Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
CABELO INCHADO
Fernanda Soibelman Kilinski (SBPdePA)
“Uma pessoa apenas se torna diferente no momento em que dizem para ela que ela difere daquelas/es que têm o poder de se definir como normal.” (Grada Kilomba, em “Memórias da Plantação”, 2019)
Uma menina de 13 anos expulsa da sala de aula de um colégio militar por estar com o “cabelo inchado” – essa foi a notícia que nos surpreendeu (e não surpreendeu) semana passada. A menina, de origem negra, que estava de coque na tentativa de encaixar o cabelo aos padrões exigidos pela escola, não teve escolha senão voltar pra casa. Não sem antes tentar esticar ainda mais o cabelo. Diante da reclamação da mãe, o funcionário sugeriu que ela alisasse o cabelo e mostrou uma foto do que seria o esperado pela instituição. A foto era de uma menina branca de cabelo liso.
Fábio Belo, no livro “Relações raciais na escuta psicanalítica” (2021), evoca o conceito laplancheano de mensagem enigmática nos episódios de racismo e eu faço o mesmo aqui. Qual é a mensagem enigmática presente nessa situação?
É imensamente triste que uma adolescente tenha seus traços rotulados como “inadequados”, sobretudo numa fase da vida em que o incômodo com o corpo é sentido mais do que nunca.
O resultado disso é um Ideal de Eu, em seu aspecto social e individual, totalmente esmagador. Uma impossibilidade de se sentir confortável no próprio corpo e de ser capaz de despertar simpatia e admiração, como nos disse Fanon. Um corpo destinado a ocupar lugares de inferioridade, um “cabelo inchado” de representações negativas.
Nesse caso, a mãe não se curvou ao preconceito sofrido pela filha. Foi, provavelmente, uma mãe que libidinizou seus traços socialmente diminuídos e apresentou uma possibilidade de dignificar seu corpo. Quantas mães (e pais), no entanto, já alisaram o cabelo da filha em obediência à ideologia da branquitude? Quantas/os contribuem para impor os ideais brancos sobre seus filhos sem se dar conta de que estão destruindo sua autoimagem? Quantas famílias aprisionadas pelo olhar racista sobre seus corpos? Quantos pais inseridos nessa lógica sem saber e sem conseguir romper? Como pergunta Jurandir Costa, no livro supracitado: o corpo é do negro ou o negro é do corpo?
Nenhuma exigência institucional pode justificar esse episódio.
A diferença, para a branquitude, não é complementar ou enriquecedora, é suporte para o desejo de submeter e trabalha lado a lado com a pulsão de morte. É usada sutilmente através de piadas, falta de representatividade, palavras que desqualificam e muitas outras estratégias que vão minando a autoestima do negro.
Deixar o cabelo crescer é, para o negro, um ato de resistência, uma afirmação de que os ideais brancos precisam cair. O olhar de recriminação precisa ser substituído pelo olhar de reconhecimento e validação, tão importante para a constituição do Eu, sempre em construção. Crianças negras não podem crescer em um ambiente hostil à sua aparência, sem chance de gostar de si e apreciar a imagem refletida no espelho. Constituímo-nos como sujeitos através da relação com o outro, as palavras e olhares que recebemos vêm sempre carregados de significados que sequer passam pela consciência, mas nem por isso deixam de nos marcar. Sermos recebidos no mundo com olhares de repulsa e palavras que nos definem como feios e incapazes, nos lança em uma cadeia de significantes avassaladores. O negro, prisioneiro de sua suposta inferioridade, o branco, prisioneiro de sua pretensa supremacia, ambos neuróticos, parafraseando Fanon.
A psicanálise, compreendendo a intersecção entre psiquismo e cultura, não pode se furtar a pensar sobre o racismo dentro e fora dos nossos consultórios.
No contexto clínico, como trabalhar com um analisando negro sendo um analista branco? Não há resposta pronta, mas há um ponto universal: a validação do sofrimento e a escuta cuidadosa para que aquele sujeito tenha recursos internos para enfrentar o racismo de que é vítima. Como em qualquer análise, é preciso nomear o sofrimento trazido ao divã. Negar o racismo é um segundo trauma e, sendo o analista branco, torna-se uma violência cometida pelo mesmo agente.
É uma aberração reproduzir o “racismo à brasileira” no consultório, como vemos por aí… Um racismo mais difícil de nomear porque está sempre soterrado pela negação, muito embora essa negação esteja caindo por terra diante da força do movimento negro cada vez maior e menos disposto a compactuar com os ideais da branquitude.
O branco é chamado agora a falar sobre o racismo e o lugar que ocupa dentro dessa estrutura. Hora de tirar o negro da posição da psicopatologia e pensar na patologia do branco e a desmentida da violência que comete, pela qual não quer se responsabilizar. É convocado a dar visibilidade às produções de autores negros silenciados, a estudá-los e a se haver com o apagamento de talentos que empobreceu a psicanálise, assim como tantas outras áreas do saber.
É preciso teorizar também sobre as consequências no psiquismo do branco que nasce com o sentimento de ser superior. Quais os efeitos de herdar um passado de violência relegada ao processo de desmentida? A psicanálise nos ensina que o que não é dito vira sintoma e está condenado à repetição. Como psicanalistas, inseridos nesse contexto social, é necessário romper com o pacto de silêncio da branquitude e, como disse Anna Freud, ter amor pela verdade. Uma verdade amarga que precisa ser dita: somos todos racistas, e agora?
Chegando ao final, convido-os a pensar no que significa expulsar uma pessoa negra da sala de aula. Tirar a possibilidade de crescimento, de educação, de sair do lugar da subalternidade e ascender socialmente. Não seria isso parte do pacto narcísico da branquitude?
O fato de que isso aconteceu dentro de uma instituição pública também nos diz muito do tamanho do racismo estrutural.
Será que em algum momento conseguiremos desinchar esse cabelo das nossas projeções? Será que poderemos lançar um olhar pro cabelo liso inchado de privilégios e cortá-lo de forma a admirar todos os tipos de beleza e construir uma sociedade mais justa? Janine Severo disse uma vez, em nosso seminário sobre racismo na Sociedade Brasileira de Psicanálise, algo que me marcou: estamos sempre tropeçando no nosso racismo, mesmo que sejamos conscientes e instruídos. Como fazemos no divã, é necessário que nos impliquemos dentro dessa problemática. Qual a responsabilidade individual de cada um de nós na preservação do racismo?
Penso que o combate ao racismo dentro de si é uma tarefa para a vida toda e que podemos nos guiar por um tripé simples, mas ao mesmo tempo difícil: análise pessoal para contermos nossas projeções, estudo sobre o racismo estrutural e branquitude e, por fim, posicionamento ativo contra o racismo ao invés de uma suposta neutralidade que beneficia o lado opressor. Isso inclui cobrar das nossas instituições o ensino e as medidas de inclusão de psicanalistas negros. Que mais?
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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