Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
“Quero de novo cantar”
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP)
Naquela manhã de domingo, despertei de sonhos intranquilos e permaneci um tempo de olhos fechados. A obviedade do meu sonho era tanta, que só faltava legenda. Esse texto é a legenda. É também, talvez, a tentativa de um trabalho elaborativo – afinal, a noite parece não ter sido suficiente.
No sonho, eu estava em Salvador, descendo a ladeira do Pelourinho. Era madrugada e o silêncio tomava conta daquela rua deserta. Ameaçada, colocava a mão no bolso. Não encontrava a máscara – envergonhada, tampava a boca. Era carnaval e eu estava só, perdida, não sabia como voltar para casa. Observava a cidade silenciosa. Sentia um medo brutal. Na tentativa de me acalmar e me distrair, cantarolava: “Tristeza, por favor, vá embora… quero voltar àquela vida de alegria, quero de novo cantar”. Mas o peito parecia pesado e sofria ao ver o abandono daquela cidade. Lixo no chão, restos de máscaras sujando a rua. Resíduos de uma civilização que um dia já batucou, vibrou , dançou e correu atrás do trio elétrico. “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, mas eu, no caso, estava viva, assistindo à ruína de uma cidade-fantasma.
O Pelourinho triste revelava um capítulo dolorido de uma nação desprotegida há tanto tempo. Perdemos os motivos para sambar? Para além da pandemia, há em nosso povo um desalento resignado. Não sambamos mais. Caminhamos, apenas. Os últimos anos de tantos retrocessos e brutalidades não comportam a leveza do carnaval. Triste tempo que mostrou ainda vivo um tipo de pensamento que imaginávamos estar em outro capítulo da história brasileira.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud nos diz que a felicidade é um estado do qual só nos damos conta uma vez que ela não existe mais. Houve um tempo em que os isopores não transportavam vacinas, e sim cerveja gelada. Em que o ar trazia purpurina e não variantes, onde máscaras eram parte das fantasias e não escudos protetores do outro. E beijava-se, sem medo de perdigotos. Abraços eram livres e gostávamos de cantar músicas uns para os outros, a céu aberto, durante quatro dias. Do carnaval só sobrou a chuva. E não a chuva que refresca e sim que inunda.
Embora Vinicius tenha cantado que, para fazer um samba com beleza era preciso um bocado de tristeza, nosso povo, entristecido parou de fazer samba, pois perdeu o jogo de cintura no meio de tanto desamparo. Mais um ano sem samba, sem festa de rua, sem serpentina. Não faria sentido sambar na cara das 638 mil famílias enlutadas. Não há mais samba, há um dia-a-dia no conta-gotas. Fevereiro segue em dias desritmados, numa marcha lenta de deserto de tártaros resignados, de uma nação desprotegida que conta os dias até outubro.
Nasci no carnaval e sempre achei delicioso ganhar uma festa de quatro dias. Um pouco antes da pandemia, fui a um bloco: Unidos do Inconsciente. Pessoas com máscaras do rosto de Freud, saias de chita rodando, tambores. Se eu soubesse que demoraria tanto para ter novamente carnaval, teria ficado mais tempo, pulado mais alto, jogado mais confetes e comido mais milho verde com margarina. Teria tido mais “samba, suor e cerveja”.
Hoje o que temos é silêncio no mês da alegria, quem diria. Me acalma pensar que as mais belas canções também foram feitas em dias de chumbo, e que aquilo que é reprimido, de acordo com a teoria psicanalítica, tende a voltar com mais força. Nosso povo é teimoso e gosta da vida.
No tal sonho, sentia na pele a solidão do Pierrot da Colombina, pensando nos carnavais que haviam passado, lembrando de “tanto riso e tanta alegria“ que ficaram presos nesse silêncio desvitalizado do cenário atual. Parava num bar para perguntar como devia voltar para casa (para casa ou no tempo? – penso ao escrever). Um homem grita comigo, avança brutalmente, falando algo sobre a cratera do metrô. (Me lembrei de meu filho me contando do alto de seus dez anos de idade sua indignação pelo filho do presidente ter dito que certamente as obras do metrô teriam sido feitas por mulheres, essa foi fácil…). Em minha perna, cães raivosos me mordendo, e não saio do lugar. Paralisada. Tenho medo.
Desperto, pensando: quero de novo sambar e minhas pernas estão presas. Por enquanto. Mas eu nasci no carnaval e não há o que me cale. Nem cachorro irracional raivoso que me arranque meu desejo pulsante de viver. Vou sambar outra vez, cantar “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, comer milho verde com margarina, sentir os tambores sintonizados com meu coração nascido em Fevereiro, que “quer guardar o mundo em mim.” Eu vou sambar outra vez.
“Eu vou. Por que não? Por que não?”
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: foto “É Carnaval” (2005), de Daniel Mourão
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