Observatório Psicanalítico – OP 267/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

QUO VADIS?

Eduardo São Thiago Martins (SBPSP)

O filme “Quo vadis, Aida?”, de 2020, é um documento de memória, realizado num momento em que o genocídio bósnio segue em estado de negacionismo e, além disso, num momento em que agentes desse massacre são enaltecidos, de maneira não muito diferente do que acontece por aqui com torturadores da ditadura militar, ou em outras partes do mundo, por exemplo, com o movimento neonazista. Portanto, é um documento de memória imprescindível, por ser memória do presente.

O roteiro segue de perto, com muita fidelidade, os relatos de sobreviventes do massacre de Srebrenica, e a direção de Jasmila Zbanic consegue nos colocar dentro da base de segurança da ONU, naquelas últimas horas, antes da evacuação que conduziu os civis, bósnios muçulmanos, a um genocídio em julho de 1995. Vivemos com as personagens, a angústia e o horror de quem não precisa enxergar a sanguinolência explícita para saber que ela está acontecendo. O filme exibe raras gotas de sangue, mas se torna quase intragável, apesar de sua poesia, porque Srebrenica em 1995, é muitos lugares do mundo, hoje; e sempre poderá ser, qualquer lugar, em qualquer momento da história. Então, partindo do intragável, escrevi um pouco das ideias e associações que me ocorreram para o debate com a jornalista Patrícia Campos Melo, mediado por Luciana Saddi (SBPSP), sobre o filme no evento Ciclo de Cinema e Psicanálise, da SBPSP, em parceria com o MIS (Museu da Imagem e Som) e apoio da Folha de São Paulo, realizado em 24 de agosto (2021).

“Então, vamos lá!” – eu disse para mim mesmo, algumas vezes, diante da tela em branco. “Vamos lá!” … Para onde?

O filme me deixou num silêncio muito próximo daquele da cena de abertura, em que o marido e os filhos de Aida olham através dela, com um olhar que pergunta: “o que vai acontecer conosco?” Uma pergunta que se repete incansáveis vezes ao longo da ação. Diante de certas cruezas, parece não haver mais nada a dizer. É justamente aí que precisamos nos esforçar para tentar construir alguma possibilidade frente ao que nos parece impossível. Porque o impossível continua acontecendo, ele é aquilo que só não existe em determinadas condições, mas se faz existir, rompendo com essas condições, que nós chamamos de ordem.

O corretor do Word insistia na correção automática de AIDA, por AINDA. Pois é… ainda! E sempre ainda…

Meu comentário sobre o filme traz pontos que podem parecer simples, ou até mesmo óbvios, se a racionalidade desse conta do recado. Mas aí, entram em cena as paixões, as identificações, os gozos imoderados e indomáveis que forçam as transformações de uma determinada estrutura.

Quem der um Google no título no filme, vai se deparar com uma passagem dos “Atos de Pedro”, texto apócrifo, em que Pedro está fugindo de sua crucificação em Roma, quando tem uma visão de Jesus ressuscitado, que caminha em direção contrária à sua: “Quo vadis?”, Pedro pergunta a Jesus, que lhe responde que vai a Roma para ser novamente crucificado. Diante disso, Pedro retorna e morre como mártir, pedindo para ser crucificado de cabeça para baixo, e pregando a palavra de Cristo, com um sorriso no rosto, num gozo sagrado, como que imune à dor e à tortura por ser crente em Deus: Deus que é Todo, que é Tudo.

A crença mítica em um único Deus, ou em múltiplos deuses e deusas, e as diversas práticas religiosas que decorrem dessas crenças, são instigantes e admiráveis construções humanas; especialmente quando essa prática consegue articular a devoção (terreno das paixões) com o exercício interpretativo das palavras que compõem as religiões e permitem seus múltiplos significados. O problema (político-religioso) aparece no UM, quando uma única leitura é permitida para A PALAVRA, toda maiúscula, acima de todos e acima de tudo. O chamado fundamentalismo, que rege certos grupos de fiéis de muitas religiões do mundo, como a cristã, a hindu, por exemplo, e também a islâmica.

Recentemente, no Afeganistão, moradores de cidades recém-tomadas pelo Taliban relataram a experiência de sentir uma certa calma, já que não haveria mais conflito em suas regiões; mas logo se desesperaram, vendo-se sujeitos a uma interpretação unívoca da Sharia (lei islâmica), sem margens para os debates.

Na Guerra da Bósnia, não foi a primeira, nem a última vez que o jogo de interesses geopolíticos se apoiou sobre essa ‘paixão pela unidade’, paixão que move o exército da purificação a massacrar o estrangeiro. Mas pensemos em Srebrenica… Numa base das nações unidas comandada por holandeses, invadida por guerrilheiros sérvios-cristãos armados, lotada de refugiados bósnios muçulmanos, com os restos dos seus lares recém-abandonados em suas pequenas mochilas- num cenário como este, quem é o estrangeiro? Em Babel, quem não é o estrangeiro? Aida é uma tradutora que corre de um lado para o outro – não feito barata tonta, mas em busca de uma ação possível. Para ela, em determinados momentos, estrangeiros são todos que não sua família, os seus, como se diz. De repente, tornam-se ‘seus’ todos os concidadãos refugiados, para de novo, no instante seguinte, voltarem a ser “os outros”. É nessa tensão entre familiar e estrangeiro, inclusão e exclusão, que somos tragados para o presente do fato histórico; são tensões que nos assolam socialmente.

Jacques Derrida vai propor que toda e qualquer hospitalidade, com suas condições e leis entre hóspede e hospedeiro, seria uma subversão da hospitalidade absoluta, aquela que recebe o outro sem perguntas prévias – nome, origem, destino… 

Disponibilidade absoluta ao estrangeiro que, quando ultrapassa a soleira da porta, coloca em xeque, com seu estranhamento de estrangeiro, as leis familiares daquele lar, de modo que o hospedeiro passa a estranhar seus hábitos de sempre, passando ele próprio à condição de estrangeiro em sua própria casa, logo, condição interna de conflito. E é aí que a Psicanálise entra em campo – não para ajustar as coisas, muito menos para explicar ou psicologizar a política, mas para apostar na sustentação introjetada do conflito e das ambiguidades. Freud (1915) vai escrever que “suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos.” E que “as ilusões perdem o valor quando nos atrapalham nisso”.

Suportar a vida, aqui, não no sentido do sacrifício, do suportar da cruz. Suportar a vida no sentido de dar o suporte que ela pede para continuar viva; assim como o suportar da diferença não passa simplesmente pela questão da tolerância, mas também pela ideia de uma sustentação da diferença. Agora, até que ponto? E por qual via? Certamente, não será pela via do amor, como nós o conhecemos. “Amar ao próximo como a ti mesmo” é um tiro no pé da humanidade, um projeto narcísico violento, colonizador do próximo, que nos traz aqui a questão do universalismo nos direitos humanos, por exemplo, da hegemonia de discursos e valores ocidentais e eurocêntricos neste campo. Como amar ao próximo como próximo? O nome de Aida nos remete à palavra “ajuda”. Quando e como intervir? Quando e como se retirar? Onde traçar a fronteira da solidariedade? E a da imparcialidade, da abstenção?

Bom, segundo Freud, não há como escapar da guerra. Mas há como levar a guerra para dentro dos argumentos, das palavras, como propõe Platão. Para que a palavra na política tenha efeitos de transformação, ela precisa ser plena, mas não palavra final. Ela deve manter uma brecha de significação, para que haja o debate, sem deixar de ser palavra-ato. Senão, ficamos com as palavras vazias, com as burocratizações – como fica Karremans no filme – ou então, ficamos com os atos-palavra (atentados), sem mediação, sem necessidade de tradução, como as atrocidades de Mladic.

Miroslav Milovic, filósofo iuguslavo, professor na UnB, escreve o seguinte num artigo da Cult: “O conflito iugoslavo mostra o perigo das soluções consensuais que excluem a política. Consenso esconde conflitos. Na ex-Iugoslávia, mostrou-se que crer em consenso pode ser uma grande ilusão.” E, como disse Freud, ilusões como essas atrapalham o suporte que a vida pede. Antes da guerra, a ex-Iuguslávia viveu uma lacuna política, sob a ditadura de um único homem, Tito, que mascarou as tensões étnicas com um pseudo-consenso comunista. Deste modo, os verdadeiros conflitos nunca chegaram à articulação política e, depois de sua morte, o vulcão entrou novamente em erupção.

No livro “Massa e Poder”, Elias Canetti descreve uma forma de guerra que abre mão de matar: o sistema de votos democráticos. Um jogo de guerra onde o que encerra a batalha é a contagem de votos. Ele escreve assim: “A solenidade de todas essas atividades decorre da renúncia à morte como instrumento de decisão.” Portanto, qualquer um que deslegitime esse sistema permite que as armas retornem e, com elas, a morte.

Então, politizar é preciso, mas para isso, a política precisa aceitar o antagonismo multipolar como onipresente e reconhecer o papel das paixões como uma de suas forças motrizes, para que não fique tão impotente diante das erupções dessas paixões (identificações, gozos, transferências). O sistema de votos vai muito além da simples defesa de interesses individuais. Existe ali uma dimensão afetiva inescapável. Quando insistimos na ideia de consenso, de bom senso, de nações unidas (no lugar de colaborativas), ou então, se aplicamos na política os modelos empresariais de negociações e cálculos racionais de interesses (quando os interesses, em si, são contraditórios), deixamos de transferir para o campo da política, a representação conflituosa do mundo. E se a guerra ou a barbárie não são representadas, nos restará vivê-las na crueza desta realidade que “Quo vadis, Aida?” – e as manchetes de cada dia – nos exibem. Privilégio nosso ver isso de longe, porque atrocidades assim são cotidianas para tantos sujeitos periféricos, oprimidos, sujeitos da miséria, da guerra, de constantes invasões estrangeiras, em culturas onde o exercício da palavra e a ideia de articulação política podem soar até como idealismo.

O filme não nos deixa fechar os olhos para essa realidade. São raros seus momentos líricos, em que podemos nos esquecer um pouco, e respirar. O mais óbvio deles é uma memória-sonho de Aida, que nos leva a uma festa, onde rola um concurso de penteados, onde a banda de seu filho toca, e onde as singularidades daquelas pessoas nos são apresentadas em retratos, um a um. Ali, podemos imaginar quem são, seus gostos, seus desejos, suas histórias; ali, são pessoas capazes de dançar juntas, em roda-viva (roda-mundo), apesar das tensões étnicas. Mas no geral, a obra nos deixa com o intraduzível, como na última fala de Aida aos refugiados, quando eles estão resistindo à evacuação da base… Ela diz poucas palavras, que os calam e os conduzem às suas cruzes; palavras cujo significado, nós, estrangeiros, ficamos sem saber (palavras sem legenda).

Esse intraduzível pode nos resignar, nos paralisar, nos fazer aderir às zonas muradas de segurança… ou não. Não saber a resposta pra pergunta “Aonde estamos indo?” pode também nos implicar, como Aidas, nessa zona desordenada que é o jogo da vida, não para descobrir quem vai ser o vencedor (o poder hegemônico, a verdade absoluta), mas para seguir jogando… 

Para terminar refraseando Eça de Queiroz: sobre a nudez dura da verdade, a palavra-ato da política, e da arte… e com elas, o manto diáfano da fantasia, porque ninguém é de ferro, nem damas, nem senhores, e ‘cada um com a sua cruz’ não me parece um bom destino para a pergunta “Quo vadis?”.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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Categoria: Cultura
Tags: destino | destrutividade | guerra | religião | violência
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