Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
O DOBRADO DOS SINOS
Rossana Nicoliello Pinho (SBPMG)
Chega o Natal e meus planos mentais mirabolantes com suas infindáveis listas de tarefas, recebem a ordem do meu corpo:
“_ Você vai. Eu fico.”
Uma gripe forte tombou-me na arena, tal qual um gladiador cansado da luta, sempre às voltas com leões, colocando fim no meu Natal.
Eu, que me coloco à frente do tempo e do espaço, numa certa arrogância de transpor limites, levei uma chibatada da realidade pulsante e percebi que se tornou verdade a minha sempre presente anunciação, aquilo que me digo, porém sem escutar: o trabalho é vício lento e a primazia do outro sobre o próprio eu é, sem dúvida, um crime e depois… um castigo.
Entre um acorda e dorme sem controle, pois é assim que o abate dos guerreiros se dá quando entregues aos cuidados do destino, achei que sonhava quando ouvi o dobrado dos sinos convocando para a Missa do Galo, anunciando o nascimento do homem Jesus.
Entre sonolência e pensamento, fui transportada tal qual o personagem de Charles Dickens no seu belíssimo “Um Conto de Natal ”, de 1843, a flutuar pelo nevoeiro das lembranças de sons e de imagens, convocando memórias que ali me fariam companhia.
Lembrei dos entes que se foram, muitos deles nesse fatídico 2021, ano de vivências implacáveis.
Envolvida em sensorialidades, vi surgir a imagem dos Struffoli, doce italiano feito pela minha avó materna, que envolvidos na doçura e no brilho de sua alma, exalavam o aroma do mel. Recordei a fé de meu avô, sempre discreto e fervoroso, agradecendo a farta ceia, em meio à balbúrdia das comemorações familiares.
E ainda sobrevoando o passado, tempo mágico para quem pode acreditar nas fantasias, veio-me à memória meu irmão Ricardo que, aos 3 anos, perguntou ao Papai Noel se, por um acaso, conhecia nossa mãe.
Encadeadas nos laços do afeto, vieram as lembranças de minha avó paterna, conhecida por mim por pouco tempo, mas o suficiente para vê-la de mãos sempre estendidas para ajudar aos necessitados.
Já sob o manto aconchegante da memória, embalada para mais um longo mergulho noite adentro, ouvi os sinos dobrarem um pouco mais – e me pareceu que, dessa vez, mais fortes, imponentes – lembrando-nos sobre a nossa nobre missão no mundo, por vezes assumida apenas no Natal, mas esquecida quando passado o momento festivo das declarações e caridades voláteis.
E os badalos dos sinos do Mosteiro, perto de onde escolhi morar aqui na capital, emendaram-se com o som de “Jerônimo”, sonoridade de minha infância que, com seus movimentos precisos, certamente ressoava naquela hora pela pequena e distante Baependi. Juntos, formaram uma partitura de notas musicais ligeiras que ecoavam pelo espaço, emendando o longe e o perto, mostrando para mim o que significa a atemporalidade dos encontros e dos afetos.
Então, fechei meus olhos, entregue à finitude da minha atual condição. Era hora de cessar viagem e render-me ao guardião dos sonhos, pois ali havia passado, discreto, o verdadeiro espírito de Natal.
Mas numa rápida e derradeira espiada na realidade, envolvida nesse mistério que é o adormecer, ainda tive, tal a riqueza sempre pulsante da literatura em minha mente, uma última e sonífera lembrança…
Recordei das “Meditações” do poeta inglês John Donne, um tratado sobre o letramento dos laços entre os homens, escrito em 1623. Donne, poeta que inspirou Hemingway, afirmava que a morte de qualquer homem o diminuía, simplesmente porque ele era parte, assim como todos nós, do gênero humano.
E na sequência desse fragmento, ainda embalada pela cantiga de ninar dos sinos, mergulhei em “Meditações”, escrito que nos convoca a pensar novamente sobre a nossa missão no mundo, a abrir espaço para a solidariedade e para as causas humanitárias. Essas últimas, devem ser preferencialmente silenciosas, discretas, bem fundamentadas e eficazes, deixando que sejam apenas ouvidos os afetos e as boas intenções.
E de forma simples, adormeci com a cantiga dos badalos que, em uníssono, disseram ao mundo, convocando-nos, através de uma linguagem universal: “Por quem os sinos dobram? Eles dobram por vós!”
*
Esse texto é uma homenagem a todos os colegas ao SOS BRASIL, projeto de atendimento clínico emergencial, o qual integra Psicanálise e Responsabilidade social, apoiado pela atual Diretoria da Febrapsi. Incansáveis, discretos e determinados, psicanalistas e profissionais afins, fizeram acontecer o verdadeiro Natal durante todo o ano!
https://www.youtube.com/watch?
Imagem: Foto de Ricardo aos 3 anos – arquivo família /1972
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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