Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Antes do veneno do cálice derramar
Hemerson Ari Mendes (SPPel)
Em 2016, com o título “Cartas da Venezuela”, publiquei a seguinte narrativa:
Há dois anos (2014)
Depois de dois dias de trabalho, na reunião de Presidentes das Sociedades Psicanalíticas da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL), realizada em Buenos Aires, um colega psicanalista da Venezuela – um senhor de 75 anos, que transpirava dignidade, mesmo para quem não o conhecia até então – fez um relato sobre as violações dos direitos humanos em seu país. Não falava de maneira afetada, maniqueísta, partidária. Falava da dor de ver uma geração sacrificada. Falava da falta de comida, que lembra o ditado sobre o que ocorre com as famílias na qual falta pão.
Na época, escrevi: tão longe, tão perto. Tão perto, tão longe? Lamentavelmente, a história sinaliza que não.
Há um ano (2015)
Após a mesma reunião, agora realizada em Bogotá, apenas uma presidente das Sociedades venezuelanas fez-se presente. No domingo, com os trabalhos já encerrados, a encontro no café da manhã, carregava um grande sacolão – com a naturalidade do sem noção. Comento: vais às compras? Ela confirma, diz que vai aproveitar para comprar shampoos, sabonetes, creme dental, papel higiênico entre outros “luxos” que estavam em falta na Venezuela. Conta sobre as ameaçadoras blitz no caminho do aeroporto e complementa que não imaginava que chegariam ao ponto em que estavam.
No presente ano (2016)
Agora no Rio, nenhuma sociedade venezuelana se fez representar. Apenas uma carta com a narrativa do que se pensava não poder piorar. A evolução do caos. Inflação galopante, a moeda entrou em colapso, as sociedades lutam para sobreviver, mas perderam completamente o poder de planejamento. Apesar do interesse por Psicanálise seguir vivo na Venezuela, muitas pessoas não conseguem manter seus tratamentos. Os custos de uma viagem ao Rio estavam proibitivos para as sociedades.
No primeiro ano, a presença com a comunicação da violência; no segundo, algumas ausências e a perda das condições básicas de auto-cuidado; no terceiro, apenas uma carta. A indignação evoluiu para uma desesperança e agora para um sentimento de impotência, mas não resignação.
Primeiro, estava ameaçada a liberdade de expressão; depois, a dignidade; agora, instalou-se a impossibilidade de ir e vir; os venezuelanos vivem numa prisão sem grades e muros; contudo, tão terrível quanto as clássicas.
Tão perto! Tão longe? Cartas da Venezuela clamam por companhia na manutenção da capacidade de pensar o caos.”
A partir desta publicação, a FEPAL escreveu um manifesto sobre a situação. Na época, achei “estranho” – no sentido do centenário texto freudiano – o comentário da colega que ajudou a redigir, ela brincou que eu havia criado um problema, pois a Comissão Diretiva teve dificuldades de achar o tom adequado do manifesto, preocupados que este não ferisse suscetibilidades à esquerda e à direita.
Agora, com as devidas desculpas à senhora Klein, brinco eu: não imaginava que os seios bons ou maus estivessem associados ao lado direito ou esquerdo; mas, sim, à produção de leite ou veneno.
Avancemos para 2018, logo após o primeiro turno das eleições presidenciais, no Movimento Articulação, formado por várias entidades psicanalíticas, da qual a FEBRAPSI faz parte. Discutia-se a redação de um manifesto sobre o processo eleitoral; nesse meio tempo, por um “lapso”, uma colega de outra instituição publicou um esboço não aprovado com um explicito apoio a uns dos candidatos, como sendo o manifesto assinado por todas as instituições. O telefone da nossa presidente e, também, de alguns dos membros da Comissão Diretiva alternaram-se em chamadas elogiosas e contundentes críticas de vários membros, que acreditaram que a FEBRAPSI, de fato, era signatária do manifesto não aprovado. Indicação de que não éramos uma amostragem diferente do eleitorado como um todo.
A partir dessa situação, mas, não só, antes das eleições, a Febrapsi emitiu o seu manifesto (DEMOCRACIA, SIM! – Manifesto da Febrapsi / Notícias | FEBRAPSI – Federação Brasileira de Psicanálise), do qual publico aqui um resumo:
“Democracia, Sim!
(…) A atual eleição foi marcada pela vitória do “não”, seja como expressão do rechaço aos posicionamentos de um dos candidatos ou da rejeição à história de um dos partidos.
Cabe a nós psicanalistas, defensores intransigentes da democracia, pensarmos o que cada um dos agrupamentos de “nãos” defende; mas, principalmente, o que eles escondem, negam, denegam, recusam. Como bem nos ensina Freud sobre o negativo no inconsciente. (…)
A democracia é uma profissão de fé. Ela pode dar guarida ao inferno que se enxerga na posição dos outros e, também, pode proteger de quem vê o demônio em nós (ou vice-versa). Fora da democracia, tratamos as diferenças com os irmãos através das torturas, fogueiras, terrorismos, exílios, patrulhamentos moralistas.
A história mostra que esse é o clima mais propício para o pior dos mundos: o aprisionamento/homicídio/
(…) Seria estranho se nesse momento não tivéssemos divergências entre nós.
Cabe a cada um defender suas convicções. Como instituição, defenderemos o sagrado resultado da subjetividade expressa pelos votos de cada um.”
De maneira geral, o Manifesto foi bem recebido pelos membros da Febrapsi; além de estar em consonância com o estatuto que proíbe manifestações político/partidárias. Ele antecipou qual era a maior ameaça nas eleições. Narcisicamente, como um dos redatores, me senti satisfeito com a “obra” (com todos os sentidos que quiserem dar). Entretanto, hoje, ao reler, preciso confessar meu desconforto. Primeiro, tem um termo de cunho racista – “denigre-se” –, por anos, largamente utilizado por mim sem a menor crítica. Pergunto-me: como até pouco tempo, algo que hoje grita, eu escrevia com tamanha naturalidade? Talvez isso indique a necessidade de questionar se a maneira como institucionalmente nos posicionamos ontem vale para hoje!
No calor da batalha/polarização talvez não coubesse um posicionamento diferente. Mas, dada a sequência dos acontecimentos, é impossível negar a presença no candidato vencedor dos sinais que hoje ameaçam à democracia, suas instituições, o processo eleitoral, além das demais insinuações golpistas, como por exemplo: negação da ditadura, apologia a torturador, expressar o desejo de morte dos que estavam em desacordo com suas posições/crenças.
Entretanto, para o bem ou para o mal, não estamos sozinhos: em 2020, a Associação Americana de Psicanálise (APsaA), após a experiência dos quatro anos de Trump, antes da eleição, emitiu um contundente Manifesto, sem citar nomes – nem precisava, sinalizando que não há candidato perfeito – no qual defendeu a necessidade de certas características essenciais para um líder: capacidade de ouvir; empatia; compaixão; capacidade reflexiva e de lidar com verdades, mesmo as dolorosas; núcleo moral bem integrado, voltado aos bons valores humanos. Foi um claro e inequívoco posicionamento contra a maneira Trump de governar, terminando com o acachapante “Character matter”. Três meses depois, após a invasão do Capitólio, com Trump ainda no governo, agora com nome e sobrenome, ela defendeu o afastamento imediato do presidente golpista. A meu ver, os posicionamentos foram exemplares. Essencialmente, eles defenderam as qualificações necessárias para se manter uma democracia. Não se faz isso se abstendo de ser contundente contra golpismos e seus sucedâneos. A APsaA defendeu a democracia e, por conseguinte, a psicanálise.
Para não se perder o costume, evoco Freud, em 1926, o jornalista americano Georfe Viereck, provocou-o:
“Sempre me pareceu que a psicanálise desperta em todos aqueles que a praticam o espírito da caridade cristã. Não há nada na vida humana que a psicanálise não nos permita entender. Tout comprendre c’est tout pardonner”.
O próprio descreve a reação/resposta de Freud:
“Pelo contrário – enfureceu-se Freud, as feições assumindo a severidade arrebatada de um profeta hebreu – entender não é perdoar. A psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento.”
Por outro lado, uma década e pouco depois, Freud relutou em abandonar Viena, de certa forma, acreditava que ele e sua família não seriam atingidos pelo nazismo. Só concordou após a Gestapo prender a sua filha Anna.
Temos um grupo governante em inequívoco movimento golpista, com ameaças explicitas, consubstanciadas por narrativas que são precipitados de Maduros e Trumps (não é uma questão de direita ou esquerda); mesmo primárias, elas têm eco! A história nos mostra que não se deve subestimar. Não há autocrítica, tampouco sinais de desistência ou arrefecimento. Vivemos um clima de “às favas com os escrúpulos”. 2022 começou, terminará?
Qual Freud nos orientará? Qual “estatuto” nos pautará? Confundiremos não manifestações político-partidárias com inações frente às ameaças de rompimentos institucionais que atingem o processo civilizatório e os direitos humanos? Seremos capazes de distinguir a (pres)suposta neutralidade/abstinência no nosso trabalho clínico de posicionamentos insossos, inodoros, quando não acovardados frente a realidade que nos cerca? Negaremos a força do silêncio/omissão como gritante posicionamento político? Seremos agentes propositivos ou deixaremos para reagir após o veneno derramado do “cálice”?
Enfim, vacinaremos nossas instituições para que sobre elas não recaiam as sombras da Casa da Morte de Petrópolis – com sua nova fachada – ou bovinamente aguardaremos a imunidade de rebanho?
Os livros começaram a ser queimados (ou não?), esperaremos que levem Anna? Para os padrões das manifestações das nossas instituições, a APsaA, corajosamente, apontou um novo caminho. “Esperar não é saber” ou, se preferirem, “A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento”.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: foto da Casa de Morte de Petrópolis (tombada e transformada em patrimônio para preservação da memória e história da ditadura, quando foi usada, na década de 1970, como um centro clandestino de torturas e desaparecimentos políticos.)
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