamentos e ex-secretário de fomento à Cultura, causam náuseas.

Sobre a quantia exorbitante de investimento para fomentar violência e favorecer a indústria armamentista, e não a cultura, faltam palavras e argumentos que justifiquem tamanho desatino. A linguagem é polifônica, todos sabemos, pode deslizar entre história das armas e cultura por vezes, aos frequentadores de clubes de tiro dá uma mão de verniz, mas a mentira costuma dar rasteira na polifonia, em especial, quando é sabidamente mentirosa, típica do “regime da farsa”. Quando a “mentira mentirosa” dá as caras, sem vergonha, costuma produzir crise pela própria exacerbação. Crises dessa natureza se somam e se fazem necessárias para que essa lógica seja rompida. Não há garantia disso e, infelizmente, o que está ruim sempre pode piorar!

Bibliografia:

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. XXI). Imago. (Trabalho original publicado em 1905) Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. 3ª edição. Casa do Psicólogo.

Schwarz R. (2014). As ideias fora do lugar, 1ª edição. Penguin.

Categoria: Política e Sociedade. 

Palavras-chave: autoritarismo, atentado, mentira, farsa, pós-modernidade

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Oswaldo Guayasamin. Lágrimas de sangue. (1973) 

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Tags: atentado | autoritarismo | farsa | mentira | pós-modernidade
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