Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A interminável lição de casa
Adriana Augusta (SPFOR)
“Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (Carlos Drummond de Andrade)
A escola (do grego “scholé”, no latim “schola”, ócio dedicado ao estudo, lição, curso, conferência, lugar onde se ensina, lazer) sempre exerceu importante papel no desenvolvimento do ser humano, tanto na área do conhecimento quanto nos aspectos socioculturais. Passamos pela Escola de Atenas, fundada por Platão há mais de 2000 anos; pela Biblioteca de Alexandria, de pé antes do Cristo; a Casa do Saber, na Idade de Ouro do Islã, há mais de mil anos; e cá estamos. No nosso tempo, a escola é, em grande medida, o lugar em que se dá a Educação, que no dizer de Paulo Freire, é “o processo constante de criação do conhecimento e de busca da transformação-reinvenção da realidade pela ação-reflexão humana”.
O Coronavírus deixou graves sequelas em nosso país e todos os setores enfrentam enormes desafios, em especial, a escola. Não bastassem as dificuldades do mundo pós-pandêmico, temos, no Brasil atual, uma gestão pública onde andam juntos deboche e irresponsabilidade, em que a pulsão de morte alcançou o “status quo”. Recentemente, tomou a cena o Ministério da Educação e Cultura, o MEC, com um orçamento de bilhões e um escândalo. Fala-se da existência de outro “gabinete paralelo”. Nele, o pastor e quarto ex-ministro do MEC teria se aliado a pastores evangélicos, sem cargos no governo, em um possível esquema de desvio de dinheiro público, liberando verbas a prefeituras à base de compra de Bíblias, dinheiro, ouro e construção de templos. Em áudios ambíguos, divulgados amplamente, o ex-Ministro disse ser um “pedido especial” direto do presidente da República para atender aos amigos. Entre outras denúncias recentes envolvendo o MEC e políticos, uma inusitada situação chamou atenção. Dizia que escolas do interior do país teriam recebido alguns milhões em “kits de robótica”. Além de ignorar as prioridades das escolas, às quais faltava infraestrutura básica, teria havido superfaturamento nos “kits” e liberação quase instantânea dos valores para a compra do material. Muitas dessas escolas não têm água encanada, internet e computadores; nenhuma tem laboratório de ciências e em outras é preciso usar balde para dar descarga nos banheiros dos alunos. Em algumas escolas há mistura de alunos de séries diferentes por falta de salas de aula e, sobre a questão da água, uma professora deu a palavra final: “ter na torneira facilitaria mais”.
Além da questão política e seguindo o rastro do estrago causado pela pandemia, que ainda nos espreita, temos praticamente dois anos letivos perdidos e milhões de alunos prejudicados. A perda escolar é imensurável, e o que se aprendeu antes, dizem os professores, se “desaprendeu”. Pesquisas mostram que houve aumento de alunos em situação de atraso escolar, já se fala de crianças “desalfabetizadas” e o conteúdo pedagógico é retomado dando vultosos passos para atrás. O corpo docente enfrentou imensos desafios durante a pandemia, porém, talvez não se compare aos que ainda hão de enfrentar. Afinal, recuperar o tempo perdido é impossível.
O prolongado período sem aulas, ou de aulas presenciais combinadas com remotas, deixou um grande déficit para a aprendizagem no Brasil, sobretudo para os estudantes da rede pública. As pesquisas mostraram menor engajamento ao ensino remoto por parte dos estudantes da rede pública, pois a maior parte das famílias de baixa renda não tinha equipamentos adequados e nem acesso à internet banda larga. O celular foi o principal dispositivo de acesso a aulas remotas no ensino público (71%), enquanto na rede particular o mesmo índice é ocupado por computadores e laptops, que são os meios mais adequados. A escolha do celular não foi por preferência pessoal, mas por ser, quando existente, a única opção. Interligada à desigualdade social, tem-se a evasão escolar. Dados mostraram que, até janeiro de 2021, mais de 1 milhão e 300 mil alunos, com idades entre 6 e 17 anos, abandonaram a escola. Seja por não terem os dispositivos eletrônicos e internet, seja por precisarem ajudar a família com alguma renda ou trabalho doméstico, ou pela impossibilidade de se organizarem com o estudo remoto por problemas de saúde física e mental, incluindo apatia e falta de perspectiva no futuro, a evasão escolar é um ponto gravíssimo a ser enfrentado.
Outro ponto doloroso e preocupante são os “órfãos da pandemia”, jovens que perderam familiares e precisaram cuidar de si e dos irmãos mais novos. Nesses casos, observamos desamparo de todas as formas. Somam-se cuidados com necessidades básicas, provisões, sustento e a insuficiência ou mesmo inexistência do investimento narcísico “suficientemente bom”, culminando com marcas indeléveis no psiquismo dessas crianças e jovens. A constituição psíquica não só desta, mas de futuras gerações, está em jogo, já que a relação interrompida com as figuras primárias redunda em incertezas sobre si mesmo e dificuldades emocionais que se refletirão em todos os campos da vida, inclusive no aprendizado.
Infelizmente, os “órfãos da pandemia” contribuem ainda mais para a evasão escolar que, em 2021, cresceu 171,1% comparado a 2019. O abandono dos estudos inevitavelmente terá um substancial impacto negativo na sociedade e na economia, prejuízo que repercutirá tanto no futuro dos estudantes quanto do país. E há diferença?
Não obstante seja necessário assinalar a questão do atraso pedagógico e de outros prejuízos, é preciso falar sobre a potência dos educadores, sobre o poder de transformação da sociedade e sobre o papel que a Psicanálise tem nesse processo. É essencial uma compreensão desse momento, com sua enorme complexidade, para uma intervenção ajustada às emoções que estão em erupção. Levar o saber e o conhecimento psicanalíticos pode contribuir sobremaneira para escolas e instituições, como propõe o programa SOS Brasil em seu eixo de acolhida em instituições, dentre elas, a escola. Terreno da Psicanálise, a Educação e a Cultura “humanizam” a cria a partir dos pais, professores e suas identificações primárias, com toda a complexidade na formação de caráter que isso enseja. Temos um Super-Eu/Ideal do Eu herdeiros diretos de casa e escola. Em se tratando de crianças e jovens, o terreno das identificações são a pedra bruta; as incertezas e desilusões, uma marca do nosso tempo. Assim, a Psicanálise tem muito a contribuir. Um caso emblemático de transbordamento pulsional pode circunscrever uma parte da questão e mostrar a necessidade de compreensão desses fenômenos. Recentemente, em uma escola estadual, vinte e seis estudantes apresentaram, no mesmo momento, falta de ar, tremores e crises de choro. O SAMU foi acionado. Foi constatada “crise de ansiedade” nos alunos. “É assustador”, disse uma mãe de um aluno de 15 anos que presenciou a cena. Freud está mais vivo e necessário do que nunca.
A adoção de políticas públicas efetivas para enfrentamento dos problemas na área da Educação é uma urgente empresa que a sociedade precisa assumir e se engajar. É imperioso que todos nos ocupemos da Educação. O real está sem paredes e sem descarga. O real dói. As crianças e jovens estão desiludidos e muitos não conseguem mais sonhar. É fundamental se pensar, hoje, em como a Psicanálise pode transcender os consultórios e abranger outros setores da sociedade, como a Política, tal como o Observatório Psicanalítico faz. Psicanalistas como “tradutores do inconsciente” – e na lida com a matéria inefável dos Sonhos – tentam compreender funcionamentos individuais e coletivos. Mas pode-se ir além, atuar como ponte entre passado e futuro, entre a geração de ontem e a de amanhã, contribuindo na sociedade através de uma atuação mais ampla na Educação. A revolução tecnológica atual é profunda e intensa, o mundo está “conectado”. Entretanto coexistem, neste tempo herdeiro da pandemia, a cibernética, a pobreza extrema, crianças que nunca foram à escola, jovens que abandonam os estudos e um caldeirão de desilusão.
Estamos em um impasse. Faltam escolas, paredes, descargas, internet e há assombrações medievais pairando pelo ar. Durante a pandemia, precisamos aprender e nos adaptar a uma nova modalidade de ensino nas escolas e de atendimento nos consultórios – o trabalho à distância – e percebemos o quão fomos empurrados, sem opção, pela correnteza da realidade. Esse fenômeno está para além da resiliência, assemelha-se mais à plasticidade, ou, dito de outra forma, foi preciso transformarmo-nos, pois nada seria como antes. Nosso tempo é agora e as vicissitudes da realidade atual nos impelem à ação. Se prestarmos atenção, podemos ouvir os clamores das gerações que aí estão e das que não nasceram ainda. Não podemos nos circunscrever a nossos grupos e a nós próprios, em um mergulho no espelho. Esse mergulho pode não ter volta e pode não sobrar letra sobre letra. Conseguem escutar?
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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