Observatório Psicanalítico – OP 272/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sobre a questão dos refugiados – [Refugiados: a solidariedade desafiada] 

Manola Vidal e Carlos Pires Leal (SBPRJ) 

“Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados ‘refugiados’. Chamamo-nos uns aos outros ‘recém-chegados ou ‘imigrantes’.”Arendt (1943) 

Segundo o relatório Tendências Globais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), divulgado em junho deste ano, 82,4 milhões de pessoas tiveram que se afastar, contra a vontade, de sua terra, suas raízes, sua língua.  

Durante a pandemia, mais de 160 países fecharam suas fronteiras, sendo que 99 deles não fizeram qualquer exceção para pessoas em busca de proteção internacional.  Em 2020, o Brasil recebeu quase 29 mil pedidos de refúgio.

Como nós, psicanalistas, nos implicamos com essa realidade que alguns consideram uma verdadeira globalização da indiferença?  De que forma o saber e o fazer clínico psicanalíticos podem contribuir para a compreensão e o amparo dessa população crescente e tão intensamente desamparada? 

Quando um grupo de psicanalistas se aproxima do tema sobre os refugiados, suas reflexões se aproximam da intersetorialidade. O debate sobre o tema “Psicanálise e Hospitalidade: Sobre os direitos e a escuta de refugiados” (c.f debate do Fórum Permanente Violência e Cultura da SBPRJ, disponível no canal do Youtube da Sociedade Brasileira de Psicanálise a partir do dia 12/10/21) propôs articular saberes e descobrir convergências possíveis. 

Assim, um vasto panorama se apresentou de forma a polarizar duas categorias de análise: a da conjuntura ideológica, descritiva e epocal (social, política e econômica) e os processos de produção de conhecimento relativos ao campo epistêmico. A construção de um diálogo crítico com estes dois polos procurou refletir sobre os símbolos que a cultura contemporânea oferece no enfrentamento da violência sofrida nas situações de imigração por refúgio.  

Migrantes, refugiados, solicitantes de refúgio, imigrantes, exilados, deslocados internos, imigrantes econômicos, menores desacompanhados, refugiados ambientais, migrantes regulares, migrantes irregulares, clandestinos, errantes, viajantes, párias, apátridas, imigrantes indocumentados, sem papéis, imigrantes ilegais, devolvidos, retidos, repatriados, reassentados, retornados são nomeações possíveis referidas a essas diversidades. Estas significações seriam imanentes em cada sociedade, e se expressam em diversas formas de produção social característica de cada conjunto identitário. Trata-se de um nível de análise para o qual converge o mais profundo de um sujeito singular, cujo efeitos de sentido são atravessados por um imaginário social compartilhado. 

Os efeitos de sentido em cada sujeito migrante, frente aos deslocamentos de passagem de um país para outro, nos permite construir perguntas sobre este campo específico em suas manifestações subjetivas e socioculturais. Como seriam as situações de adaptação a um novo país, onde os códigos culturais que circulam não pertencem ao mundo de significados típico do imaginário social que o sujeito na condição de refugiado carrega? De que forma esta diferença perpassa o imaginário social instituído e instituinte no país de chegada? O trabalho psíquico de internalização que se impõe nos apresenta a possibilidade de uma atitude criativa no enfrentamento dos sintomas, das doenças ou do isolamento que ameaçam encurralar a possibilidade de elaboração dos vários lutos implicados. 

A ferida narcísica da descontinuidade na experiência de filiação a grupos identitários e aos símbolos identificantes pode nos apresentar uma modalidade de luto significativa quando o risco de aculturação é uma saída para o impasse de sobreviver psiquicamente aos deslocamentos.  

Na avaliação testemunhal, questões como confiança, estereótipos e preconceitos podem influenciar as solicitações dirigidas a determinados atores sociais, performatizando uma prática de eleição do status que se utiliza de significados pré-atribuídos, limitando a capacidade de escuta e cuidado. Esta aliança, entre a conjuntura epocal e o campo epistêmico, nos oferece à observação práticas e políticas que constroem um conhecimento assentado por sobre uma dinâmica paradoxal, entre as condições de refúgio e dos refugiados enquanto sujeitos. 

Como a psicanálise se aproxima da escuta, muitas vezes incomunicável e de difícil tradução, do que constitui a experiência do sujeito refugiado?  

Podemos nos perguntar sobre sua contribuição na esperança de se ultrapassar o excesso dos significados pré-atribuídos. Como estes significados pré-atribuídos envolveriam a política humanitária de assistência em saúde mental para a população de refugiados? 

A teoria e a técnica psicanalítica possuiriam especificidade, ou integrariam um campo transdisciplinar acessível às intervenções psicossociais? 

Compreendendo como intervenções psicossociais serviços básicos de segurança que transitam entre suportes comunitários, redes sociais e serviços especializados. 

Vários estudos apontam para a importância da figura do mediador cultural que não se reduz a de ser intérprete ou tradutor, mas figura chave, ponto de contato, frequentemente integrante da própria população de refugiados, no acesso e adesão, principalmente, nas experiências de violência baseadas em gênero. Entretanto, as respostas humanitárias são comumente estruturadas dentro de relações de poder desiguais, e os programas de saúde mental para esta população podem replicar dinâmicas problemáticas ao desconsiderar a capacidade de agenciamento das pessoas deslocadas, ao compreender as reações à adversidade de forma reducionista (biomédicas) e pela criação de sistemas de dependência de assistência. 

No sentido de construir um diálogo crítico, algumas reflexões psicanalíticas apelam a uma revisão da concepção e implementação das intervenções psicológicas. 

Primeiramente, a partir da compreensão sobre os processos de transposição espaço-temporais que são acompanhados de interseções nas quais, eventos atuais – os da passagem de um território a outro – reatualizarem o que era anterior no tempo, conflitos psíquicos e relacionais.  A compreensão de que o deslocamento para o novo (idioma, alimentação, costumes), implica um incessante movimento de assimilação e acomodação necessário para o aprendizado emocional com a experiência de refúgio. 

Um último aspecto, o da xenofobia, definida como um profundo ódio e antipatia aos estrangeiros ou ao que é identificado como estrangeiro, pode refletir desde uma posição pessoal ou grupal ou integrar uma identidade nacionalista que se caracterize pelo etnocentrismo. Tradicionalmente, o conhecimento psicanalítico questiona se a xenofobia e o racismo possuem suas origens em conteúdos inconscientes ligados a ansiedade, medo e raiva. 

Não seríamos, nós psicanalistas, de certa forma refugiados, estranhos habitando uma cultura normatizante, intolerante ao diferente e à diferença, carregando permanentemente dentro de nós estrangeiros em busca de acolhimento e significação frente a um inconsciente que jamais desiste de nos convocar à recriação de nós mesmos, da nossa subjetividade e da nossa linguagem? 

Nesta condição, não estaríamos potencialmente qualificados para o desafio do acolhimento dos refugiados – esses enjeitados expelidos desapiedadamente de suas terras natais? 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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Tags: direitos humanos | Escuta Clínica | Hospitalidade | Refugiados
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