Observatório Psicanalítico – OP 307/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.  

Violências: qual a mais sórdida? 

Gustavo Gil Alarcão (SBPSP)

Violência não, violências. Qual a mais condenável? Nosso tempo tem minimizado e aceitado violências simbólicas, leitura de Pierre Bourdieu, necessária para qualquer psicanalista. Podemos melhorar. Mas é necessário reconhecer que o debate precisa avançar. Sim, sem tapas. Mas, e as humilhações? A graça-sem-graça, qual limite? 

Will Smith deu um tapa em Chris Rock, visto por milhões de pessoas e comentado por quase todos. Smith não precisa de defesa e nem de acusação, ele sabe disso. Tenho aqui minha opinião, mas, gostaria de pensar algumas outras coisas, ou melhor, uma coisa: por que toleramos tão infantilmente esse humor estadunidense que desde os anos 1970 e com mais vigor anos 1980 afora tem se aproveitado da humilhação e da violência simbólica para fazer ofensa-piada? 

Estou com quarenta e um anos e acho que posso precisar o momento de mudança do “humor” nas telas: a virada dos anos 2000 com a chegada dessa avalanche de reality shows e programas como Pânico na TV, pegadinhas, etc. Sim, às vezes há graça, mas qual o preço? Qual o sentido e qual o significado? 

Tenho como hipótese que algo bastante regressivo aconteceu pouco antes dos anos 2000 (o bug do milênio?). Infelizmente e paradoxalmente, um ambiente de extrema influência para a cultura de minha geração, a MTV, abriu as portas para um tipo de programa bastante dispensável. Ashton Kutcher e colegas estrelavam o que se chamava Punk’d Show, um programa de “pegadinhas” que rolava entre os próprios artistas, mas também com o público. Tratava-se de uma espécie de desafio para se fazer a coisa mais estúpida, como comer insetos, ou segurar brasas, ou levar socos e tiros de grampeadores. A lista de coisas absolutamente inúteis e dos “desafios” protagonizados é enorme, consulte o Youtube, vale a pena se atualizar. 

Olhando hoje, penso que deva ter ocorrido alguma regressão grave com a mentalidade e com a subjetividade naquele contexto, porque tais experiências nada traziam de humor, criatividade ou inventividade, era a transgressão na direção do grotesco e do sórdido. O que prova quem se deita num caixão com ratos? Nada. Nada, além da falta de sentido pra vida na virada do milênio. Decidimos regredir, voltar ao tempo da estupidez, e da absoluta falta de sentido. Navegávamos a esmo, como se não houvesse nada mais com que se preocupar ou contra o que lutar: fome, preconceitos, abusos? Não! Vamos brincar de comer batatas.

Aquilo, aquele clima invadiu a cultura contemporânea, que não é vitima, que se deixou invadir, como diz Bourdieu, ela, a cultura-sociedade recebe e influencia, somos estruturas-estruturantes-e-estruturadas, que agem e constroem o mundo.

Como psicanalistas vemos todos os dias os efeitos devastadores das humilhações, de palavras e gestos sobre a vida de pessoas. Precisamos engrossar esse debate e ajudar a separar o que é graça, e o que não é. Quem, quem gosta de ser vítima do riso alheio em situações embaraçosas? Quem gosta de ser humilhado? Nunca conheci ninguém. Bom mesmo é rir do outro, portanto, fazer graça com a vida do outro. Sabemos que nossos superegos cruéis e tirânicos estão ali, com as garras afiadas para liberar toda sua dureza, sarcasmo e tirania.

Assim, o riso da graça-humilhação autoriza nosso desrecalque. Veja, não é só autorização para “liberar a censura do moralismo-hipócrita”. Quer dizer, civilizar-se é aprimorar habilidades de cuidado, e como, em pleno século XXI, aplaudimos quem provoca literalmente dor no outro, do difícil de ser assimilada? Alguém ainda dirá: “ah, vai, para com isso, deixa de mimimi, é só uma piadinha”. 

Será mesmo que ficamos intolerantes às piadas, ou será que elas viraram outras coisas? Será que a falta de humor mostra alguma encruzilhada? Os homens-máquina só sabem gozar na cara dos outros e com a cara dos outros? Que depressão, que falta está escondida nesse sarcasmo-ofensivo? 

Chris Rock tem 57 anos, 57 anos. Ganha a vida com piadas que expoēm, humilham e envergonham os outros. Qual o limite para isso? Por que toleramos tanto? Em nome do quê? Algumas risadas? É urgente que tenhamos em mente os efeitos da violência, não só da violência física, mas, e, principalmente nos dias de hoje, da violência simbólica, essa que humilha pessoas cotidianamente e vejam só, ainda recebem aplausos e defesas: em nome da civilidade de não “bater” (claro, ninguém deve bater: ninguém deve bater). 

É obvio que violência física não tem mais lugar nos dias de hoje, na verdade, conseguimos criar alternativas, não é? Basta pagar um canal de assinatura que se chama TV combate. Eu, no começo não entendia bem, mas, agora apoio totalmente: homens e mulheres combinam regras e vão para o ring “o octógano” se socar, se chutar até que alguém desista. Fazer o quê? Pelo menos ali, é tudo combinado, todos ganham, e mesmo quem sai com a cara quebrada, recebe um abraço caloroso no final. Ninguém sai humilhado. O gozo não é A humilhação do outro. 

Chris Rock, um homem negro de 57 anos de idade, deveria ter tido um olhar mais amplo, quando “brincando” com um colega de profissão e parceiro de tantas humilhações, em uma sociedade tão racista quanto a estadunidense, se prestou ao papel de divertir a plateia, humilhando aquele que seria o astro na noite. A plateia, claro, branca, “bem resolvida” pôde então se assustar com aqueles negros irascíveis, aquele soco e banir Smith do Oscar. Autopromoção marketeira dessa sociedade de espetáculo decadente, porém rentável, altamente rentável.

Sério que não conseguiremos mais criar piadas e humor sem humilhar? Sugiro uma lista longa: Porta dos Fundos, Trapalhões (os mais antigos), Viva o Gordo, TV Pirata e por ai vai. Humor de primeira, crítico, ácido, mas não fixado na humilhação de pessoas e de suas vidas. Basta de Mamães-falei e Pânicos na TV: são fachadas e palcos para o desfile do grotesco, do desejo de gozar com a dor e a vergonha alheia, sempre alheia: esse pessoal jamais utiliza exemplos e vivências pessoais para fazer rir, é sempre no outro, apontando o dedo para aquilo que o outro não quer mostrar. 

A sociedade do espetáculo consegue condenar o tapa, mas tem muita reticência em censurar a humilhação. Um sintoma de nossa época.

Retomemos um caminho mais adulto, mais maduro e mais engraçado de fazer rir, competição de comer sundae de barata com prego não leva muito longe. Smith, se desse para ter pensado um minuto, era ter ficado absolutamente em silêncio, pegado a estatueta e ido embora, para nunca mais voltar. 

Quando dava plantão de psiquiatria, certa vez presenciei uma cena bem tocante: um jovem em surto psicótico comia as próprias fezes. Não foi nada engraçado. Pelo contrário, mostrou para mim, aquele jovem em começo de carreira, os limites e as idiossincrasias impensáveis do Humano. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Referências: 

Bourdieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria das ações. Campinas, Papirus, 2007.

Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

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