Observatório Psicanalítico – OP 268/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Viver no mundo, pensar o mundo, cuidar do mundo: culpa e reparação em tempos de crise climática 

Maria Luiza Gastal (SPBsb)

As mudanças climáticas vêm sendo discutidas, pelo menos, desde o séc. XIX, mas somente em 1988, com a criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e, em 1994, da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, o tema ganhou corpo. 

Da Convenção resultam novos protocolos e acordos, visando a redução de emissão de gases de efeito estufa. No Acordo de Paris, ratificado pelo Brasil, comprometemo-nos com várias metas, uma delas a de eliminar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2025. O Brasil, como o resto do mundo, não tem conseguido reverter as emissões de CO2 ou o desmatamento. Entre 2004 e 2012 estivemos no bom caminho, mas a partir de 2015 o desmatamento na Amazônia voltou a crescer. Os impactos da inação humana já são vividos na Terra: elevação das temperaturas atmosféricas, intensificação de ciclos climáticos de temperatura e precipitação, ameaça à biodiversidade, desertificação, acidificação dos oceanos… Por que agimos como se não soubéssemos de nada?

Recorro a Melanie Klein, que mostra o conflito entre nossa parte que ama a realidade, tolera frustrações, cuida e repara, e outra, mais narcisista, que odeia a realidade quando vai contra nossos desejos, lançando mão de pensamento mágico onipotente. 

Nossa parte realista vive a ansiedade depressiva pelo receio dos danos causados pela parte narcisista, enquanto essa experimenta a ansiedade esquizoparanóide decorrente do temor por sua sobrevivência. Enfrentar a realidade mobiliza muitas defesas, e a crise climática é uma realidade difícil de ser encarada – vivemos o luto por um mundo que estamos destruindo. Para trabalho tão duro, temos escapado para discursos e ações que negam a crise, ou que se negam a enfrentá-la.

Dois livros de Sally Weintrobe, “Engaging with Climate Change”, (2013) organizado por ela, e “Psychological Roots of the Climate Crisis” (2021), de sua autoria, ajudam pensar sobre essas estratégias de negação. Ao discutir as formas de negar as mudanças climáticas, Paul Hoggett, autor de um dos capítulos da primeira obra (“Climate change in a perverse culture”) traz dois tipos de “gaps” em relação a elas. O primeiro é entre opinião pública e comportamento: mesmo sabido, o conhecimento não se traduz em ação. Isso porque as pessoas sentem que há pouco que podem fazer, ou que o que podem fazer individualmente não faz diferença, ou não acreditam em sua capacidade de fazê-lo ou, finalmente, porque vivem sob políticas que as estimulam a agir no sentido contrário. O segundo “gap” – entre conhecimento científico e opinião pública – é o “pensamento perverso”-, ou a negação do conhecimento, e o chamamos genericamente de “negacionismo”, mas há muitas sutilezas. Em primeiro lugar, há um negacionismo ideológico, financiado e implementado por uma parte da humanidade que afere lucros enormes com atividades industriais, agropecuárias e extrativas, compartilhado socialmente por meio de instituições, discursos, fake news, bem conhecido de todos nós.

As outras formas de negar a crise climática são a negativa e desmentida. Na primeira, mesmo reconhecendo a crise climática, o conhecimento é recalcado e quando vem à consciência o faz como negativa: “a crise climática não existe”. O negacionismo ideológico tem papel importante neste processo, oferecendo um discurso social que sustenta a negativa. 

Além disso, alertava Freud, a despeito do trabalho analítico levar a um reconhecimento do recalcado, o processo de recalcamento não é necessariamente removido se o conhecimento for muito doloroso, ou se o recalcamento oferecer uma falsa solução para o problema. A crise climática é uma realidade muito difícil e sentimos que nos faltam forças para enfrentá-la. Não basta confrontar o sujeito à negativa. É preciso empatia e acolhimento, ajudando-o a reconhecer a realidade, a admitir o luto, a reintegrar partes cindidas e a reduzir defesas, sem julgamentos ou cobranças excessivas, de modo a promover mudanças. O excesso de realidade promove negação, e deveria ser evitado ao comunicar a crise climática para o grande público, dizem alguns.

Mas vivemos, sobretudo, no mundo da desmentida, defesa mais organizada e permanente, do campo da perversão. Enquanto a negativa nega a verdade, a desmentida a distorce, afirmando que as mudanças climáticas acontecem, mas não acontecem. Com ela, reduzimos a ansiedade, a culpa e a vergonha, acionando sentimentos de onipotência e fazendo uma “gambiarra” com a realidade. Mas não enfrentar o problema acaba levando a uma escalada de ansiedade, impedindo-nos de pensar em saídas e agravando a crise por nossa inação. Maniacamente incapazes de reconhecer nossa dependência da Terra, invocamos a mesma ciência que é negada, e é aqui usada como um tapa-olho: “os cientistas vão encontrar uma solução”.

Para Weintrobe, o Excepcionalismo é um dos principais responsáveis pela crise climática. Ele se baseia na premissa de que tenho o direito a: me ver como ideal; ter o que quiser; e usar pensamento onipotente para me livrar de sentimentos morais desagradáveis sobre os dois primeiros. O pensamento político e econômico neoliberal é Excepcionalista, e a ele interessa que o sujeito se sinta especial, como nas propagandas, com direito de ter e consumir o que quiser. 

Como lembra Baumann, o sujeito da modernidade líquida é convocado a explorar as infinitas possibilidades de existência (e consumo) que o mercado oferece, substituindo o desejo pelo querer. O Excepcionalismo neoliberal está nos levando a uma desregulação mental e à crise climática, imersos numa cultura perversa onde impera a desmentida. 

Talvez outra dificuldade seja que enfrentamos muitas crises: COVID, crise econômica, crise da democracia… Pode parecer que a crise climática é menos urgente, falsa crença mantida por uma defesa que nos faz enxergar problemas relacionados como isolados e desconectados. A base do problema é estrutural: a forma extrativa (“mineradora”) e descuidada de tratar a Terra e os outros, que o neoliberalismo estimula e impõe.

Poderíamos pensar que esses temas estão fora de nosso campo, mas cada vez mais pacientes nos trazem ansiedades derivadas de causas sociais. Um paciente, ao saber que sua mulher esperava um bebê, me pergunta: “Será que a pandemia vai passar um dia? Será que viveremos como antes?” Pergunta recorrente, cuja resposta, provavelmente, é não. Já destruímos demais e é quase certo que à COVID se seguirão outras pandemias. Já vivemos desastres climáticos, a crise migratória já acontece.

Como ter esperança? Como pensar, imersos nessa cultura?  

Enfrentar a realidade das mudanças climáticas pressupõe força para encarar nossas destrutividade e dependência da Terra, e para reparar o dano que fizemos. Se tudo não pode voltar a ser como era, podemos impedir que piore. 

Hodgett traz Shaun Chamberlein e seu otimismo sombrio para nos ajudar a construir saídas: “o otimismo sombrio é (…) uma maneira de ver a vida que não teme a verdade – mesmo quando ela é impalatável ou parece intolerável. Explorando o desconhecido, podemos vê-lo pelo que é, em lugar de temê-lo. Onde as sombras estão presentes, nós as enfrentamos com uma indomável crença no potencial da humanidade”. Como diz Hoggett, se perdermos a esperança uns nos outros, não haverá esperança para a natureza, e verdade e esperança são matérias da psicanálise. Não sem dor, não sem luto, não sem luta. Mas são imperativos éticos, em nome da vida – a nossa, das gerações futuras e dos outros seres deste planeta.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Foto de Araquém Alcântara: “Crianças e árvore Samaúma”. Rio Negro. 2010

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